Internacional
25 outubro 2021 às 11h15

Permafrost: a bomba-relógio das mudanças climáticas

Entre o metano e o dióxido de carbono (CO2), o permafrost contém o equivalente a mais de 1,7 triliões de toneladas de carbono orgânico, quase o dobro da quantidade de carbono já presente na atmosfera.

DN/AFP

Protegido por altas montanhas cobertas de neve, Stordalen é um planalto pantanoso, pontuado por pequenos lagos de lama. Um cheiro a ovo podre mistura-se com o ar fresco neste canto do norte da Suécia.

Aqui, no interior do Círculo Polar Ártico, cerca de 10 quilómetros a leste da pequena cidade de Abisko, o aquecimento global avança três vezes mais rápido do que no resto do mundo.

Nos pântanos cobertos de relva e arbustos onde aparecem frutos azuis, laranjas e flores brancas, a presença de um homem vestido de astronauta mostra a insuspeita importância científica deste lugar perdido nos confins do mundo.

Os cientistas estudam a camada de solo permanentemente congelada, conhecida como permafrost.

O investigador Keith Larson caminha sobre ripas de madeira colocadas para poder circular pelos lagos pantanosos, onde pequenas bolhas podem ser vistas a emergir à superfície.

O odor característico de ovo podre vem do sulfureto de hidrogénio, às vezes chamado de "gás do pântano". Mas é outro gás, inodoro em estado natural, que coloca a comunidade científica em alerta: o metano.

Preso por milhares de anos no permafrost, o carbono está a ser libertado, entrando na atmosfera.

Entre o metano e o dióxido de carbono (CO2), o permafrost contém o equivalente a mais de 1,7 triliões de toneladas de carbono orgânico, quase o dobro da quantidade de carbono já presente na atmosfera.

Embora permaneça no ar por apenas 12 anos, em vez de séculos, como é o caso do CO2, o metano tem um efeito de estufa 25 vezes maior.

Por isso, o degelo do permafrost é uma "bomba-relógio" climática, alertam os cientistas.

"Quando os investigadores começaram a examinar estas terras" na década de 1970, "esses lagos não existiam", explica Larson, coordenador do projeto do Centro de Pesquisa de Impactos Climáticos da Universidade Sueca de Umea, com sede na Estação de Pesquisa Científica de Abisko.

"O cheiro do sulfureto de hidrogénio, que se mistura com o metano libertado, não era tão sentido quanto hoje", enfatiza o especialista.

Larson enterra uma haste de metal no solo para alcançar a camada "ativa" do permafrost, a parte que descongela no verão. O permafrost - solo que permanece congelado por dois anos consecutivos - está presente em cerca de 25% das terras do Hemisfério Norte.

Em Abisko, o permafrost tem até dez metros de espessura e data de milhares de anos. Na Sibéria, pode atingir um quilómetro de profundidade e ter centenas de milhares de anos.

Com o aumento das temperaturas, o permafrost começa a descongelar. Com isso, as bactérias decompõem a biomassa armazenada na terra congelada, causando novas emissões de CO2 e metano, que, por sua, vez aceleram o aquecimento global, num ciclo vicioso assustador.

No pântano vizinho de Storflaket, a investigadora Margareta Johansson inspeciona o permafrost há 13 anos e constata que a camada "ativa" que degela no verão aumenta a cada ano.

"Desde que as medições começaram em 1978, (a camada) aumentou entre sete e 13 centímetros a cada dez anos", relata à AFP esta geofísica da Universidade sueca de Lund.

"Esse freezer que mantém plantas congeladas há milhares de anos armazena o carbono que é libertado conforme a camada ativa se torna mais espessa", explica.

De acordo com o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) da ONU, o permafrost pode recuar "significativamente" entre agora e 2100, se as emissões de CO2 não forem reduzidas.

A temperatura média anual no Ártico aumentou 3,1°C nos últimos 50 anos, em vez de 1°C para o planeta como um todo, alertou o Programa de Monitorização e Avaliação do Ártico (AMAP, na sigla em inglês) em maio.

A questão é se o permafrost atingiu um ponto sem retorno, um momento temido para um lento e completo desaparecimento, em que a libertação de gases é inevitável e a mudança do ecossistema se torna irreversível.

Os cientistas estão preocupados, por exemplo, em ver a floresta amazónica a transformar-se numa savana, ou as calotas polares da Gronelândia e da Antártica a desaparecerem completamente.

"Se todo o carbono congelado fosse libertado, isso triplicaria a concentração (desse gás) na atmosfera", afirma Gustaf Hugelius, especialista em ciclos de carbono e permafrost, da Universidade de Estocolmo.

Isso não aconteceria de repente e de uma única vez, mas ao longo de décadas e séculos, acrescenta.

O principal problema com o permafrost é que o degelo continuará mesmo que todas as emissões humanas cessem imediatamente. "Acabámos de ativar um sistema que vai reagir por muito tempo", diz Hugelius.

Em Abisko, uma pequena cidade com casas vermelhas tradicionais e conhecida pelas suas auroras boreais, os sinais de diminuição do permafrost já são visíveis. Existem fendas no solo e pequenos deslizamentos de terra. Postes telefónicos inclinam-se pelo efeito desses movimentos.

No Alasca, onde o permafrost está presente em 85% do território, o degelo destrói as estradas. Na Sibéria, cidades inteiras estão a começar a desmoronar com os deslizamentos de terra.

Em Yakutsk, de 300.000 habitantes, a maior cidade do mundo construída sobre permafrost, alguns edifícios já foram destruídos.

A deterioração do permafrost também representa outros riscos para as populações e ameaça infraestruturas, como canalizações de água e esgoto, oleodutos e tanques de armazenamento de resíduos químicos, ou radioativos, de acordo com um relatório de 2019 do Ministério do Meio Ambiente da Rússia.

No ano passado, um depósito de combustível rompeu-se depois de as suas fundações terem submergido perto de Norilsk, na Sibéria, despejando 21.000 toneladas de diesel em rios próximos.

A Norilsk Nickel afirmou, na época, que o degelo do permafrost enfraqueceu as estruturas da unidade.

Em todo o Ártico, o degelo do permafrost pode afetar até dois terços das infraestruturas até 2050, conforme relatório preliminar do IPCC obtido pela AFP em junho e com publicação prevista para 2022.

Mais de 1.200 cidades e vilas, 36.000 edificações e quatro milhões de pessoas seriam afetadas, de acordo com a mesma fonte.

Os gases de efeito estufa que escapam do permafrost também ameaçam os objetivos do Acordo de Paris sobre o clima, alertam os cientistas.

Os países que assinaram o tratado de 2015 comprometeram-se a limitar o aquecimento do clima "abaixo" de +2°C, se possível até +1,5°C, em comparação com a era pré-industrial. O objetivo é alcançar a neutralidade de carbono em meados do século XXI.

Para ter dois terços de hipótese de permanecer abaixo do limite de +1,5°C, a humanidade não pode emitir mais de 400 biliões de toneladas de CO2, concluiu o IPCC, recentemente. Nas taxas atuais de emissões, o nosso "orçamento de carbono" esgotar-se-á no prazo de uma década.

Mas essas emissões de carbono aceitáveis "não levam totalmente em conta" as possíveis e imprevisíveis libertações "repentinas" de gases de efeito estufa emitidos por fontes naturais no Ártico, alerta um estudo da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos.

"Muitos modelos climáticos não levam o permafrost em consideração, porque os efeitos do descongelamento são difíceis de projetar", enfatiza Hugelius.

As emissões de algumas áreas são compensadas por um processo de surgimento de plantas no Ártico, devido ao aumento da temperatura, acrescenta este cientista.

No seu último relatório de agosto, o IPCC aponta para essa questão, enfatizando que "o aquecimento global adicional amplificará o derretimento do permafrost". Agir agora ainda pode afetar a velocidade do degelo, avalia Keith Larson.

Mesmo "se não tivermos como controlar a percentagem de permafrost descongelado", isso não significa que "não devamos abrir mão dos combustíveis fósseis, ou mudar o nosso modo de vida neste planeta". O aumento das temperaturas no Ártico "já causou mudanças irreversíveis", lamenta, com tristeza.

"Criamos renas aqui há pelo menos mil anos", conta Tomas Kuhmunen, membro da comunidade Sami, um povo autóctone desta parte do norte da Suécia.

Usando o tradicional chapéu com pompons azuis, vermelhos e amarelos, Tomas, de 34 anos, aponta para os arredores do alto da montanha Luossavaara, com vista para a cidade mineira de Kiruna.

Lá, há dois séculos, os pastores de renas já tiveram de se adaptar à colonização das suas terras e ao surgimento de estradas, ferrovias e minas. Agora, eles enfrentam os efeitos do aquecimento global.

Tradicionalmente, as renas vagueiam livremente durante parte do ano, com o frio do outono a congelar rapidamente o solo, que permanece congelado durante as nevascas do inverno. "Isso cria um bom terreno para as renas desenterrarem o líquen", diz Kuhmunen, explicando que os animais podem sentir o cheiro de líquen até um metro de profundidade de neve.

Mas a mudança dos padrões climáticos afetou a disponibilidade de alimentos. As temperaturas excepcionalmente altas fazem com que a neve derreta e congele novamente quando o frio retorna, formando camadas mais espessas de gelo que impedem as renas de escavar na neve e de acessarem ao líquen, o seu principal alimento.

Assim como outros criadores, Tomas Kuhmunen precisa de mandá-los pastar num território muito maior do que antes.

É obrigado a percorrer dezenas de quilómetros adicionais para cuidar de suas renas, mas faz isso com uma moto de neve em vez de esquis. "Muitas vezes, na floresta, mandamos os animais para pastagens que os nossos ancestrais usavam apenas como uma terceira opção", relata.

De acordo com o Parlamento sami da Suécia, cerca de 2.500 pessoas dependem das renas para viver.

No seu relatório preliminar para 2022, os especialistas do IPCC preocupam-se com as mudanças que os pastores de renas deverão enfrentar.

Na Sibéria, "os meios de subsistência, que consistem no pastoreio de renas e na pesca, tornaram-se vulneráveis pelo degelo do permafrost, que afeta as paisagens e os lagos do norte, assim como pelos episódios de chuva e de neve", observam.

Os criadores precisam "de adaptar-se, de maneira local, tomando decisões cruciais para mudar as rotas de transumância (migração periódica dos rebanhos), a utilização da pastagens e a rotação sazonal".

Quando necessário, Tomas Kuhmunen tem ele próprio de alimentar o seu rebanho. "Isso permite que as renas sobrevivam, mas não é aconselhável" e "não é economicamente viável", diz.

Esta é uma tendência observada na Suécia, na Noruega e na Finlândia, segundo investigadores da Universidade Sueca de Umea.

O problema é que alimentar as renas dessa forma altera sua saúde e torna-as "mais domesticadas".

A 70 quilómetros de distância, no espetacular pico sul do maciço de Kebnekaise, Ninis Rsqvist vê com os seus próprios olhos o efeito do aquecimento global no Ártico ano após ano.

Ágil, esta glaciologista de 61 anos escala a montanha para colocar uma antena na neve fresca com o objetivo de medir a altitude. Antes mesmo de ter a resposta, sabe que o glaciar, localizado 150 quilómetros ao norte do Círculo Polar Ártico, perdeu tamanho em comparação com a medição anterior.

Desde a década de 1970, o cume perdeu mais de 20 metros, e seu GPS já indica apenas 2.094,8 metros de altitude. Há dois anos, esse pico perdeu o título de cume mais alto da Suécia.

"Nos últimos 30 anos, derreteu mais rápido do que antes. E, nos últimos dez, ainda mais", descreve esta professora da Universidade de Estocolmo.

Os verões têm sido excecionalmente quentes, enfatiza Ninis. Picos de 30°C a 35°C de temperatura foram registados neste verão no norte de Noruega, Suécia e Finlândia.

"Vemos os efeitos e dizemos 'ah, estão mais finos, derreteram tanto'", diz Rosqvist.

A maioria dos glaciares suecos provavelmente já está condenada, mesmo que o impacto aqui não seja tão desastroso quanto noutros lugares. Trata-se, no entanto, de um forte sinal para o restp do mundo.

Na América do Sul e nos Himalaias, dezenas de milhões de pessoas dependem do degelo sazonal dos glaciares para obter água potável e para a irrigação.

Quanto à Gronelândia, a sua calota polar contém gelo suficiente para elevar o nível dos oceanos em sete metros, sem mencionar a Antártica, que, com a sua calota de gelo, aumentaria o caudal atual em várias dezenas de metros.

Para muitos investigadores, uma lição importante do Ártico é que alguns desses ecossistemas já estão fora do controlo humano.
Modificar o nosso modo de vida para que as emissões caiam "será o início de um processo de adaptação a um clima que vai ficar mais quente por muito tempo", finaliza o especialista Keith Larson.