"Antes de Putin se impor Moscovo tinha-se tornado uma Disneylândia para adultos com kalashnikovs"

Apesar de ser um romance, O Mago do Kremlin está a ter enorme sucesso como explicação do que é a Rússia de hoje. Convidado pelas Novas Conferência do Casino a vir a Lisboa, o ensaísta italo-suíço Giuliano da Empoli conversou com o DN sobre a importância da década de Ieltsin para se entender a ascensão de Putin. E acredita que russos apoiam guerra na Ucrânia.

Toda a gente está a falar deste seu livro como sendo sobre a Rússia de Putin. Mas O Mago do Kremlin também é um livro sobre a Rússia de Ieltsin. Porque é Ieltsin que explica Putin. Qual a sua ideia sobre a década de Ieltsin no poder na Rússia?
Eu penso que esses dez anos são a matriz de tudo o que veio a seguir, porque foram um tempo de grande vitalidade, de grande liberdade, de algo que nunca se tinha ouvido falar na Rússia, mas também completamente caóticos, em que a maioria das pessoas perdeu as suas referências. As pessoas antes sabiam, mais ou menos, como eram as suas vidas, como seria o futuro. O sistema soviético não estava a funcionar bem, mas era previsível de alguma forma, oferecia uma vida previsível. A maior parte das pessoas perdeu as referências e o sentimento de que controlavam as suas vidas, de que as conseguiam prever mais ou menos, de que sabiam o que se passava. Penso que foi isso que permitiu a Putin chegar, no fim da década de 1990, e restaurar algumas certezas, porque no final dos anos 90 o Estado já não conseguia pagar salários e pensões, o rublo tinha caído, a bolsa de valores tinha-se desmoronado e o estatuto internacional da Rússia estava destruído. Belgrado, um tradicional aliado da Rússia, tinha sido atacado pela NATO e Moscovo tinha-se tornado uma espécie de Disneylândia para adultos que tinham kalashnikovs. Houve quem tenha ficado muito rico, mas a maioria não o era. Penso que é um clássico que em tempos como esses, e isso não acontece só na Rússia, quando existe uma situação de caos como aquela, apareça alguém, como Putin no fim da década de 1990, que, de certa forma, restaura a ordem, a verticalidade, como lhe chamo no livro, mas ele também lhe chama poder vertical. É uma coisa que, de certa maneira, é muito poderosa e popular. Eu acho que os russos ainda têm dois sentimentos com que ficaram nos anos 1990, um é que a democracia gera o caos e o segundo é que o Ocidente se vai aproveitar do seu caos e da sua fraqueza. Estas duas coisas ainda estão presentes atualmente na Rússia e penso que vêm dos anos 1990.

É possível dizer que existem dois Putin, um nos primeiros dois mandatos e outro Putin que regressa à presidência depois de Medvedev?
Sim, penso que esse é um momento decisivo porque Putin não é um ideólogo, é um homem do poder, na minha opinião. Portanto, ele usa ideias, embora tenha algumas ideias e convicções básicas. Se olharmos para o discurso e a ideologia de Putin ao longo destes últimos 23 anos vemos que tem havido grandes variações em muitos aspetos e, claro, quando sente que foi traído pelas classes médias urbanas, como aconteceu no início de 2011/2012, quando elas apoiaram Medvedev e não o queriam de volta, penso que esse foi um ponto de viragem em que ele se irritou. Adota completamente uma plataforma ideológica diferente, que ele pensa que vai consolidar mais o seu poder, que é uma ideologia completamente iliberal, anti-moderna, anti-europeia, anti-tudo, que é a que temos visto evoluir até agora. Esse é um ponto de viragem, mas penso que tem sido gradual em muitos aspetos. As revoluções coloridas em 2003/2004 já tinham sido um grande ponto de viragem. Foi aí que ele começou a pensar que poderia estar em perigo e que as coisas poderiam mudar... A cena que eu descrevo no livro - é importante manter presente que o livro é um romance, não é uma análise geopolítica e, por isso, tem de mostrar as coisas, explica-las ou elaborar grandes teorias...

Mas disse, sobre o seu livro, que os factos são os factos...
Os factos são factos, não há nenhum facto que tenha sido inventado, mas de certa forma são encenados para conseguir trazer o leitor para dentro da história. Assim, essa cena, que é muito importante para o livro, a cena do Labrador, com o cão, quando ele se encontra com Merkel e apresenta esse cão, o que poderia ser uma coisa simpática se Merkel não tivesse pavor de cães, é uma cena muito violenta. Foi um ato completamente intencional numa cimeira internacional, pois Putin sabia muito bem que Merkel tinha muito medo de cães. Portanto, para mim, é uma cena muito violenta. No livro digo que se Calígula fez do seu cavalo senador, Putin fez do seu cão ministro dos Negócios Estrangeiros, no sentido em que introduz um elemento de violência e imprevisibilidade. Tenho a certeza de que era um cão simpático, mas da forma que foi feito, numa relação com intervenientes internacionais... Isso foi em 2007 e penso que desde então tem havido uma escalada, mas 2012 foi um ponto de viragem muito importante.

Esta guerra na Ucrânia era, inicialmente, na cabeça de Putin, uma guerra muito breve, mas agora crê que ele está a apostar numa guerra longa porque o Ocidente interveio e é preciso cansá-lo?
Sim. Penso que o que aconteceu foi que ele avaliou mal a guerra, avaliou mal várias coisas. Não é loucura, a loucura é uma coisa diferente, foram antes más avaliações graves. Putin é, de certa forma, muito flexível nos seus movimentos táticos e é por isso que ele mudou completamente a ideia de que em poucas semanas, ou mesmo em poucos dias, conseguiria atingir Kiev e então substituir o regime de Zelensky por outro. Mudou agora para a ideia de que vai demorar e está a aproveitar isso para restruturar completamente o seu sistema de poder. Mesmo que a situação seja difícil e, honestamente, de um ponto de vista militar bastante catastrófica para os russos, vemos que, internamente, Putin está a aproveitar a situação para fechar toda a gente no bunker com ele.

"Penso que o que aconteceu foi que Putin avaliou mal a guerra, avaliou mal várias coisas. Não é loucura, a loucura é uma coisa diferente, foram antes más avaliações graves."

Mesmo os oligarcas?
Os oligarcas, ou os chamados oligarcas que já não o eram há muito tempo, essa é uma história que eu conto no livro, mas continuemos a chamar-lhes oligarcas, tinham antes enormes riquezas e um imenso acesso ao Ocidente, por isso eram quase autónomos de Putin em alguns aspetos, apesar de, em muitos casos, lhe deverem a sua riqueza. O facto é que tinham uma autonomia que já não têm atualmente. A maior parte deles foram sancionados, mas claro que conseguem continuar a fazer coisas e ir ao Dubai e tudo isso, mas basicamente têm de alinhar completamente com a posição de Putin que está a consolidar a elite russa. De certa forma, ele está a consolidar, a alinhar por ele, todo o sistema russo. Está a reforçar a censura, claro, e a dizer aos russos basicamente que vão ganhar porque têm capacidade de se sacrificar por mais tempo. Ele está, portanto, a reativar toda aquela ideia do sacrifício que foi muito importante para a União Soviética também, porque a ideia era a de que a vida é dura e as coisas não funcionam muito bem, mas estamos a fazê-lo por uma razão, estamos a trabalhar pelo ideal socialista, pelo poder da União Soviética, o seu poder no mundo, etc. Portanto o facto de ter de haver filas para o pão é justificado por tudo isso. Acho que Putin está a reativar isso e ele pensa que transformar a sociedade numa sociedade de guerra novamente, o que foi o caso durante tanto tempo na Rússia e na União Soviética, lhe vai permitir ultrapassar este período, uma vez que nós somos sociedades mais fracas e muito menos estáveis com eleições livres e tudo isso. Ele pensa que vai triunfar e eu acho que não é impossível.

Triunfar na Ucrânia é importante para Putin porque se olharmos para a Chechénia, para a Geórgia, vemos que o sucesso na política russa é a capacidade para ganhar guerras, de certo modo ele tem de ganhar esta guerra...
Bom, eu penso que ele tem de não a perder. É por isso que eu penso que ele nunca se irá render, penso que ele nunca irá desistir. Também porque, tal como foi dito, esta é a guerra de Putin, no sentido de que o seu objetivo é tão grande que, obviamente, as principais decisões têm sido tomadas por ele, mas o apoio a Putin é muito forte na Rússia entre a população. O que eles não gostam na guerra é o facto de não estarem a ganhar, não é a questão de estarem em guerra, parece haver uma clara maioria a apoiar a guerra. Isto é uma coisa que eu penso ser existencial para Putin e para a Rússia. Nós podemos discordar, claro, mas é existencial para eles e, portanto, não consigo ver, deste ponto de vista, como é que ele pode perder. Acho que ele tem de ganhar e se isso não acontecer, se perder, talvez isso abra a porta para uma mudança de regime na Rússia, mas em que direção não sabemos.

"O apoio a Putin é muito forte na Rússia entre a população. O que eles não gostam na guerra é o facto de não estarem a ganhar, não é a questão de estarem em guerra."

É possível que novembro de 2024 seja o ponto de viragem , com Trump eventualmente de volta à presidência dos Estados Unidos?
Faltam quase dois anos e neste ponto é difícil fazer cenários. Se Putin conseguir manter as coisas mais ou menos como estão até novembro de 2024... Penso que é esse o seu objetivo se sobreviver à ofensiva da Ucrânia agora e se as coisas se mantiverem no teatro de guerra mais ou menos iguais, ele pensa, e é possível, que há uma forte possibilidade de novembro de 2024 ser um momento de viragem, mas claro que uma vitória ucraniana mudará a situação completamente. Não vejo qualquer possibilidade de o esforço de guerra ucraniano ser apoiado e sustentado se Trump ganhar as eleições.

O seu livro ensaístico Os Engenheiros do Caos, agora editado em Portugal, é muito sobre pessoas como Trump, sobre líderes populistas . Como é que explica este fascínio de Trump por Putin que se mantém desde que era presidente?
Penso que há várias razões. Há um lado oportunista que é o facto de Trump ter sido efetivamente beneficiado pelas ações e interferências russas, pois foram provados os contactos entre a sua equipa e autoridades russas durante a campanha; depois penso que existe um fascínio pessoal de Trump pela força, por uma liderança forte e carismática e também com recursos ilimitados. Acho que isso é uma coisa que é atrativa para Trump, algo que ele respeita, que o impressiona positivamente. Além disso, penso que em termos de valores, de agenda, Putin joga muito com esta ideia de restaurar os valores tradicionais, de uma abordagem mais patriarcal às coisas e é, obviamente, muito antiprogressista, muito antidiversidade, com uma agenda muito a favor dos valores tradicionais, patrióticos. Esta é a agenda de Trump, pode não ser a sua convicção pessoal ou estilo de vida, mas não é esse o ponto, é isso que as suas bases pedem. Portanto, penso que em vários níveis - oportunismo, convergência de interesses, de certo modo, a nível pessoal e a um nível mais ideológico - eles têm afinidades.

É possível que Trump tenha a ambição de fazer algo parecido com o que fez Nixon há 50 anos atraindo a China para o lado americano, ou seja, fazer agora com que a Rússia mude de lado e esteja com os Estados Unidos contra a China?
Sim. Se olharmos para os objetivos de Trump mais geopolíticos e estratégicos - que ele também tem, penso que não sejam a sua preocupação principal, mas ele também tem uma visão geopolítica - claro que o seu inimigo e o seu objetivo é a China. Portanto, sim. Desse ponto de vista, poderia fazer sentido para os Estados Unidos ter uma boa relação com a Rússia. Isso poderia ser justificável, pois faz sentido de um ponto de vista estratégico, mas não tenho a certeza de que essa seja a principal preocupação de Trump.

Os políticos populistas da Europa tendem a ser simpatizantes da Rússia, mas Meloni, é diferente. Porquê? É apenas oportunismo ou ela é mesmo diferente?
Eu penso que seja uma questão tática, mas é bom de um ponto de vista tático. A diferença entre Meloni e Salvini - ela obteve a maioria do seu apoio eleitoral a partir do declínio de Salvini, não só mas em grande parte - é que Meloni tem uma abordagem nova em alguns aspetos, porque depois da covid e depois da guerra na Ucrânia, mesmo as pessoas em Itália que eram muito anti-Europa começaram a ver a UE como uma proteção, por isso não querem estar demasiadamente em conflito com a Europa. Portanto, o que ela fez, e é essa a diferença para Salvini que era muito violentamente anti-europeu, e a razão pela qual não se envolveu com Putin, foi porque ela era muito pequena eleitoralmente. Salvini envolveu-se com Putin, assim como Marine Le Pen. Se Meloni tivesse tido 20% há cinco ou dez anos, teria sido próxima de Putin, mas não, ela chegou demasiado tarde a tudo isso. Portanto, ela foi suficientemente esperta para mudar e agora tem esta nova fórmula, que é interessante, e que consiste em querer estar alinhada com o Ocidente e com a Europa na frente externa. A sua primeira viagem foi a Bruxelas. Ela é, em certos aspetos, quase uma tecnocrata na forma como se apresenta em Bruxelas, na NATO e tudo isso. Isso dá-lhe a liberdade para, internamente, seguir uma agenda que é realmente muito conservadora, tradicionalista, patriótica e identitária, mas isso é a nível doméstico. De certo modo ela tem o melhor dos dois mundos, porque de fora, da Europa, recebe muito pouco conflito, muito pouca pressão, mantém boas relações. A nível interno ela tem uma agenda muito mais iliberal.

Vê-a como possível modelo para outros líderes populistas?
Penso que sim, já vimos coisas assim no Ocidente. Claro que o húngaro Orbán é diferente devido à sua relação com Putin, mas há um pouco disso noutros sítios. Acho que Orbán é um modelo para Meloni em muitos aspetos e ela pode vir a ser o modelo para outros da direita radical. Há movimentos na Europa que têm vindo a circular muito próximo dela nos últimos meses. Eu estive na Áustria antes de vir cá e percebi que a direita radical austríaca está a olhar para Meloni, muito interessada naquela experiência. Em França Marine Le Pen já seguiu um caminho ligeiramente parecido - ela já não quer sair da Europa, está muito menos conflituosa - mas, claro, tem o problema da aproximação a Putin que lhe torna mais difícil mudar nesse campo. Portanto, sim, penso que Meloni pode ser um modelo para outros movimentos da extrema-direita.

O Mago do Kremlin
Giuliano da Empoli
Gradiva
280 páginas

Os engenheiros do caos
Giuliano da Empoli
Gradiva
200 páginas

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