"Estou confortável, mas não acomodado"

Almoço com Carlos Daniel, jornalista

A cada passo da vida profissional, foi demonstrando que reage bem à pressão, primeiro termo que poderia empurrar o desfecho deste almoço para o futebol. Felizmente, não se ficou por aí, longe disso. Quanto à pressão, adivinha-se que Carlos Daniel de Bessa Ferreira Alves, 46 anos, jornalista, até gostará que ela exista e que dê um contributo para que ele continue a responder e a crescer. Vive, de resto, os dias em que concretiza mais um golo, ou mais um sonho - ainda sob pressão, desta vez a do calendário da entrega do original -, não perdendo a oportunidade de responder à proposta de uma editora que agora se traduz num livro, sugestivamente intitulado Futebol a Sério.

Fica claro, por sublinhado próprio, que "não se trata de provar nada a ninguém". Depois da insistência do editor, Jorge Reis-Sá, o autor decidiu concretizar uma jogada que vem desde os anos da infância e que foi envolvendo várias modalidades técnico-táticas: de espectador entusiasta, pela mão de um avô ou com a companhia do pai (a quem o livro é dedicado), a colecionador de cromos da bola, fase em que os seus aniversários dispunham de um ponto alto com a presença dos jogadores do clube da sua terra natal, Paredes, de atleta de rua a praticante federado, de relator radiofónico a comentador televisivo. Pode dizer-se que jogou em quase todas as posições, faltando uma, eventualmente, nem por isso sumariamente posta de parte: "Nunca exerci funções profissionais num clube ou na federação, embora tenha recebido alguns convites, ou sondagens, vamos lá, para o efeito. Ou não era bem o que eu queria ou o momento não batia certo. Mas aprendi com a vida que ela é sempre capaz de nos surpreender. Ou seja, nada está definitivamente arrumado..." Depois, a surpresa: "E o mesmo vale para outro tipo de mudanças. Por exemplo, a hipótese de uma incursão na política. Não é provável, mas quem pode garantir que não aconteça?"

Se falarmos de aprendizagem, somos de novo empurrados para dentro das quatro linhas: com o passar do tempo, com muitos "treinos" (leia-se "jogos", ao vivo e na televisão), com muitas horas dedicadas à matéria, Carlos Daniel foi ganhando lastro e angariando estatuto. Hoje, desgastada e desvalorizada a expressão "comentador", ele é um dos poucos analistas do futebol (não "da bola") que vale a pena parar para ouvir. Porque pega naquilo que todos podem ver e descodifica, decifra, desvenda, desmonta, de uma forma tão acessível como convicta e fundamentada. Basta andar com ele pela rua um par de minutos para ganhar consciência de que as felicitações "anónimas" que lhe são entregues em mão, de viva voz, ficam a dever-se tanto à popularidade de uma presença constante nos ecrãs de TV nos últimos 25 anos como à qualidade intrínseca das suas intervenções. Discute, de igual para igual, o que há de mais belo e científico no futebol, com os que põem - sem falta - a mão na bola, de Fernando Santos a Paulo Bento (os mais recentes selecionadores nacionais), passando por Carlos Carvalhal, Manuel José ou Vítor Pereira. E gosta disso, dessas longas conversas, desses extensos debates, sem deixar cair a bola.

Sem bastidores, com preconceito

O sushi, que escolhemos por unanimidade, como uma verdadeira equipa, permite ir separando as várias fases do jogo, entremeando a conversa. Que ainda regressa ao livro: "Aproveitei muitas memórias, que revivi com visionamentos, com leituras, e que pro- curei enquadrar. E fiz questão de nunca deixar a dimensão daquilo que todos podem ver. Deixei de fora todos os bastidores - desde o treino aos negócios. O foco está colocado no desporto, no espetáculo, em que tantas vezes se sobrevaloriza o aleatório, o chamado fator sorte. Que existe, mas se calhar vale menos do que parece. Isto independentemente de ninguém poder adivinhar ou prever tudo o que vai passar-se quando o árbitro apita para começar... Mas o livro aborda o que se vê, por princípio de arrumação e, talvez, porque seja aquilo que verdadeiramente me interessa no futebol."

O mesmo futebol que lhe suscita, hoje, uma diferente colocação no terreno: ao entusiasta terá sucedido o analista? "Continuo a ter um enorme prazer em assistir a um bom jogo. Mas, reconheço, passei a precisar de uma atenção diferente, tiro muitas notas, tento relacionar o que se está a passar com outros jogos... Outra coisa que aprendi: nem sempre se justifica termos o olhar colado à bola porque acontece o mais importante estar a passar-se longe do local onde ela está..."

Há, presume-se, uma contrapartida (quase um contra-ataque), nesta paixão pelo futebol: a que vem do preconceito de ser um jornalista conotado com "a bola". Já foi alvo de "entradas à canela"? "Mentiria, se dissesse que não... Mas nunca gastei muito tempo a pensar nisso. Profissionalmente, dedico-me a outros campos - há mais de 20 anos que apresento o Jornal da Tarde, da RTP, participo em debates e entrevistas políticas, faço parte das equipas das noites eleitorais. E procuro preparar-me sempre o melhor possível para cada uma dessas ocasiões. Por outro lado, não levo muito a sério a desconsideração pelo futebol que, muitas vezes, se transforma em colagem, quando dá jeito... Continuo a levantar a questão: haverá alguma outra atividade em que sejamos tão bem-sucedidos? Com uma seleção firme entre as dez melhores da FIFA e com os clubes a empurrarem-nos para o quinto lugar na UEFA? Temos um dos melhores treinadores [José Mourinho] e um dos melhores jogadores [Cristiano Ronaldo] do mundo - em que outro setor de atividade é que isso acontece?"

Manias, etapas e desafios

Estudo à parte, Carlos Daniel continua a jogar - e a mobilizar outros para o - futebol. Hoje mesmo, dia de final de Liga dos Campeões, vai descobrir tempo para defender as cores da RTP, noutro retângulo que não o mais habitual e visível, numa meia-final de um torneio dos media, mas nem por isso mediático. Também não dispensa as cantorias e, para o efeito, formou com João Ricardo Pateiro (da TSF) e Filipe Fonseca (músico, "o homem que nos serve de rede") a Tertúlia dos 40, trio que, em palco, casa canções de tempos idos - fundamentalmente das décadas de 1980 e 1990 - com histórias divertidas. A brincar, mas sempre com o lado sério de quem não passa gato por lebre, já vão em dezenas de espetáculos.

Conta - e muito - a família, que se habituou aos seus horários à partida disfuncionais e às suas ausências, sem prejuízo da harmonia. À mulher, Alexandra, psicóloga de profissão, o jornalista reconhece, entre muitas outras qualidades e atributos, um papel indispensável: é ela quem aparece a "dobrá-lo" quando ele parte para o "ataque", quem garante os "equilíbrios defensivos" e a estabilidade. Das filhas, diz que se habituaram a ver "sair o pai com um malão": "Só não acharam muita graça quando fui em reportagem ao Japão [em março de 2011] porque, na altura, já sabiam o que era um tsunami e o que era um tremor de terra... Têm uma vantagem, o facto de eu não ter vocação nem gosto pelo papel de repórter de guerra..." Para já, deixem-se em sossego Carolina e Francisca, que, à mistura com a ternura paterna, estão na base de um foco de angústia num homem que não costuma perder-se em antecipações. Mas que sabe isto: "Nunca vou estar preparado para o dia em que elas saírem de casa..." Lá chegará.

A referência a essa viagem ao Japão, a outro trabalho longínquo e mais recente, em Cuba, trouxe à superfície outra faceta de Carlos Daniel, muito mais conhecido como pivot, moderador e analista: o repórter. Uma via para explorar: "Gosto muito. Mas percebo que a RTP, que me solicita constantemente para outros tipos de trabalho, tenha de repartir essas saídas, ainda mais quando, como disse, a reportagem de guerra não casa comigo."

Já chegámos aos cafés quando tocamos na sua passagem por Lisboa e pela SIC (2000-2001). Para muitos, esse arribar à capital seria uma mudança de sonho e um bilhete sem volta. Mas Carlos Daniel regressou, à RTP e ao Porto: "A explicação não podia ser mais simples: a proposta que a RTP me fez, nessa altura, foi aliciante. Mas nunca me ouvirão dizer que não gostei muito de viver em Lisboa e de ter passado pela SIC. Além do mais, essa decisão de voltar - que me permite, por exemplo, ter as minhas filhas próximas de um núcleo familiar mais alargado, sabendo eu que elas cresceriam igualmente felizes e saudáveis se a mãe e o pai tivessem optado por continuar em Lisboa - prende-se com uma noção que ainda não alterei: não foi, como hoje continua a não ser, irreversível. Quero dizer com isto que me sinto bem na RTP, que me sinto aproveitado e útil nas diferentes coisas que faço. Mas ninguém pode garantir que não apareça um daqueles desafios que, às vezes, nós tomamos como irrecusáveis. Em resumo: estou confortável, mas não acomodado." Não é recado. É a palavra de alguém que, na vida como no futebol, não joga à defesa. E é um dos (poucos) jornalistas "ponta-de-lança" que conheço.

BB Villa, Gaia

› 1 couvert

› 1 tempura de camarão

› 2 combinados de sushi

› 2 copos de vinho branco

› 2 finos

› 2 cafés

Total: 50euro

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