Internacional
29 maio 2022 às 22h00

Nupes, burkinis e um ministro sob suspeita. Campanha eleitoral começa em França

Macron remodelou o governo tardiamente para esvaziá-lo de críticas, porém surgiram alegações de que um governante cometeu abusos sexuais. Mudança foi também um piscar de olho à esquerda, onde a Nupes sonha com Mélenchon na chefia do governo.

A figura do presidente francês deverá dominar a campanha eleitoral para as legislativas que começa nesta segunda-feira, salvo algum escândalo novo ou elementos adicionais aos que dominaram o espaço público nos últimos dias. Com o novo governo limitado na sua ação (ver caixa), Emmanuel Macron deverá tentar manter-se no centro das atenções até dia 19 de forma a perseguir o objetivo de manter uma maioria parlamentar com base no seu partido, e assim assegurar a continuidade do executivo acabado de remodelar.

Nas vésperas da nomeação da nova primeira-ministra, elementos do partido de Marine Le Pen queixavam-se de uma "campanha no vazio" graças à estratégia do Eliseu em prolongar o máximo tempo possível o demissionário Jean Castex em funções. "Macron está a neutralizar o tempo político", desabafava um elemento da Reunião Nacional à Franceinfo.

A neutralização dos partidos opositores funcionará tanto à esquerda como à direita, mas devido ao sistema eleitoral e ao efeito Mélenchon, a equipa de Macron estará mais focada em retirar argumentos à esquerda. A Reunião Nacional tem como meta eleger 60 deputados - o que não deixaria de ser um resultado histórico, uma vez que tem oito - e à direita da extrema-direita o movimento de Éric Zemmour lutará pela eleição de um par de deputados, a começar pelo polemista. A eleição em duas voltas tem permitido aos candidatos que não são da extrema-direita aliarem-se na chamada frente republicana, por norma com a desistência dos candidatos menos votados que são admitidos ao segundo escrutínio.

Os partidos tradicionais de centro-direita (Os Republicanos) e centro-esquerda (PS), infestados de problemas internos e em contínua sangria com o fenómeno do movimento centrista de Macron viram-se empurrados para a solução de coligações pré-eleitorais. O partido herdeiro de De Gaulle concorre com a UDI na aliança União da Direita e do Centro, enquanto os socialistas juntaram-se a comunistas, verdes e à França Insubmissa de Jean-Luc Mélenchon. Este candidato a primeiro-ministro traz na bagagem 21,9% de votos nas presidenciais, o que dá à coligação Nupes (Nova união popular ecológica e social, assim mesmo, sem capitulares) hipóteses de disputar a vitória com o bloco Juntos!, que une A República em Marcha de Macron a outras seis formações, sendo a mais relevante o MoDem.

Uma maioria parlamentar da Nupes obrigaria Macron a reeditar a fórmula da coabitação, isto é, com chefe de Estado e primeiro-ministro de campos políticos diferentes. A questão da coexistência não se fica pelo simbolismo. Na prática, o presidente perde o seu poder sobre as decisões internas do país, que são da competência do primeiro-ministro e da sua maioria na assembleia, que tem competência para legislar. Neste cenário, Macron, impedido de exonerar Mélenchon, teria de encontrar uma articulação institucional ou, caso falhasse, poderia dissolver a assembleia e convocar novas eleições.

DestaquedestaqueDivergências entre as esquerdas da Nupes ficaram à vista com o autarca de Grenoble, ecologista, a autorizar o burkini nas piscinas. "Cretino", disse senadora socialista.

Não por acaso, o presidente designou como primeira-ministra Élisabeth Borne, que no passado gravitou à volta de figuras do PS, quando os seus anteriores chefes do governo, Édouard Phillippe e Jean Castex, representavam a quota do centro-direita. Já para não falar na nomeação para ministro da Educação o historiador das minorias Pap Ndiaye, que Mélenchon não desdenharia no seu governo e suscitou por parte de Marine Le Pen a reação "escolha aterradora".

Para já as sondagens atribuem vantagem à aliança de Macron. De acordo com o estudo com mais de 11 mil eleitores da Ipsos para o Le Monde, a projeção de distribuição de lugares atribui maioria absoluta ao Juntos!, ao eleger de 290 a 330 deputados, sendo que o limiar da maioria absoluta é 289. Segue-se a Nupes (166-195), UDC ( 35-65) e Reunião Nacional (20-45). Outra sondagem, da Harris, coloca a Nupes com uma percentagem maior (28% versus 26%), mas essa vantagem não se reflete na distribuição de lugares, com o Juntos! a obter uma maioria parlamentar.

Entre os candidatos a deputados está Borne e mais 14 ministros. Segundo as regras estabelecidas pelo movimento de Macron, quem não é eleito não pode continuar a exercer funções governativas. Ou seja, a continuidade da primeira-ministra no cargo depende em primeira instância dos eleitores do 6.º círculo de Calvados, na Normandia.

O tema que mais preocupa os 48,7 milhões de eleitores é o aumento do custo de vida, tal como já tinha sido discutido nas presidenciais de abril, então com vantagem para Le Pen. Sem surpresa, agora todos vão apresentar mais propostas de ajudas às famílias. Mais curioso é o compromisso entre insubmissos, socialistas, comunistas e verdes. Regozijam-se de terem aprovado um programa com 650 medidas, mas não encontram unanimidade em 33, em temas tão importantes como o posicionamento face à NATO, o apoio à Ucrânia (todos dizem estar do lado de Kiev, mas só PS e verdes defendem o fornecimento de mais armas), ou a transição energética.

Estas divergências entre esquerdas tão diversas levaram ao surgimento de várias candidaturas de descontentes contra candidatos Nupes. E ficaram espelhadas na controvérsia desencadeada pelo autarca de Grenoble, o ecologista Éric Piolle, ao autorizar nas piscinas municipais o uso de burkinis, uma peça de vestuário de inspiração islamista.

O tribunal administrativo da cidade acabou por suspender essa alteração ao regulamento, alegando que o fim religioso "mina seriamente o princípio da neutralidade do serviço público", mas antes socialistas e comunistas criticaram duramente a iniciativa. A senadora socialista Laurence Rossignol classificou o edil de "cretino" por "poluir inegavelmente a campanha". Mélenchon recusou-se falar sobre o que chamou de "provocação" e disse que não é candidato a "ministro das piscinas".

Se a questão do burkini poderá não ter pernas para nadar na campanha, já o caso Abad tem contornos para manchar o governo. Damien Abad, saído da chefia do grupo parlamentar d"Os Republicanos para o cargo de ministro da Solidariedade e Autonomia, foi acusado de violação por duas mulheres , em casos separados, sendo que uma delas já tinha apresentado queixa. Abad defende-se, dizendo que a sua deficiência, artrogripose, o impede de cometer tais "atos ou gestos" devido à sua incapacidade que afeta as articulações. A procuradoria de Paris informou que, à falta de dados novos, não vai avançar com uma investigação.

Candidatos Apresentam-se em 566 círculos eleitorais em França continental e ultramarina, além de 11 circunscrições para representar 2,5 milhões de franceses emigrados, perfazendo um total de 577 círculos - o número total de deputados a eleger para a Assembleia Nacional.

Mulheres A paridade chegou ao governo, mas ainda não às listas de candidatos. Ainda assim, há um avanço de 1,8 pontos em relação às legislativas de 2017, quando 42,4% dos candidatos eram do sexo feminino.

Eleitos As legislativas são realizadas num sistema de maioria em duas voltas, a menos que na primeira volta um dos candidatos obtenha a maioria absoluta dos votos expressos e 25% dos eleitores inscritos nos cadernos eleitorais. Só quatro deputados foram eleitos na primeira volta em 2017.

Fasquia O resultado que garante a passagem à segunda volta é 12,5% de votos entre os inscritos. Se apenas um candidato atingir o limiar, o seguinte é apurado. Se nenhum atingir a fasquia, então os dois candidatos com o maior número de votos permanecem na corrida.

O governo que tomou posse no dia 20 entrou em "dever de reserva" três dias depois, tendo em conta o calendário eleitoral. Ou seja, os ministros não podem fazer anúncios nem deslocações, à exceção de emergências ou casos específicos de agenda (por exemplo, a ministra da Cultura no Festival de Cannes). Não é, pois, de espantar que perante esta discrição forçada - contrariada pelo caso Abad - 38% dos franceses se mostrem "indiferentes" à troca de primeiro-ministro e restante remodelação.

Foi dito e redito que a prioridade do executivo agora liderado por Élisabeth Borne é um pacote legislativo para contrariar a perda do poder de compra dos cidadãos, tendo em conta a subida generalizada de preços decorrente da guerra na Ucrânia. Depois de a porta-voz do governo Olivia Grégoire ter dito que a legislação seria apresentada aos deputados ainda antes das eleições, o tiro foi corrigido: promete-se agora que será a primeira lei a discutir pela renovada assembleia. Mas antes, explicou Grégoire, o conselho de ministros deverá abordar o tema. Uma forma de publicitar as medidas e assim contornar as restrições eleitorais.

cesar.avo@dn.pt