"Para Putin é bom que não seja a NATO a fazer guerra à Rússia"

Passado um ano sobre o início da invasão da Ucrânia pela Rússia, Nuno Severiano Teixeira, professor catedrático da Universidade Nova e antigo ministro da Defesa e da Administração Interna, diz que ficou surpreendido pela capacidade de resistência dos ucranianos e pelos dotes de liderança de Volodymyr Zelensky. Também destaca a coesão demonstrada pelos Estados-membros da União Europeia e da Aliança Atlântica na resposta às ambições territoriais de Vladimir Putin.

Nuno Severiano Teixeira nasceu em Bissau, na então Guiné portuguesa, há 65 anos. É académico, professor catedrático na Universidade Nova de Lisboa, foi vice-reitor, dirigiu o Instituto Português de Relações Internacionais, foi visiting professor na Universidade de Georgetown, nos Estados Unidos, foi ministro da Administração Interna no XIV governo constitucional, o segundo de António Guterres, e ministro da Defesa Nacional no XVII governo constitucional, o primeiro de José Sócrates. É autor de vários livros e artigos científicos nas áreas de história militar, relações internacionais, segurança e defesa e construção europeia e hoje convidado a analisar um ano de impacto da invasão da Ucrânia.

O que mais o surpreendeu nestes 365 dias de invasão e de guerra da Federação Russa na Ucrânia?
É um ano inevitavelmente marcado pela guerra na Ucrânia. O que mais me surpreendeu foi, em primeiro lugar, a forma como o povo ucraniano e o seu presidente, por um lado, e os aliados ocidentais, por outro, reagiram à agressão russa. O Ocidente tinha sido muito suave nas reações anteriores às agressões russas, assim foi em 2008 na Geórgia, voltou a acontecer em 2014 na Crimeia e, portanto, há uma mudança de atitude em 2022 com a invasão da Ucrânia. De facto, isso impressionou-me, assim como a capacidade de resistência do povo e exército ucranianos, a capacidade de liderança do presidente Volodymyr Zelensky e a unidade com que os aliados ocidentais responderam. Primeiro, a unidade e coordenação na resposta entre americanos e europeus e, em segundo lugar, o reforço do vínculo transatlântico que tinha atravessado um período difícil e de crise. Além disso, a unidade e reforço da NATO, aliás, lembremo-nos que há pouco mais de um ano o presidente Macron tinha dito que estava "cerebralmente morta", mas está viva e recomenda-se. Tem agora um inimigo concreto a leste e volta a ter a sua missão tradicional da defesa coletiva. Também me admirou a capacidade de resposta da União Europeia, há muitas nuances entre os vários Estados-membros, mas apesar disso, quer do ponto de vista das sanções económicas, quer do ponto de vista da política diplomática e da ajuda militar, a União Europeia tem-se mantido unida. Tudo isso, em certo sentido, foram surpresas positivas.

"O que mais me surpreendeu foi, em primeiro lugar, a forma como o povo ucraniano e o seu presidente, por um lado, e os aliados ocidentais, por outro, reagiram à agressão russa. O Ocidente tinha sido muito suave nas reações anteriores às agressões russas, assim foi em 2008 na Geórgia, voltou a acontecer em 2014 na Crimeia."

Chegou a achar que a guerra poderia ser rápida? Ou seja, que a Rússia faria um avanço, conseguiria conquistar alguns objetivos, depois haveria uma espécie de cessar-fogo e congelava-se mais um conflito
Essa unidade transatlântica também ajuda a explicar porque é que a guerra demora mais, mas acho que há outros fatores que são diferentes. Em primeiro lugar, o fator resposta das forças armadas ucranianas e a resistência do povo ucraniano. Depois, há o apoio inequívoco do ponto de vista diplomático, económico e da ajuda militar, por parte do Ocidente de forma determinada. Mas há também, digamos, fraquezas do lado russo e isso fez com que o primeiro objetivo de guerra relâmpago, o máximo de violência no mínimo de tempo, chegar rapidamente a Kiev, derrubar o governo, instalar um governo fantoche e depois negociar as condições com esse governo, isso falhou.

várias teses relativamente à tentativa de tomada de Kiev. Uma é essa, dar um susto ao governo ucraniano para forçar uma rendição ou recuo, mas há outra que passa pela Rússia ter feito a ameaça de atacar Kiev para obrigar a Ucrânia a defender menos o Donbass e a permitir um avanço nessa frente. Está mesmo convencido de que o objetivo russo era a queda do governo ucraniano e a sua substituição por um dócil?
Penso que sim, penso que era o objetivo inicial. Porque se assim não fosse, não tinha havido aquela concentração de forças que se dirigiam a Kiev e todo aquele comboio militar, mas que depois não teve capacidade para atingir esse objetivo. Não tenho as informações dos serviços competentes nessas matérias, mas a ideia que dá é que o objetivo era de facto a tomada de Kiev, a queda do governo e a negociação com um governo que fosse favorável à Rússia. Porque, naturalmente, tudo isso se faria com muito menos custos para a Rússia, quer do ponto de vista militar, económico e político. No fundo, posso estar errado, mas o que me parece que era o objetivo era criar uma Bielorrússia dois. Tudo isso facilitaria a reconstituição do espaço pós-soviético com a hegemonia russa, sem os custos que esta guerra está a ter.

"Desde que a Rússia falhou o seu primeiro objetivo da guerra relâmpago sobre Kiev, o que tem estado a fazer é justamente uma guerra de atrição, uma guerra de desgaste e de destruição de alvos civis, para subverter e minar a capacidade de vida normal das populações."

Fez toda a diferença Zelensky ficar lá?
Quando há pouco falava da capacidade de liderança, era precisamente por aí que começava. Isto é, um presidente que não era conhecido, que vinha de uma carreira de comediante e sem qualquer experiência política ou de liderança militar, quando lhe é oferecida a possibilidade de se exilar e proteger, ele escolhe ficar e encarar com a coragem que temos visto toda aquela situação.

Estamos num momento da guerra em que há algum ascendente por parte da Rússia e há uma dificuldade da Ucrânia em conter alguns avanços, ainda que não significativos, das tropas russas. Se a Rússia vencer esta guerra do ponto de vista militar, o que é que isso quer dizer para a Europa e para a comunidade ocidental? Podemos dizer que é o fim da União Europeia e da NATO?
Ainda é muito cedo para dizermos qual será o resultado final. As guerras têm, normalmente, três fases completamente distintas, segundo a tipologia de quem estuda os conflitos. A primeira fase, consiste no primeiro ataque, no desencadear do conflito e geralmente é relativamente rápida. Depois, há uma segunda fase de conquista ou luta pela supremacia, pela vantagem na guerra, essa é a fase mais longa, normalmente, e é também a etapa em que os beligerantes procuram superioridade militar no terreno para terem superioridade política para impor as condições na mesa de negociações de paz. Por fim, resta a fase final do conflito. Acho que agora estamos no meio da segunda fase e isso faz com que seja muito difícil dizer qual será o resultado, por uma razão muito simples: nenhum dos dois beligerantes, neste momento, se dá por vencido. Pelo contrário, ambos pensam que têm capacidade para ganhar a guerra. Portanto, ao terem a ideia de que podem ganhar a guerra, querem continuar a combater para conquistar a tal vantagem no terreno que lhes possibilite impor as condições da paz. Desse ponto de vista, acho muito difícil dizer quem vai ganhar ou até temos outra possibilidade, a de conflito congelado.

Porque é que o Ocidente, e também a sua análise, coloca a Rússia como ameaça direta à Europa e a China apenas como um desafio indireto? Não está a ser condescendente com a China?
Não é ser condescendente, tem a ver com a natureza das duas potências. Estamos num momento de conflito entre grandes potências e em relação à Rússia a Europa tem contiguidade geográfica e a Rússia representa uma ameaça territorial direta à fronteira leste da Europa, como estamos a ver na Ucrânia. A China coloca outro tipo de desafios que não quer dizer que sejam menos importantes, pelo contrário, coloca desafios de natureza indireta e que não são territoriais, mas que têm a ver com a capacidade de autonomia da Europa e da União Europeia em relação à dependência da China. E isso é um desafio muito importante, embora indireto, mas muito importante do ponto de vista económico e tecnológico. Obviamente, tudo isso conta, mas são ameaças de natureza diferente, mas não considero menor.

"Estamos num momento de conflito entre grandes potências e em relação à Rússia a Europa tem contiguidade geográfica e a Rússia representa uma ameaça territorial direta à fronteira leste da Europa, como estamos a ver na Ucrânia. A China

Como é que os países da NATO têm insistido com a Ucrânia na ideia de que tem nesta primavera uma janela de oportunidade para virar a guerra, quando ainda não conseguiram fazer chegar à Ucrânia os equipamentos militares mais avançados que prometeram? Não estarão, de alguma forma, a vender banha da cobra?
Não estou convencido que estejam a vender banha da cobra. A NATO, enquanto instituição e organização, é uma aliança defensiva, portanto, só entra quando um dos seus membros é atacado e invoca o artigo 5.º. Agora, coisa diferente é os Estados-membros da NATO, a nível nacional, darem apoio a vários níveis ao esforço de guerra na Ucrânia. Estão a fazê-lo pela defesa da Ucrânia, mas também por uma questão de preservar o direito internacional, acho que é algo que corresponde aos princípios e valores dos Estados ocidentais. Aliás, Putin tem dito muitas vezes que a NATO está em guerra.

Exatamente, o outro lado vê a NATO como estando envolvida na guerra.
Para Putin é bom que não seja a NATO a fazer guerra à Rússia, porque se até agora a Rússia ainda não conseguiu vencer a Ucrânia, o que faria se fosse a NATO a entrar em guerra? São coisas muito diferentes.

Desde o início, a palavra "guerra" nunca entrou na terminologia russa, utilizam uma série de eufemismos em relação ao que está a fazer. A sensação que dá é que a Rússia não está a utilizar todo o seu potencial militar, e nem sequer falo da questão das armas nucleares. Poderia fazer uma série de ataques muito mais destrutivos a várias cidades do ocidente da Ucrânia que não têm sido atacadas. Isto é, dá a sensação de que a Rússia, por questões de discurso, não usa toda a sua força. Há possibilidades de a Rússia aumentar a força, ainda que seja para destruir e não para conquistar?
Para destruir diria que sim, mas acho que o que faz o desequilíbrio extraordinário de potencial entre a Rússia e a Ucrânia é o número de efetivos militares. É essa a grande diferença entre o exército ucraniano e a capacidade extraordinária de mobilização de homens, e ao mesmo tempo de crueza ou indiferença perante aqueles que caem, que a Rússia tem tido. Estamos a falar na guerra no terreno, outra coisa é a capacidade de provocar destruição em infraestruturas, nas cidades e na população civil através de mísseis.

Mas a Rússia tem sempre essa possibilidade de aumentar a destruição se quiser forçar negociações, mesmo que não consiga conquistar?
Não sei, depende, essa carga poderá continuar. Aliás, desde que a Rússia falhou o seu primeiro objetivo da guerra relâmpago sobre Kiev, o que tem estado a fazer é justamente uma guerra de atrição, uma guerra de desgaste e de destruição de alvos civis, para subverter e minar a capacidade de vida normal das populações. É isso que a Rússia tem estado a fazer. Portanto, capacidade para aumentar, certamente que sim, mas a Ucrânia também terá cada vez mais capacidade quando chegarem os meios militares de defesa antiaérea mais sofisticados que vêm do Ocidente e, sobretudo, de longo alcance para neutralizarem essa capacidade russa mais perto do ponto de onde sai.

Há alguma linha vermelha em termos de doutrina quanto ao material que se pode enviar para um país em guerra? Isto é, blindados pode enviar-se, mas aviões já pode ser considerado pela Rússia um ato de guerra por parte do Ocidente?
Não sou especialista em matéria militar, por isso teriam de falar com quem sabe, mas o que me parece, do ponto de vista político, é que o envio de material militar do Ocidente para a Ucrânia, é um envio que tem sido operado com a maior das prudências. E estou certo de que não o fazem e não dão o passo seguinte sem verem realizadas duas condições. A primeira, é ver qual é o efeito no terreno do passo anterior, ou seja, foram enviados carros de combate que ainda não chegaram à frente de guerra, mas é preciso que cheguem e ver que efeito tem esse material na condução do conflito e, uma vez avaliado o seu efeito, pode pensar-se no passo seguinte. Em segundo lugar, acho que os serviços competentes dos países ocidentais, particularmente os EUA e alguns países europeus, estão naturalmente com muita atenção àquilo que é a resposta russa. Não vão avançar nem vão dar passos quando tiverem sinais de que há uma subida de patamar. Tem havido sempre uma lógica de muita prudência ao longo de todo este conflito por causa disto. A lógica com que os países ocidentais estão a fazer isto não é com a perspetiva de extensão da violência, mas sim da sua contenção. Lembrem-se daquele episódio em que caíram mísseis em território polaco: podia ter desencadeado um conflito de mais larga escala, mas não aconteceu.

Mas há pouco mais de meio ano, a maior parte dos líderes descartava a hipótese de enviar carros de combate, mas agora é algo que está adquirido.
Certo, por isso é que digo que se vai vendo passo a passo, sem provocar a escalada.

Mas até onde pode ir este envolvimento indireto da NATO? Acaba no momento em que a Rússia use armas nucleares táticas, por exemplo
Ou químicas e biológicas, mas não sei, os próprios países, especialmente as grandes potências, terão sobre isso uma responsabilidade particular. O que sabemos até agora é que a lógica tem sido de prudência e contenção da violência. Poucos dias antes do conflito, a CIA e as forças armadas norte-americanas, tendo sabido que ia haver a invasão, informaram o presidente Joe Biden e, nessa altura, o chefe de Estado-Maior-General das Forças Armadas disse ao presidente qual era para eles o estado da questão. A questão central era como é que os Estados Unidos vão defender a ordem internacional baseada em regras das Nações Unidas e a soberania da Ucrânia, contra uma grande potência nuclear, sem provocar uma guerra global. Posto isto, deu ao presidente quatro condições: primeiro, não fazer um conflito direto entre os Estados Unidos e a Rússia ou a NATO e a Rússia; segundo, conter o conflito dentro das fronteiras ucranianas; terceiro, manter a unidade transatlântica e, em particular, a unidade e reforço da NATO; e em quarto lugar, dar à Ucrânia, progressivamente, o material militar que precisasse para exclusivamente defender as suas fronteiras.

Ou seja, a Ucrânia não pode atacar a Rússia?
É esse o ponto. Até agora, todas estas condições se têm verificado e, de facto, não tem havido o desviar para um conflito global, justamente por isso. E esse ponto que lhe acabo de referir é muito importante, porque a Ucrânia está exclusivamente a defender-se e a operar dentro do seu território, procurando expulsar as forças russas do seu território, mas não indo para fora da sua própria fronteira. E esse limite tem sido rigorosamente observado.

Com aquilo que temos no terreno agora e com as condições que referiu, parece afastado o risco de uma guerra total?
É verdade. Se essas condições continuarem a verificar-se e a lógica de prudência e contenção da administração da violência continuar por parte do Ocidente, é provável que isso aconteça. Mas atenção, as guerras têm imponderáveis, há momentos e factos - como o caso dos mísseis que caíram na Polónia há uns meses -, que podem virar o destino da guerra. Por exemplo, antes do ataque alemão ao Lusitânia quem é que imaginava que os Estados Unidos iam entrar em guerra e que uma guerra que era estritamente europeia seria a Primeira Guerra Mundial? Ou antes do ataque a Pearl Harbor, que os Estados Unidos iam entrar na guerra e acontecer a Segunda Guerra Mundial? É evidente que há essa prudência e esse cuidado, mas há imponderáveis.

Durante aquela visita que até foi muito criticada do chanceler alemão Olaf Scholz, há uma declaração do presidente Xi Jinping de que a China veria com extremo desagrado qualquer uso de armas nucleares no conflito da Ucrânia. Vê algum papel da China diretamente neste conflito?
A minha impressão é que a China tem neste conflito uma posição bastante incómoda e, por isso, tem tido alguma discrição e até alguma ambiguidade. E porque é que me parece incómoda? Porque, por um lado, a China tem coincidência de valores e interesses com a Rússia no plano político, diplomático e internacional. Isto é, há alguma proximidade entre regimes autocráticos, há aqui alguma desconfiança e até a vontade de rever a ordem internacional liberal, mas também da hegemonia americana. Desse ponto de vista, a Rússia e a China têm interesses e valores que coincidem e que as aproximam. Por outro lado, se olharmos para os aspetos de natureza económica, e até tecnológica, a economia da China é a segunda maior do mundo, tem uma relação estreita de dependência com os mercados internacionais. Ou seja, está em pleno integrada na globalização, portanto, qualquer coisa que ponha em causa essa interdependência estrutural, prejudica a sua economia e o desempenho da própria China. Portanto, a meu ver, a China está numa posição relativamente incómoda, o que resulta em sinais contraditórios. Por um lado, não condena a guerra, não dá armas à Rússia, mas apoia a narrativa da Rússia em vários sentidos, tal como a Rússia tenta investir nas relações. Portanto, é uma posição que tem sido relativamente difícil. Agora pergunta-me: a China pode ter um papel como negociador? Não sabemos o destino da guerra, mas se há duas potências que podem ter um papel nesse aspeto de negociação, são os Estados Unidos e a China. Isto é, os Estados Unidos do lado ucraniano, condicionando um pouco a performance ucraniana, e a China relativamente à Rússia, porque a Rússia hoje depende da China. Esta também é uma alteração nas relações entre as duas potências do antes da guerra para o pós-guerra, porque antes a Rússia é que tinha a supremacia e a China precisava dela na sua rivalidade com os Estados Unidos, mas hoje é precisamente o contrário.

Mas interessa-lhes fazer algum trabalho que se veja pela paz?
Depende do estado a que as coisas cheguem, cada um deles também está a olhar para a capacidade que os beligerantes têm de ganhar maior influência no terreno. No fundo, o que está em causa é quem está em melhores condições para ditar as condições da paz.

Não pedindo futurologia, não é provável que esta guerra acabe com um vencedor total? Haverá necessidade dos dois lados de aceitar que perderam alguns dos objetivos, mas será mais difícil para Zelensky do que para Vladimir Putin?
Acho que os dois têm muita dificuldade em aceitar, porque se isso é verdade para Zelensky, não é menos verdade para Putin, porque o investimento pessoal, acima de tudo, que fez nesta guerra, não lhe dá margem de recuo. Ao contrário do que acontece nas democracias, em que os líderes perdem as guerras e perdem o poder, em regimes autocráticos, não só perdem o poder, como muitas vezes perdem a vida. Ambos têm dificuldade em ceder e há aqui também um problema de face saving. Quais são as maneiras de terminar a guerra? Aquilo que os estudos sobre as guerras nos dizem é que há três fórmulas de terminar uma guerra: a primeira, é a da vitória total, completa e da capitulação do inimigo, foi o caso da Segunda Guerra Mundial com a Alemanha e o Japão; a segunda, é a do Armistício, ou seja, a guerra não acabou, mas faz-se uma trégua que reflete do ponto de vista político aquilo que é a situação militar no terreno; a terceira, é aquela em que não há vencedores nem perdedores e há um conflito congelado. Digamos, aceita-se o status quo e, na maioria das vezes, faz-se uma separação entre os dois beligerantes na zona onde está a linha do conflito, criando uma terra de ninguém, militarizando os dois lados que é o modelo coreano desde 1953. Não sei qual deles vai acontecer.

Não é uma boa notícia para os ucranianos.
Nem para os russos, mas para os ucranianos sobretudo.

​​​​​​​​​​​​​​Isto faz pensar no que pode ser o futuro de uma ordem de segurança internacional em que a Rússia vai continuar onde está, tem a geografia que tem, tem o peso que tem em termos de dimensão e recursos, e vai ser necessário reintegrar a Rússia na Comunidade das Nações, uma tarefa que será muito complexa do ponto de vista político.
Muito complexa. Estamos mergulhados na transição, é muito difícil hoje antevermos o que vai acontecer, mas se algumas das tendências que vemos hoje vierem a concretizar-se, acho que vamos assistir a dois movimentos quase que paralelos. O primeiro, e do ponto de vista económico, é algum recuo do processo de globalização e, portanto, a desglobalização total e a criação de áreas mais restritas e reduzidas do ponto de vista geográfico, no que diz respeito às cadeias de valor. Do ponto de vista político e internacional, a tendência que estamos a ver é a orientação para a multipolarização, mas para uma multipolarização organizada em duas áreas: uma em torno do eixo sino-russo, portanto, que agregará algumas potências de tendência autocrática; e um segundo eixo que agregará as democracias. Isto é o que podemos entrever, mas tenho dificuldades em dizer o que vai seguramente acontecer.

"A tendência que estamos a ver é a orientação para a multipolarização, mas para uma multipolarização organizada em duas áreas: uma em torno do eixo sino-russo, portanto, que agregará algumas potências de tendência autocrática; e um segundo eixo que agregará as democracias."

Imaginemos um cenário em que Donald Trump podia regressar à presidência dos Estados Unidos. A própria política interna da América pode surpreender-nos neste conflito entre democracias e autocracias?
Sim, mas vamos ver, a América de Biden e a América de Trump são muito diferentes, não só no plano interno, mas por maioria de razão também no plano internacional.

Mas Trump já é passado ou ainda pode ser alguma coisa?
Mesmo que Trump não seja futuro, essa questão faz sentido. O trumpismo está lá, mas mais do que isso, o que está em causa não é só Biden e Trump, são duas conceções diferentes da América e do seu lugar no mundo. Porque, mesmo que não haja Biden nem Trump, há o isolacionismo que é uma constante flutuante da política externa americana e há o internacionalismo liberal, que tem dominado a orientação externa americana desde a Segunda Guerra Mundial, com exceção do período Trump. Portanto, a questão coloca-se com estes dois protagonistas, aliás, Trump tem um certo fascínio pelas autocracias e pelos ditadores e, como vimos durante a sua administração, Putin tem algum ascendente pessoal sobre o próprio Trump. Pelo contrário, Biden tem uma relação dura e difícil com o próprio Putin, mas como digo, a questão vai além das personalidades, tem a ver com essas duas posições da política externa americana.

"O que está em causa não é só Biden e Trump, são duas conceções diferentes da América e do seu lugar no mundo. Porque, mesmo que não haja Biden nem Trump, há o isolacionismo que é uma constante flutuante da política externa americana e há o internacionalismo liberal, que tem dominado a orientação externa americana desde a Segunda Guerra Mundial, com exceção do período Trump."

Mais um ano e onze meses, e com a guerra a continuar, quem poderá estar sentado na sala oval da Casa Branca é Donald Trump. Na sua opinião, o que é que isso poderia significar para a segurança europeia?
Primeiro, espero que isso não venha a acontecer, porque mesmo no campo republicano há outros candidatos que, embora igualmente conservadores, não teriam a mesma posição. Agora, hipoteticamente, um regresso de Trump não me parece muito provável, mas significaria o regresso ao America First e, em primeiro lugar, o fecho da América sobre si própria, uma relação privilegiada do tipo bilateralismo transacional com a Rússia de Putin e, uma vez mais, o ataque à ordem internacional liberal baseada nos princípios que os Estados Unidos fundaram, tais como o livre comércio, a democracia e as alianças multilaterais com a Europa e os seus parceiros asiáticos. Portanto, isso a acontecer, significaria uma dificuldade acrescida para a União Europeia.

Falando de Portugal. Com o Conselho de Segurança Nacional na dependência do primeiro-ministro para dar resposta coordenada às crises do futuro, como propôs na reunião do Conselho Estratégico de Defesa, a capacidade de resposta do país a solicitações como a que surgiu agora com os tanques para a Ucrânia seria diferente?
Primeiro, permita-me a correção, porque não fui eu que propus, isso foi resultado do trabalho conjunto do Conselho, mas essa proposta também não se refere essencialmente às questões de natureza militar. Essa já está prevista e assegurada nas instituições que temos, o que está em causa aqui é que se usa um conceito de segurança que não é estritamente militar, mas que envolve também dimensões não militares. E em que a confrontação com crises não é só de ameaça de natureza territorial, mas sim de mudanças climáticas, grandes catástrofes naturais ou pandemias, em que as Forças Armadas são um instrumento importante, mas em que há outros elementos da administração do Estado que são essenciais. É aí que é preciso ter uma instância de coordenação política unificada que depois defina qual é a cadeia de comando. Por exemplo, se for uma crise de natureza de saúde, é natural que seja dirigida pelo ministro da Saúde, mas tem de haver lugar institucional para que o ministro possa ter essa capacidade, normalmente delegada do primeiro-ministro, para que as Forças Armadas ou de Segurança possam coordenar-se com as áreas do ministério. Ou se for, por exemplo, uma grande catástrofe natural que precise, em primeira mão, da Proteção Civil, mas em que os meios necessários são mais pesados em que as Forças Armadas têm de intervir, então nesse caso, tem de ser o ministro da Administração Interna e tem de haver um lugar em que se faça coordenação institucional.

Surpreendeu-o esta atitude claramente comprometida com a NATO e os Estados Unidos por parte do governo português no caso da Ucrânia? Portugal antes evitou sempre um contencioso mais direto com a Rússia e tinha discurso cauteloso. Era o que tínhamos de fazer?
Disse isso desde o princípio, era o que tínhamos de fazer. A posição de Portugal na guerra da Ucrânia, do ponto de vista formal e diplomático, foi clara e inequívoca desde o princípio e refletia os princípios e valores portugueses, mas também das alianças onde estamos. Portanto, a condenação clara, liminar e veemente da agressão russa, da violação da soberania ucraniana e da violação do direito internacional. Ao mesmo tempo, o apoio à Ucrânia nos seus diversos níveis, nomeadamente com visitas de Estado ao mais alto nível para selar esse apoio político, houve também apoio financeiro com 250 milhões de euros divididos em duas tranches, uma de 100 milhões que o primeiro-ministro anunciou logo para este ano e outra ao longo dos anos seguintes.

"A posição de Portugal na guerra da Ucrânia, do ponto de vista formal e diplomático, foi clara e inequívoca desde o princípio e refletia os princípios e valores portugueses, mas também das alianças onde estamos."

​​​​​​​Que tem sido muito consensual na opinião pública.
Acho que tem sido consensual na grande generalidade da opinião pública. Mas também houve apoio militar não letal, isto é, a formação, o receber os militares feridos ucranianos, mas houve uma hesitação inicial, e dei nota disso, relativamente à questão da integração da Ucrânia na União Europeia. A primeira posição portuguesa, em particular do primeiro-ministro, António Costa, foi de alguma prudência, de alguma reticência, naturalmente, penso eu, para proteger o que achava ser os interesses portugueses ou para não criar expectativas infundadas. Agora, disse na altura e isso veio a verificar-se que o imperativo geopolítico não deixava alternativa, porque a Ucrânia, que até ali era um Estado tampão entre a Rússia e a Europa, a partir do momento em que há guerra deixa de o ser, para passar a ser fronteira da Europa. Portanto, ou cai para um lado ou cai para o outro. E como a Ucrânia está a defender os interesses da Europa e os valores da democracia e dos direitos humanos, não havia outra alternativa que não aceitar politicamente a entrada da Ucrânia na União Europeia. Portanto, quando no último Conselho Europeu vi o primeiro-ministro dizer de forma clara e inequívoca que era preciso acelerar o processo de entrada da Ucrânia, acho que foi uma evolução no bom sentido. Assim como foi uma evolução no bom sentido a história do apoio militar com os Leopard 2. Pode não fazer uma grande diferença do ponto de vista operacional, mas o sinal político e diplomático que isso dá significa que Portugal está do lado certo.

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