Internacional
28 setembro 2022 às 22h10

"Este conflito na Ucrânia é verdadeiramente doloroso para o Cazaquistão"

Vice-ministro dos Negócios Estrangeiros cazaque esteve em Portugal e acredita que as relações bilaterais têm possibilidades de se aprofundar. Roman Vassilenko reafirma compromisso do presidente Tokayev com a democratização e a desoligarquização e também a disponibilidade para mediar entre Moscovo e Kiev se as lideranças quiserem. Oposição às armas nuclear mantém-se uma prioridade diplomática cazaque, tal como a coexistência interétnica é sagrada a nível interno.

Foi importante para o Cazaquistão, em termos de afirmação do país, ser o primeiro destino do presidente chinês depois de este ter estado dois anos sem viajar para o estrangeiro?
Bom, para o Cazaquistão foi importante receber o presidente Xi Jinping. Nós não estamos, é claro, à procura de nenhuma promoção da imagem com isso. Foi sem dúvida a sua primeira visita fora da China depois da pandemia, mas é importante que esta visita gere resultados concretos. Ela aconteceu depois de o nosso presidente, Kassym-Jomart Tokayev, ter visitado a China no início deste ano para os Jogos Olímpicos de Inverno, mas, mais importante ainda, aconteceu na sequência de uma visita a Pequim em setembro de 2019, há exatamente 3 anos, quando os dois presidentes assinaram a declaração conjunta proclamando as relações entre os dois países como sendo uma parceria estratégica eterna.

A China é já um dos principais parceiros comerciais do Cazaquistão?
A China é um dos principais parceiros do Cazaquistão - em termos de comércio é o segundo maior, depois da Rússia. Se contarmos a União Europeia como os seus 27 membros, a UE é o nosso maior parceiro comercial e investidor, mas em termos de países, o primeiro é a Rússia e logo a seguir vem a China, que também se está a tornar um dos maiores investidores, e que está a investir muito em áreas para lá da energia, como a construção, engenharia e indústria. Também é importante recordar que foi em Astana, a nossa capital, em setembro de 2013, há exatamente nove anos, que o presidente Xi anunciou a sua Nova Rota da Seda. Claro que o Cazaquistão é o primeiro país no caminho da China para a Europa e é uma peça-chave da nossa própria visão para a restauração da Rota da Seda do passado, que vai voltar a ligar a Europa e a Ásia por terra. Sem dúvida que Portugal é uma nação marítima com a imensa História, que abriu a circum-navegação global com Vasco da Gama e Magalhães - que, a propósito, levou ao declínio final da Rota da Seda. Agora, o comércio marítimo é também enorme e nós não pretendemos sequer competir com o volume de mercadoria que é transportado da China para a Europa por mar. Mas há verdadeiramente uma boa oportunidade, dada a turbulência geopolítica, de desenvolver o transporte terrestre da China, através do Cazaquistão e através do chamado Corredor do Meio, que passa não apenas pela China e Cazaquistão, como pelo Mar Cáspio, Azerbaijão, Geórgia, Mar Negro e Europa de Leste. Devo acrescentar que, durante dez anos, três países trabalharam muito bem - Cazaquistão, Rússia e Bielorrússia - para criar a chamada Rota do Norte da China para a Europa, mas agora nós compreendemos que há uma necessidade maior de existir diversidade.

Tendo o Cazaquistão como maior parceiro comercial a Rússia, com tantas ligações históricas e laços económicos, como é que o país está a ser afetado pela guerra na Ucrânia?
Bom, devo começar por dizer que isto é uma situação extremamente dolorosa para o Cazaquistão. Não só porque temos de ser cada vez mais cuidadosos na nossa Política Externa, mas também pela maneira como este conflito é um conflito que não deixa verdadeiramente ninguém indiferente no Cazaquistão. Nós fazíamos parte de um mesmo país com a Rússia e a Ucrânia durante décadas, se não séculos; nós estivemos juntos na luta contra os nazis, derrotámo-los na Segunda Guerra Mundial; estamos ligados por uma História comum de outros factos notáveis como o desenvolvimento do Programa das Terras Virgens no Cazaquistão, que, com Khrushchev, fez com que centenas de milhares de russos, ucranianos e bielorrussos fossem mandados para o Cazaquistão para desenvolver as Terras Virgens, razão pela qual o Cazaquistão é hoje um dos maiores produtores de cereais do mundo. Claro que durante os últimos 30 anos todos nós percorremos o nosso próprio caminho como países, mas continuamos com ligações muito próximas. Estamos certamente ligados à Rússia por milhões de laços humanos e emocionais. Há 3,5 milhões de pessoas de etnia russa no Cazaquistão que são cidadãos cazaques, mas também há 300 mil de etnia ucraniana que também são cidadãos cazaques e todos têm familiares na Rússia e na Ucrânia. Portanto, isto significa que este conflito é verdadeiramente doloroso.

Não é só o impacto económico da guerra a sentir-se no Cazaquistão?
Não, estou a falar de sentimentos humanos. Mas claro que, em termos de impacto económico, a economia do Cazaquistão sofre, pois está muito ligada à economia russa. Nós fazemos parte da União Económica Euroasiática - somos membros fundadores desta união -, que foi criada em Astana em 2014 quando foi assinado o tratado. Também temos no Cazaquistão cerca de nove mil empresas russas ou empresas mistas com capital russo. Portanto, se compararmos com as seis mil empresas europeias que estão no país, vemos a grande presença da Rússia. Assim, naturalmente, quando a economia russa sente dificuldades, a economia do Cazaquistão também vai sentir o impacto.

A energia cara atenua um pouco?
Agora os preços do petróleo e do gás estão altos e estão a impulsionar as nossas exportações, claro, e estão a impulsionar as estatísticas, o que significa que nos primeiros oito meses deste ano a economia do Cazaquistão cresceu 4%. Mas não estamos a ficar complacentes, estamos muito atentos, e o nosso governo está a tomar medidas específicas para evitar qualquer impacto negativo na nossa economia causado pelas dificuldades económicas na Rússia, pelas sanções ocidentais contra a Rússia ou as contra-sanções russas ao ocidente. É uma questão que merece a atenção permanente do governo - estamos a tomar muitas medidas económicas para promover o investimento, o crescimento, para aliviar a burocracia para que seja mais fácil fazer negócios, mas é uma situação muito complicada. Devido às relações comerciais com a Rússia, a moeda cazaque está muito estreitamente ligada ao rublo russo e, por causa desta situação desde fevereiro, o rublo russo perdeu inicialmente o seu valor, assim como o tenge, mas o rublo russo recuperou e é agora duas vezes mais caro para o tenge. Estas são vivências da vida real e impactos da situação que afetam a vida de milhões de pessoas no nosso país, porque os preços aumentaram, desde os materiais de construção, até aos bens alimentares, etc. Portanto, o governo está a dar o seu melhor para controlar a inflação, mas devido a esta turbulência geopolítica e geoeconómica nós também estamos à espera de tempos mais duros à nossa frente. Mas a nossa resposta é investir em força em reformas económicas e políticas, que é o que o presidente tem vindo a fazer desde janeiro. Em janeiro houve um grande levantamento no nosso país, que estamos a ultrapassar com reformas constitucionais e económicas. A ideia é, basicamente, construir, como diz o nosso presidente, um novo Cazaquistão, o que significa um Cazaquistão mais justo.

Em relação ao presidente Tokayev e às reformas que está a levar a cabo nos recentes meses , quando olhamos para os últimos 30 anos do Cazaquistão como país independente, vemos que houve protagonismo na cena internacional, desenvolvimento económico, respeito entre as diferentes comunidades. O Cazaquistão é um dos poucos países da antiga União Soviética que não esteve envolvido em nenhuma espécie de guerra desde 1991. Este legado de coexistência pacífica entre mais de cem comunidades diferentes é prioritário de preservar?
Nós vemos a paz na nossa sociedade multiétnica como as fundações em cima das quais conseguimos construir tudo. Porque sem essa estabilidade, sem esse respeito uns pelos outros, haveria violência étnica e não haveria um Cazaquistão de sucesso. Essa foi a prioridade para o nosso primeiro presidente, também o é para o nosso atual presidente, Tokayev, e isso é entendido por todos os líderes políticos. O presidente e o governo fazem todos os esforços para manter essa estabilidade e para a promover. Temos a Assembleia do Povo do Cazaquistão que reúne todos os grupos étnicos do país. Não é um Parlamento, mas é uma associação pública que reúne todos os mais de cem grupos étnicos, e eles têm os seus próprios representantes no Parlamento. Até agora eles ainda mandam nove membros dos 107 da Câmara Baixa, mas com a nova reforma da Constituição irão mandar, não para a Câmara Baixa, pois esses membros serão eleitos diretamente, mas para o Senado.

Quando vemos estas mudanças recentes, é possível dizer que existe ainda continuidade entre a presidência de Nursultan Nazarbayev e esta de Tokayev? O Cazaquistão está a mudar, mas preserva as coisas boas dos últimos anos?
Nós estamos a mudar e a preservar as coisas boas que temos vindo a fazer desde há 30 anos, mas como pretendemos construir um novo Cazaquistão, o que estamos a mudar é a forma como a política é feita. Tem de ser feita de modo mais competitivo, com mais partidos políticos registados a participarem nas eleições e na vida política no Parlamento. Estamos a construir uma economia justa, o que significa nivelar o acesso para todos, reduzir o envolvimento do governo, reduzir as regulamentações governamentais, mas também lutar contra as oligarquias. Estamos a trabalhar para uma desoligarquização, que é uma palavra comprida, mas que quer dizer que em algumas indústrias foi criado um núcleo sénior de pessoas com bons contactos com o poder, o que criou discrepâncias na economia com condições muito injustas para algumas pessoas se tornarem fabulosamente ricas. Algumas dessas pessoas estão agora sob investigação, há julgamentos que já começaram e elas estão a devolver centenas de milhões de dólares ao Orçamento do Estado voluntariamente. Por um lado, estamos a processar aqueles que beneficiaram ilegalmente e, por outro, estamos a criar condições legais para que isto não se repita no futuro. Estamos também a introduzir muitas reformas sociais, o que nos leva a gastar muito mais dinheiro na Educação, nos Cuidados de Saúde e nas Pensões. Sabemos que temos de ter uma juventude mais competitiva, com mais educação e, para isso, temos de desenvolver o Sistema Educativo para lá dos muito bons exemplos da Universidade Nazarbayev e dos seus intelectuais. Temos de pôr as milhares de escolas de país ao mesmo nível e todas as universidades ao mesmo nível internacional. É isso que o governo está a fazer.

O Papa esteve recentemente no Cazaquistão e um dos temas de que falou foi da posição nuclear do Cazaquistão, um dos poucos países com um arsenal nuclear que decidiu desmantelá-lo. Em termos da imagem do Cazaquistão, da diplomacia, esta posição, num momento em que o mundo fala de guerra nuclear, é de primeira importância?
O nosso presidente fez uma declaração específica sobre este tema na Assembleia-Geral das Nações Unidas na semana passada, quando lembrou toda a gente da contribuição que o Cazaquistão está a fazer para o desarmamento nuclear global. Ele disse que nós estamos crescentemente preocupados com o facto de o uso das armas nucleares chegar agora a ser considerado como possível, como ele mencionou, nem sequer como uma arma de último recurso, mas apenas no decurso da guerra. Portanto, foi bastante forte nesta posição, assim como na reiteração do nosso compromisso com os princípios sobre os quais está construída a Carta da ONU, como a integridade territorial dos Estados, o seu respeito mútuo e o direito de todos os Estados de viverem em paz.

Em relação a esta guerra na Ucrânia, pensa que o Cazaquistão, e especialmente Tokayev pelo prestígio, pode ter alguma espécie de papel mediador se as duas partes o desejarem?
O nosso presidente ofereceu o Cazaquistão como mediador se a Rússia e a Ucrânia precisarem de um tal mediador. Claro que houve conversações mediadas pela Turquia. Ficámos contentes que fosse a Turquia, podia ser qualquer outro país, mas, se em algum momento, os esforços do Cazaquistão forem necessários, estaremos sempre disponíveis para providenciar essa plataforma. No passado, o Cazaquistão foi anfitrião de conversações do Plano de Ação Conjunto Global sobre o programa nuclear do Irão; já recebemos 18 rondas de conversações das Negociações de Astana sobre a Paz na Síria que juntaram o governo deste país e a oposição armada, assim como a Rússia, o Irão e a Turquia. Portanto, temos experiência e somos anfitriões do Congresso de Líderes de Religiões Tradicionais do Mundo desde 2003, foi o sétimo congresso em setembro, em que participaram 105 delegações de 60 países, incluindo o Papa Francisco em pessoa, assim como líderes do islão, judaísmo, taoismo, budismo, etc. Temos a experiência e, se nos for solicitado, estamos preparados para darmos o nosso melhor.

Esta é a sua segunda visita oficial a Portugal. Quais são as possibilidades que vê nas relações bilaterais?
Eu estava a preparar esta viagem e pedi aos meus colegas para procurarem ditados populares portugueses e gostei particularmente daquele que diz: "Amigo verdadeiro vale mais do que dinheiro". Nós temos alguns provérbios semelhantes no Cazaquistão. Nós somos dois países que são, sem dúvida muito diferentes, porque vocês são uma nação marítima e nós somos uma nação continental, mas penso que existe muito que nos une em espírito. Tal como os portugueses foram a maravilha dos mares, os seus descobridores, os antepassados dos cazaques foram os nómadas da terra. As tradições de hospitalidade são muito semelhantes, ambas as nações são muito abertas e acolhedoras, muito sulistas, se quiser... portanto, compreendemo-nos muito bem quando falamos de hospitalidade ou de traços nacionais. Isso para mim é mais relevante do que os números do comércio ou dos investimentos, que não são enormes, mas são prometedores. Ambos procuramos novos mercados, novas oportunidades de negócio e há muito que podemos oferecer um ao outro. Estive a olhar para as estatísticas e as empresas portuguesas, nos últimos 15 anos, investiram no Cazaquistão cerca 250 milhões de euros. Penso que o Cazaquistão não investiu muito em Portugal, se é que investiu alguma coisa, mas há cerca de 20 empresas portuguesas no Cazaquistão. Duvido que haja empresas cazaques em Portugal, mas isto é apenas o início...

Portugal já descobriu o Cazaquistão, mas o Cazaquistão ainda não descobriu Portugal?
Sim, as empresas portuguesas já chegaram lá, por terra... não usaram navios para chegar ao Cazaquistão, o maior país encravado do mundo [risos]. Penso que temos bons alicerces em cima dos quais podemos construir. Sei que estão a ser nomeados cônsules honorários e não só abrimos a nossa embaixada em Lisboa em 2019 - uma das primeiras decisões do presidente Tokayev depois de assumir o cargo -, como estamos contentes por, depois de sete anos de trabalho do encarregado de negócios português Adelino Silva, termos agora uma embaixadora de Portugal, Maria de Fátima Mendes.

leonidio.ferreira@dn.pt