Triunfo de Lula no Brasil: uma segunda onda de esquerda na América Latina?

De acordo com Michael Shifter, ex-presidente e investigador sénior do "think tank" Diálogo Interamericano, a América Latina não se está a tornar mais esquerdista. O que acontece é que as pessoas estão "à procura de uma alternativa" à medida que a pobreza e a desigualdade se aprofundam na região.

Com a vitória na segunda volta das eleições presidenciais brasileiras, Lula da Silva consagra o que parece ser uma nova onda da esquerda na América Latina, embora com muitas nuances.

Presidente entre 2003 e 2010, Lula ganhou um terceiro mandato no domingo (30), vencendo Jair Bolsonaro por menos de dois pontos percentuais (50,9% contra 49,1% dos votos, respetivamente).

Com esta vitória, uma segunda vaga de esquerda parece estar a instalar-se na região, do México ao Chile, recordando o início dos anos 2000. Os analistas concordam, contudo, que desta vez é muito diferente, com uma tendência mais para o pragmatismo do que para a ideologia.

Os partidos de direita e centro-direita perderam o poder nas recentes eleições nas Honduras, Bolívia e Argentina, bem como na Colômbia, que elegeu o primeiro presidente de esquerda da sua história, apesar da desconfiança, como no resto da região, de tudo o que os conservadores associam ao "comunismo".

"Não é que os latino-americanos estejam a tornar-se mais esquerdistas", disse à AFP Michael Shifter, ex-presidente e investigador sénior do "think tank" Diálogo Interamericano: "É mais uma tendência de rejeição do que qualquer outra coisa ... de pessoas à procura de uma alternativa", acrescentou. O salto para a esquerda foi impulsionado pela crise económica, que foi agravada pela pandemia da covid-19.

A América Latina foi uma das regiões mais duramente atingidas. Muitos sentiam-se ignorados pela classe política à medida que a pobreza e a desigualdade se aprofundavam. E a votação da punição teve o seu preço.

A primeira vaga

No Brasil, Bolsonaro era um líder particularmente controverso, e a sua rejeição impulsionou o voto para Lula, um ícone da esquerda brasileira e latino-americana.

O presidente da extrema-direita é considerado por muitos como racista, sexista e homofóbico, um político oportunista sem escrúpulos sobre ofender, ou incitar à violência, em defesa das suas causas.

Continua, no entanto, a contar com o apoio de metade do eleitorado que valoriza a sua agenda de valores tradicionais e o seu apoio ao agronegócio, em detrimento da preservação da floresta amazónica.

Lula, por seu lado, é reconhecido por ter tirado cerca de 30 milhões de brasileiros da pobreza durante os seus anteriores mandatos, que terminaram com uma taxa de aprovação próxima dos 90%, embora os escândalos de corrupção que o colocaram temporariamente na prisão entre 2018 e 2019 tenham manchado a sua imagem.

Fez parte da "Maré Rosa" original, com a qual líderes como Evo Morales na Bolívia, Michelle Bachelet no Chile, Rafael Correa no Equador, e Hugo Chávez na Venezuela chegaram ao poder.

"Havia uma onda muito otimista de governos de esquerda que tentavam reduzir a pobreza, lidar com a desigualdade", comenta Guilherme Casarões, analista político da Fundação Getúlio Vargas (FGV). "E as condições económicas eram muito melhores. Depois veio a crise financeira global que devastou a América Latina dependente das exportações, provocando uma mudança reativa para a direita. Mas estes governos não lidaram eficazmente com a situação, agravada por uma pandemia que revelou a desigualdade no acesso à saúde e à educação", completou.

As diferenças

Esta nova "maré", se assim pode ser classificada, não tem o motor ideológico que moveu a anterior.

"Os governos de esquerda que temos hoje na América Latina são muito diferentes uns dos outros", insiste Casarões.

"Há governos autoritários como na Nicarágua e na Venezuela. Temos populismo de esquerda no México, e governos relativamente fracos, no Chile, Colômbia e Argentina", acrescenta.

Assim, Lula - considerado um esquerdista pragmático e moderado, e não um radical ou populista - terá dificuldades com qualquer projeto para promover a integração regional.

Para Shifter, a vitória de Lula faz parte de uma tendência global anti-incumbente, indicativa da derrota de Bolsonaro.

Mas, "acreditem-me, se Lula não tiver sucesso, o contrário pode acontecer em quatro anos. Se ele não satisfizer os eleitores brasileiros, eles rejeitá-lo-ão e procurarão alguém mais à direita", diz Leonardo Paz, um consultor do "think tank" International Crisis Group.

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