Lula sai triunfante do Egito mas comete gafe no Brasil
Na imprensa internacional, o presidente eleito é chamado de "rock star" e "líder das negociações sobre o clima". Na brasileira, fala-se em "deslize" e "deboche" por se ter deslocado em avião de empresário.
A viagem de Lula da Silva ao Egito para participar na 27.ª conferência da ONU sobre mudanças climáticas (COP27), com escala em Portugal para encontrar o presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa e o primeiro-ministro António Costa, seria um retumbante sucesso não fosse a viagem em si. Enquanto em Sharm El-Sheik a presença e o discurso do presidente eleito eram saudados em tom apoteótico, no Brasil, o uso de um jato de um empresário preso na Operação Lava Jato para se deslocar à cimeira foi considerado inapropriado pela imprensa e um "deboche" por deputados ligados ao ainda presidente Jair Bolsonaro.
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O dono do Gulfstream G600 em que o presidente eleito do Brasil viajou, José Seripieri Filho, foi fundador da Qualicorp, empresa que vendia planos de saúde de baixo custo durante os governos do PT. Ecuménico nas relações com políticos, Seripieri chegou a ser preso por três dias na Lava-Jato por não ter declarado doações à campanha de José Serra, do PSDB, ex-candidato a presidente, contra Lula e Dilma Rousseff. E foi o segundo maior doador, a título individual, do candidato do PT na última campanha.
Segundo a imprensa brasileira, Lula foi avisado da repercussão negativa que a viagem no jato do milionário amigo poderia gerar. Mas correu o risco político mesmo assim por não dispor de verbas oficiais - não é presidente ainda - e por o PT não ter recursos para alugar um avião. Por outro lado, o acesso ao fundo público eleitoral já não é permitido após a campanha. Um pedido de aeronave ao atual governo chegou a ser sugerido por colaboradores de Lula mas imediatamente rejeitado por "razões de segurança". E a solução de um voo comercial, adotada por Dilma em 2010 para ir a uma reunião do G20 na Coreia do Sul durante a transição, também foi desaconselhada dado o clima tumultuado no país.
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Dias antes, de folga após a vitória eleitoral, Lula hospedou-se numa casa de luxo na Bahia dos irmãos empresários do ramo dos transportes Paulo César e Ronaldo Carletto, ambos com problemas na justiça.
Lembremos que Lula, embora entretanto inocentado, foi preso em 2018 por supostamente receber um suborno em forma de apartamento tríplex de um construtor a quem o governo teria favorecido em negócios em torno da Petrobrás, de acordo com a sentença do juiz Sergio Moro, futuro ministro de Bolsonaro.
O jornal The Washington Post resumiu a intervenção de Lula na COP 27 a uma palavra de ordem - "o Brasil voltou"
"A viagem [...] a bordo do jato particular do empresário amigo José Seripieri Filho, que foi alvo da Operação Lava Jato, foi um mau passo que não passaria despercebido", escreveu em editorial o jornal Folha de S. Paulo, o primeiro a noticiar o caso. "O episódio [...] criou ruído, explorado por opositores, e provocou desconforto mesmo entre apoiantes". "Não ajuda à imagem de um futuro governante - e, no caso, um antigo presidente com pesada bagagem de casos rumorosos - aceitar favores generosos de detentores do poder económico".
O advogado Fábio Pansieri não vê "improbidade" mas fala em "imprudência". "Fazendo uma análise à luz da Constituição ou da lei de improbidade não existe ilícito civil ou penal na conduta do presidente eleito mas seria importante neste momento de formação de governo agir com prudência e cautela", disse ao jornal Valor Económico.
Ubiratan Sanderson, deputado do partido de Bolsonaro, chamou a conduta de Lula de "deboche" e pediu investigação da Procuradoria-Geral da República sobre o caso.
Eleitores declarados de Lula expressaram-se nas redes sociais. "À mulher de César não basta ser séria, é preciso parecê-lo", disse um. Outro lembrou que o futuro presidente "deve aprender com erros passados e pautar-se por valores republicanos", distinguindo, "sem concessões, o público do privado". Mas houve quem preferisse classificar o episódio como "crise artificial" no meio de "um sucesso estrondoso no Egito".
Do ponto de vista político e diplomático, a presença de Lula na COP27 foi, de facto, um êxito. A Reuters destacou a recepção de "rock star" do presidente eleito do Brasil, o The New York Times chamou o seu discurso de "exuberante", a Bloomberg falou em "Lula a recolocar o Brasil na vanguarda das negociações sobre o clima" e o The Washington Post resumiu a intervenção a uma palavra de ordem - "o Brasil voltou".
dnot@dn.pt
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