Internacional
20 janeiro 2022 às 07h00

Campanha francesa cola-se ao palco europeu de Macron

A três meses das eleições em França, presidente apresentou aos eurodeputados as prioridades da presidência francesa da UE. E no debate a oposição fez-se ouvir.

Susana Salvador, em Estrasburgo

Emmanuel Macron foi ao Parlamento Europeu em Estrasburgo falar da presidência francesa do Conselho da União Europeia (UE), que começou no dia 1 de janeiro, defendendo uma refundação das três grandes promessas de democracia, progresso e paz. Mas a menos de três meses das presidenciais em França, numa altura em que ainda não anunciou se é ou não candidato, teve que enfrentar os ataques dos conterrâneos que se sentam no hemiciclo e cujas cores políticas são diferentes das suas.

"A presidência francesa da UE não deve ser um trampolim eleitoral", disse a eurodeputada da França Insubmissa, Manon Aubry, que pertence ao Grupo da Esquerda no Parlamento Europeu, alegando que Macron está a usar o palco europeu com fins nacionais. Mais tarde, na resposta, o presidente diria que ela tinha razão, para acrescentar ironicamente "então, vários aqui, tiveram razão em não o fazer".

A própria Aubry, do partido do candidato Jean-Luc Mélenchon, lançou ataques ao presidente: "Apresenta-se como o campeão da Europa que protege. Mas quem é que está realmente a proteger? Está a proteger os direitos sociais quando rouba dos bolsos dos desempregados? Está a proteger a soberania quando assina acordos de livre comércio? Está a proteger o Estado de direito e a democracia quando faz um pacto com o húngaro [Viktor] Orban." Aubry disse que o balanço europeu de Macron "é da arrogância, impotência e intrigas", numa referência ao slogan da presidência francesa: "relançamento, potência e pertença". E acusou-o de ser o "presidente do desprezo" que se "irrita" com as pessoas, usando a expressão "emmerder" que Macron utilizou contra aqueles que não querem ser vacinados contra a covid-19.

Outro dos interlocutores no debate foi o ecologista Yannick Jadot, eurodeputado pelo Grupo dos Verdes/Aliança Livre Europeia, que é ele próprio candidato às presidenciais de abril. E não poupou nos ataques a Macron, olhando diretamente para o presidente desde a tribuna e não para os restantes eurodeputados. "Ficará na história como o presidente da inação climática. Prefere assinar o armistício com os lóbis do que declarar guerra às alterações climáticas. Prefere procrastinar como Meryl Streep no filme Don"t look up", disse, numa referência a um filme de sucesso da Netflix.

Na resposta, o deputado do La Republique em Marche de Macron e membro do Grupo Renew Europe, Stéphane Séjourné, falou na "vergonha" de ver o Parlamento Europeu transformado em Assembleia Nacional francesa. E a própria presidente do hemiciclo, a maltesa Roberta Metsola, lembrou que este não era "um debate nacional".

Já o eurodeputado Jordan Bardella, presidente interino do Reunião Nacional (ex-Frente Nacional) de Marine Le Pen, foi direto à questão. "Para a França e também para a Europa, é vital que o seu mandato seja único", disse, questionando como Macron se pode apresentar como querendo unir a Europa se dividiu França. "Fez da Europa o quintal de Washington, a presa de Pequim, o hotel da África", afirmou ainda o representante do Grupo Identidade e Democracia. Mais tarde Macron acusou-o de "falar de forma disparatada".

O eurodeputado François-Xavier Bellamy, d"Os Republicanos, falou nas contradições de Macron. "Mentiu muitas vezes, desculpe dizê-lo. Prometeu o fim das divisões e deixa o país e a Europa fraturados", indicou, defendendo que "uma outra política é possível, que prefere a sobriedade da ação à obsessão da comunicação". E defendeu ter o dever de preparar a alteração política a que os cidadãos têm direito.

Mas não foram só os eurodeputados franceses a fazer referência às presidenciais, tendo o líder do Grupo do Partido Popular Europeu, o alemão Manfred Weber, sido o primeiro a cruzar a linha (foi o primeiro a falar), apoiando abertamente a candidatura de Valérie Pécresse, d"Os Republicanos. "É bom manter uma concorrência entre diferentes ideologias sem criar uma clivagem que reforçará os populistas. É por isso que vejo que com Valérie Pécresse temos uma concorrência sã", afirmou.

No discurso de mais de meia hora, o presidente francês defendeu a necessidade de "refundar" as três grandes promessas em que repousa a UE: democracia, progresso e paz. Em relação à primeira promessa, Macron centrou-se na defesa do Estado de Direito, que apelidou de "o nosso tesouro", alegando que o seu fim será "o reino do arbitrário" e o "sinal do regresso aos regimes autoritários".

Neste âmbito, defendeu a "atualização" da Carta dos Direitos Fundamentais da UE, para que seja "mais explícita na proteção do ambiente ou no reconhecimento do direito ao aborto" - uma referência que parece ter como alvo Metsola. A nova presidente do Parlamento Europeu é de Malta, o único país da UE onde o aborto é proibido, sendo ela própria pró-vida, tendo contudo reiterado que no seu novo cargo defenderá a posição do Parlamento Europeu, que é pró-escolha.

Ainda neste ponto, Macron falou de Cultura e questionou "o que é ser europeu?". Na sua opinião, é "sentir igual emoção diante de nossos tesouros, fruto de nossa herança e nossa história" e "vibrar da mesma forma ao espírito romântico, tanto para as obras de Chopin quanto para os textos de Pessoa", fazendo referência ao poeta português.

Quanto à segunda promessa, a de progresso, Macron lembrou que a Europa foi construída numa vontade de crescimento económico, sendo o desafio "construir um modelo original" perante os grandes desafios do século. Estes são, para o presidente francês, o clima, com a necessidade de concretizar nas próximas semanas muitas das intenções do pacto ecológico, e a revolução digital, com a criação de um "verdadeiro mercado único digital". Mas também mencionou a preocupação em proteger as liberdades digitais, combater o discurso de ódio online e impedir que as grandes plataformas tenham um comportamento comercial "injusto".

Macron falou ainda da reforma do espaço Schengen e da promessa original de ser um espaço de livre circulação, defendendo a proteção das fronteiras externas, incluindo a criação de uma força intergovernamental de intervenção rápida. Em questões de defesa disse que a União Europeia não pode ficar satisfeita por apenas reagir às crises internacionais.

Na prática, Macron quer a Europa como uma "potência de futuro", "capaz de responder aos desafios climáticos, tecnológicos, digitais, mas também geopolíticos, uma Europa independente na medida em que está a dar a si própria os meios de decidir por ela mesma o seu futuro e não depender das escolhas das outras grandes potências".

Finalmente, na promessa de paz, o presidente francês falou da "escalada das tensões" e na necessidade de "repensar a política de vizinhança". Neste aspeto mencionou a importância da Cimeira UE-África, em fevereiro, e da necessidade de um "new deal" com o continente para reforçar a parceria. Mais tarde, nas respostas às perguntas dos eurodeputados, falou também de uma cimeira informal com a América do Sul, em maio, organizada em colaboração com Portugal e Espanha.

Macron referiu ainda os Balcãs Ocidentais, defendendo dar-lhes "perspetivas sinceras de adesão", mas alertou que a Europa atual não está preparada para esse alargamento. "Mentiríamos a nós próprios", afirmou. Sobre o Reino Unido, quer recuperar "o caminho da confiança" após o Brexit, lembrando contudo que este deve ser baseado no respeito dos acordos. "É a condição para podermos continuar amigos".

Macron quer ainda que a Europa construa "uma ordem de segurança coletiva" junto com a NATO, defendendo um "diálogo franco e exigente" com Moscovo e uma "solução política" para o conflito na Ucrânia. "Nas próximas semanas devem conduzir-nos a uma nova proposta europeia sobre uma nova ordem de segurança e estabilidade. Temos que construir, entre europeu, depois partilhar com os nossos aliados no quadro da NATO. E depois propor a negociação à Rússia", afirmou.

No final do seu discurso, Macron lembrou que "nem os reflexos passados, nem o regresso ao nacionalismo, nem a dissolução das nossas identidades serão as respostas a este mundo que vem". Na sua opinião "a nossa capacidade de inventar um sonho possível, de torná-lo tangível, de realizá-lo, de torná-lo útil para os nossos concidadãos é a chave do nosso sucesso". E concluiu: "Nós temos a força. Nós temos os meios. Por isso confio em nós."

susana.f.salvador@dn.pt
A jornalista viajou a convite do Parlamento Europeu