Mundo
04 dezembro 2018 às 17h37

Alma de África: o clube andaluz que une migrantes e espanhóis

A Andaluzia é a nova linha da frente da chegada de migrantes à Europa. Neste domingo, o parlamento andaluz tornou-se o primeiro em Espanha com deputados de extrema-direita. Em Jerez de la Frontera, a história de um clube de futebol de migrantes e espanhóis, o Alma de África, ilustra as forças e as vulnerabilidades da política de braços abertos do país vizinho.

Catarina Fernandes Martins, Jerez de la Frontera

Quando vê menores imigrantes errando pelas ruas de Jerez de la Frontera, Issa Abdou, um camaronês de 28 anos, convida-os para sua casa e partilha com eles as lições que aprendeu após os muitos desvios que diz ter vivido em Espanha, onde chegou tinha apenas 17 anos. Fá-lo na esperança de que esses jovens nos quais se revê possam evitar os erros que ele não soube evitar. O maior deles, diz, foi ter deixado o seu país e a sua família, cego pela ambição da "modernidade", quando, afinal, "tinha tudo aquilo de que precisava nos Camarões". Mas para ele e para muitos jovens que como ele chegaram a Espanha, não há volta atrás. E o que Issa agora procura ensinar é a consciência de que "na Europa, o tempo significa dinheiro". Quanto menos erros, menos desvios, menos tempo desperdiçado, diz, falando como um oráculo.

Com 8 anos, Issa Abdou comprou um livro de Geografia e começou a planear a sua viagem para a Europa. Estávamos em 1998 e o camaronês vibrava com o Campeonato do Mundo de Futebol em França, ainda que a seleção do seu país não tenha passado da fase de grupos. O futebol foi sempre a sua paixão, a bola de futebol, a sua melhor amiga. Issa queria chegar a Madrid ou a Barcelona, jogar na Primeira Liga Espanhola, deixar para trás a vida dos pais, pastores nómadas que viviam nos bosques. No ano 2000, Issa deixou os Camarões e rumou ao norte. Na Nigéria, no Níger, na Argélia, foi trabalhando para sobreviver e juntar dinheiro para chegar a Marrocos. Sete anos depois, trepou a vala de Melilla, o enclave espanhol no norte de África e viu a bandeira espanhola. Não era Madrid nem Barcelona, mas era Espanha. "Tinha chegado," diz Issa, os olhos conservando o brilho da esperança que sentiu naquele dia.

Doze anos depois, após muitos desvios, Issa Abdou encontrou uma forma de materializar o seu sonho, ainda que de uma forma diferente daquela que tinha imaginado. Issa coloca muitas vezes a braçadeira de capitão do Alma de África, uma equipa de futebol de Jerez de la Frontera composta por imigrantes africanos, latino-americanos e espanhóis que joga na terceira divisão da liga Andaluza de futebol. Desde 2014, o Alma de África tem ajudado imigrantes de mais de 15 países a integrarem-se no sul de Espanha, onde a chegada contínua de migrantes e as taxas de desemprego mais elevadas do país dificultam essa tarefa.

À semelhança de Portugal, a sociedade espanhola tem evitado as tensões xenófobas que minam o discurso público noutros países da Europa. Isto apesar da herança da crise económica, dos elevados níveis de desemprego e do aumento substancial do número de migrantes que todos os dias chega a Espanha. Desde que assumiu o cargo, no verão, o primeiro-ministro Pedro Sánchez adotou uma política de imigração liberal, tendo sido aplaudido pela sua posição contra-corrente numa Europa onde regressam os muros contra os que são de fora. Ao dar instruções de acolhimento do 630 migrantes a bordo do navio humanitário Aquarius, rejeitado por Itália e Malta, Pedro Sánchez disse que Espanha tinha "o dever de ajudar a evitar uma catástrofe humanitária, oferecendo um porto seguro." Uma pesquisa do Pew Research Center publicada em setembro mostrou que Espanha é o país europeu mais disponível para ajudar refugiados, com 86% dos espanhóis a favor de receber pessoas que fogem da violência e da guerra.

Mas em Jerez de la Frontera, no sul de Espanha, a nova linha de frente das chegadas à Europa, autoridades e especialistas falam de um ponto de ruptura e alertam para uma mudança de atitudes por parte de políticos e da população. A chegada de 12 deputados do Vox, que tem alimentado posições anti-imigração, ao parlamento da Andaluzia nas eleições regionais deste domingo parece dar-lhes razão. É a primeira vez que a extrema-direita conquista lugares num parlamento espanhol.

Imigrantes infantilizados

Todos os domingos, os jogadores do Alma de África entram em campo vestindo equipamentos verde fluorescente onde está impresso o artigo 14. da Declaração Universal dos Direitos Humanos: "Toda a pessoa sujeita a perseguição tem o direito de procurar e de beneficiar de asilo noutros países."

Aqueles que assistem aos jogos, em Jerez de la Frontera ou nas aldeias e cidades andaluzas que competem na terceira divisão, já se habituaram à equipa. Em Jerez, o Alma de África atraiu sócios, financiamento e muita atenção mediática, tendo sido alimentada a ideia de que aquela era uma equipa única no mundo.

Tudo começou há quatro anos num descampado da cidade andaluza, onde alguns amigos de vários países africanos se juntavam para jogar futebol. O enfermeiro Quinn Rodriguez vinha observando o grupo, achando piada aqueles rapazes que gostavam de jogar à bola, mas, apercebeu-se ele, precisavam de orientação e de alguém que arbitrasse as partidas, que frequentemente se tornavam desordeiras. Um dia levou com ele o amigo Alejandro Benítez, antigo jogador pelo Jerez. Quinn e Alejandro tiveram a ideia de organizar um torneio simbólico entre o grupo de rapazes, a que tinham dado o nome de Alma de África, e uma equipa de futebol profissional. Organizaram o jogo, pediram donativos de comida em vez de cobrarem entradas e o evento foi um sucesso, tendo a equipa angariado 100 kg de produtos alimentares. Passou-lhes então pela cabeça levarem o Alma de África a sério e descobriram que incluir jogadores espanhóis facilitava o processo de registo na Federação Espanhola de Futebol. Assim o fizeram, convencidos de que isso ajudaria também à integração dos jogadores imigrantes.

O Alma de África conta com 25 jogadores registados, ainda que os treinos semanais acabem por atrair outros jovens imigrantes de Jerez de la Frontera, que se sentem em casa com os elementos do grupo. A equipa joga este ano a sua quarta época, tendo chegado à segunda divisão andaluz. No ano passado voltaram a descer para a terceira. Na verdade, o sucesso inicial da equipa e a motivação do grupo tem vindo a esmorecer, resultado dos mesmos obstáculos que ameaçam o projeto mais geral de integração de imigrantes na sociedade espanhola.

"Quando chegam à Europa, a maioria dos imigrantes está convencida de que a vida vai ser repente muito fácil. Alguns deles falam de dinheiro a cair das árvores, como se a Europa fosse a Disneylândia. Não sei se é essa a história que lhes contam nos países de origem para os incentivar a partir. Depois ficam desmotivados quando as expectativas chocam com a realidade e percebem que não há trabalho, que é difícil obter os documentos...," diz Alejandro Benítez, presidente do clube de futebol Alma de África.

Mas Benítez aponta o dedo ao governo espanhol, que, diz, infantiliza os imigrantes, alimentando essas expectativas irreais, e à Europa, que pouco tem feito para combater as causas da imigração nos países de origem.

"O sistema de acolhimento em Espanha trata-os como crianças, dando-lhes tudo num primeiro momento sem pedir contrapartidas. Depois desse primeiro momento não há mais nada para dar e os imigrantes não se habituaram a ser autónomos. É necessário continuar a acolher e a ajudar, mas é preciso fazê-lo de forma organizada. E a União Europeia tem de ajudar a aumentar a qualidade de vida dos países de onde fogem tantas crianças," diz o presidente do Alma de África.

Momento de mudança?

Jerez de la Frontera é uma cidade com um forte tecido associativo, onde se multiplicam as organizações da sociedade civil que dão apoio aos mais necessitados, incluindo os imigrantes. Apesar dessa estrutura, que de alguma forma se reproduz em outras cidades andaluzas, algo tem vindo a mudar desde o início de 2018.

Aquela que foi até este domingo a líder do governo da Andaluzia, Susana Díaz, insistiu diversas vezes na necessidade de o governo central distribuir o "esforço migratório", excessivamente concentrado na região. A situação é particularmente complexa no caso dos menores não acompanhados. 47% dos mais de 10 mil menores migrantes não acompanhados que chegaram a Espanha nos últimos dois anos estão na Andaluzia, onde os centros de acolhimento não têm capacidade para dar resposta aos pedidos que chegam diariamente. Os serviços de apoio aos imigrantes na zona têm avisado que estão à beira da rutura.

O assistente social Michel Bustillo Garat, que trabalha com a organização que ajuda menores imigrantes Voluntarios por Otro Mundo, conhece a fundo essa realidade e aponta o dedo ao governo espanhol.

"Vejo com bons olhos a imagem de Espanha como país de acolhimento, como país aberto, mas para isso é necessário investir meios e recursos em projetos de integração. Todos os esforços de acolhimento não são acompanhados de esforços concretos de integração. Não basta pagar um bilhete e dar roupa e comida. Uma integração mal gerida leva a situações caóticas com imigrantes e isso faz com que os cidadãos comecem a olhar com medo para esses migrantes. A ausência de uma política real de integração vai alimentar o ódio," diz Garat.

Há alguns meses que o assistente social observa uma mudança de atitudes e ao nível do discurso político e da cidadania em Jerez. Tudo começou com as declarações anti-imigração de alguns políticos, algo de que não tinha memória. Depois, Michel Bustillo Garat começou a notar o descontentamento dos vizinhos que passaram a reproduzir "mitos" anti-imigração relacionados com o contágio de doenças e a escassez de trabalho para os locais. Com uma taxa de desemprego de 32%, Jerez de la Frontera é a quinta cidade espanhola com maiores índices de desocupação.

Por isso, a chegada do partido anti-imigração e anti-Islão ao parlamento andaluz não o surpreende. Ecoando as palavras do ministro do Interior italiano Matteo Salvini, o líder do Vox, Santiago Abascal, acusa as ONGs que ajudam migrantes no Mediterrâneo de colaborarem com os traficantes, defendendo o fim da imigração ilegal.

Para já, Issa Abdou não se preocupa com a ameaça populista em Espanha. Apesar de se arrepender de ter deixado os Camarões, Espanha tornou-se o seu país em 2007. Apesar de nunca ter conseguido encontrar um emprego estável e de neste momento não ter trabalho, foi em Espanha que se sentiu bem acolhido, foi em Espanha que criou a sua própria família, além da família que encontrou no Alma de África, e é em Espanha que quer ficar.

Issa fez as pazes com o facto de já não ter idade para cumprir o sonho de chegar tão longe como Lionel Messi ou Cristiano Ronaldo. Os desafios que não esperava encontrar na Europa fizeram-no perder tempo, diz. Mas não o impediram de continuar a sonhar. O novo sonho de Issa Abdou passa por obter a carteira de treinador e montar uma escola de futebol nos Camarões. Para que outros aprendam com o seu erro, para que outros encontrem uma oportunidade em cada desvio. Issa não se opõe à imigração, mas quer ajudar a contar uma outra história.

"Quero que os miúdos joguem futebol nos Camarões, quero ensinar-lhes que não precisam de vir para a Europa para sonhar. Vou dizer-lhes que na Europa, em vez de investirem tempo a lutar pelo seu sonho, vão perder tempo que é precioso. Vou dizer-lhes que em África podem usar esse tempo para se tornarem melhores. Em África, o tempo é liberdade," diz Issa Abdou.