Rússia festeja anexação da Crimeia. Já se combate no centro de Mariupol
Milhares foram ao grande evento patriótico num estádio de Moscovo, mas uma "falha técnica" cortou o discurso de Putin em direto na televisão. Biden alertou Xi para "consequências" de apoio à invasão.
No 23.º dia de guerra na Ucrânia, quando já se combatia no centro de Mariupol, a Rússia festejava no estádio Luzhnik, em Moscovo, o oitavo aniversário da anexação da Crimeia. A festa patriótica contou com a presença de milhares de pessoas - muitas com bandeiras com a letra Z, símbolo de apoio ao exército russo - e o palco incluía uma faixa onde se lia "Por um mundo sem nazismo". Mas nem tudo correu como o previsto: quando o presidente russo, Vladimir Putin, discursava em direto, houve um corte na emissão na televisão estatal, com o Kremlin a apontar mais tarde para uma "falha técnica". O discurso passou 15 minutos mais tarde, em diferido.
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"As palavras da Bíblia Sagrada vêm-me à cabeça. Não há maior amor do que dar a vida pelos amigos", disse Putin, citado pela agência russa TASS, ao justificar a invasão da Ucrânia para proteger a população russófona no leste do país. "Ombro a ombro, eles ajudam-se e apoiam-se mutuamente", defendeu o presidente, reiterando que os líderes ucranianos são "neonazis" e insistindo na ideia de que a Rússia atuou para evitar um "genocídio". Putin disse ainda que "há muito tempo que não tínhamos uma união assim", sendo saudado pela multidão. Segundo a polícia de Moscovo, 200 mil pessoas estavam dentro e nos arredores do estádio.
Enquanto a Rússia festejava a anexação da Crimeia em 2014 (não reconhecida pela comunidade internacional), na Ucrânia continuavam os bombardeamentos. Um dos locais atingidos ontem foi uma fábrica de reparação de aviões próximo do aeroporto de Lviv, a apenas 70 quilómetros da fronteira com a Polónia - um país membro da NATO. Não houve vítimas nesse ataque, mas uma pessoa morreu quando um rocket russo caiu num edifício residencial em Kiev e outra num ataque que destruiu um edifício de seis andares em Kharkiv.
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Segundo as autoridades de Kiev, desde a invasão russa já morreram 222 pessoas na capital, incluindo 60 civis. Há ainda registo de 889 feridos, dos quais 241 civis e 18 crianças. Em todo o país, são mais de 109 crianças mortas e 130 feridas desde o início do conflito, segundo a Procuradoria-Geral. O balanço das Nações Unidas de vítimas confirmadas é menor (com a nota de que os números estão aquém da realidade), falando em pelo menos 816 mortos entre a população civil, incluindo 58 crianças, e 1333 feridos. Pelo menos 36 casas, cinco edifícios privados, seis escolas e quatro jardins-de-infância foram destruídos em Kiev, havendo ainda 55 fachadas danificadas.
Crimes de guerra
À medida que aumentam os países que acusam a Rússia de crimes de guerra na Ucrânia, com o próprio presidente norte-americano, Joe Biden, a chamar "criminoso de guerra" - além de "ditador assassino" - a Putin, Moscovo responde acusando Kiev do mesmo. "Foi chamada a atenção para os numerosos crimes de guerra cometidos diariamente pelas forças de segurança ucranianas, em particular os ataques massivos com rockets e artilharia nas cidades do Donbass", segundo o relato feito pelo Kremlin do telefonema entre o presidente russo e o homólogo francês.
Putin disse também a Emmanuel Macron que o exército russo "está a fazer todo o possível para salvaguardar as vidas dos civis pacíficos, incluindo a organização de corredores humanitários para a sua retirada em segurança", acrescentou o Kremlin. De acordo com o Eliseu, o presidente francês expressou por seu lado a sua "extrema preocupação" com a situação em Mariupol, apelando a um "cessar-fogo", além do "levantamento do cerco" à cidade, permitindo a entrada de apoio humanitário.
Nesta cidade, temia-se o pior depois de um teatro que servia de abrigo para mais de mil pessoas ter sido destruído num bombardeamento. Contudo, o abrigo antiaéreo resistiu ao impacto e ontem as autoridades locais confirmavam num primeiro balanço oficial que não terá havido mortos, apenas um ferido grave.
As operações de retirada dos escombros foram dificultadas pelos ataques constantes. Segundo o Ministério da Defesa da Rússia, as tropas russas e os aliados separatistas das autoproclamadas repúblicas de Donetsk e Lugansk estão a combater no centro de Mariupol. Uma informação confirmada pelas autoridades locais ucranianas. Caso os russos assumam o controlo desta cidade portuária no sul da Ucrânia, criam um corredor entre a Crimeia e a região de Donbass, cortando todo o acesso ucraniano ao mar de Azov.
Negociações
À medida que continuam os ataques no terreno, seguem as negociações entre Moscovo e Kiev. Segundo o principal negociador russo, haveria progresso na proposta de a Ucrânia se tornar num estado neutro. "O tópico de um estatuto neutral e da não adesão da Ucrânia à NATO é um dos pontos fundamentais das negociações, é este o ponto em que ambas as partes aproximaram as suas posições o máximo possível", disse Vladimir Medinsky, citado pelas agências de notícias russas.
Contudo, os negociadores ucranianos voltaram a negar essa informação. "As declarações do lado russo são apenas as suas posições de partida. Todas as declarações visam, entre outras coisas, provocar tensão nos media. As nossas posições não mudaram. Cessar-fogo, retirada das tropas e fortes garantias de segurança com fórmulas concretas", escreveu Mikhail Podolyak no Twitter.
Joe Biden vs. Xi Jinping
No plano internacional, o presidente norte-americano falou ontem duas horas por videoconferência com o homólogo chinês, Xi Jinping, alertando-o para as "consequências" de Pequim dar "apoio material" à Rússia na guerra "brutal" contra a Ucrânia. Washington tem alegado que Moscovo já pediu apoio financeiro e militar à China, numa tentativa de contornar o isolamento provocado pelas sanções ocidentais, mas tanto os russos como os chineses negaram.
A Casa Branca não disse qual foi a resposta de Xi Jinping ao alerta de Biden. O presidente chinês terá dito que a guerra "não é do interesse de ninguém", sem contudo condenar a invasão, lembrando que "todos os lados" precisam de apoiar o "diálogo" entre Moscovo e Kiev. De acordo com a televisão estatal chinesa, também defendeu que os EUA e a NATO deviam dialogar com a Rússia "para abordar o cerne da crise na Ucrânia e aliviar as preocupações de segurança" de ambos os países.
susana.f.salvador@dn.pt