Internacional
21 setembro 2021 às 13h17

"Estávamos à beira do socialismo", diz Bolsonaro em discurso radical

Presidente do Brasil voltou a defender o tratamento precoce e a atacar o isolamento no combate à pandemia, contradizendo a Organização Mundial de Saúde. E tentou agradar, sobretudo, à sua base de apoio interna. Para a oposição, "mentiu vergonhosamente"

João Almeida Moreira, São Paulo

Jair Bolsonaro abriu ontem a 76ª Assembeia Geral das Nações Unidas com um discurso, sobretudo, para consumo interno. Sublinhou que o Brasil vivia sob ameaça socialista e reiterou a defesa do tratamento precoce o ataque ao isolamento social no combate à pandemia.

"A pandemia apanhou todos de surpresa, sempre defendi combater o vírus e o desemprego, o isolamento. entretanto, deixou legado de inflação", afirmou o presidente brasileiro. "Não entendemos por que muitos países se posicionaram contra o tratamento inicial", continuou, recomendando mais uma vez o uso de remédios que já foram amplamente descartados pela ciência como tratamento para o novo coronavírus.

Bolsonaro, que diz não ter sido vacinado, afirmou ainda "apoiar a vacinação" mas ser "contrário ao passaporte da vacina".

Para o chefe de estado do país sul-americano, "o Brasil mudou e muito" desde a sua chegada ao Palácio do Planalto. "Estamos há dois anos e oito meses sem casos concretos de corrupção. O presidente do Brasil acredita em Deus, na Constituição, na família tradicional. São bases sólidas, afinal estávamos à beira do socialismo".

Dados positivos na economia, no meio ambiente de no número de manifestantes na celebração recente do 7 de Setembro, dia da Independência do país, apresentados durante o discurso têm sido, entretanto, desmentidos por agências de verificação de factos.

Randolfe Rodrigues, senador do Rede Sustentabilidade e vice-presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI ) que apura o caos e a corrupção no combate à pandemia pelo governo, reagiu imediatamente pelas redes sociais. "Bolsonaro disse que mudou o Brasil. Mudou mesmo: 19 milhões de famintos, 14 milhões de desempregados, quase 600 mil mortos pela má gestão da pandemia, desastre ambiental, desastre na Educação e negação da ciência".

O relator dessa CPI, senador Renan Calheiros (MDB), achou que "o presidente mentiu vergonhosamente do começo ao fim do seu discurso". Para o jornalista Otávio Guedes, da GloboNews, Bolsonaro pode até ter produzido "provas contra si" ao voltar a insistir no ineficaz tratamento precoce, um dos pontos em análise na CPI.

Ex-apoiante do presidente o deputado Kim Kataguiri (DEM) destacou o período em que Bolsonaro fala em "dois anos e oito meses sem casos de corrupção". "Dois anos e oito meses sem casos de corrupção? Bolsonaro no Brasil: pedidos de suborno na vacina, vacina sobrefaturada, casos de rachadinha [desvio de dinheiro dos assessores], tratoraço [caso de pagamento ilegal a deputados em troca de apoio] e Irregularidades em contratos de informática".

Para os principais jornais, Bolsonaro fez discurso "distorcido", segundo o ​​​​​​Folha de S. Paulo e "radical e repleto de mentiras", para O Globo.

Antes de Bolsonaro, falou o secretário-geral das Nações Unidas. "Estou aqui para soar o alarme, o mundo deve acordar porque nunca esteve tão ameaçado e dividido", disse António Guterres. E referiu-se ainda à crise climática, à pandemia, à situação do Afeganistão e ao "excesso de comida nalguns lugares e à falta noutros". "É preciso acabar com supremacias, misoginia, problemas ideológicos... é hora de restaurar a esperança", sublinhou.

A tradição de o presidente do Brasil ser o primeiro a discursar na Assembleia Geral da ONU, antes mesmo do homólogo anfitrião, no caso Joe Biden, é um reconhecimento ao papel do diplomata brasileiro Osvaldo Aranha, presidente do órgão em 1947 e 1948.

Na antevéspera do discurso, dia 19, Jair Bolsonaro já fora notícia ao ser fotografado a partilhar com a sua comitiva uma pizza na rua em Nova Iorque. Por afirmar não se ter vacinado contra a covid-19 - não há garantia de que o presidente brasileiro não se tenha vacinado porque ele impôs sigilo de 100 anos ao seu cartão de vacinação - estaria impedido de entrar em restaurantes e outros locais públicos da cidade de Nova Iorque que exigem o comprovativo de imunização.

Para justificar o jantar na rua, membros da comitiva brasileira publicaram fotos nas redes sociais. "Jantar de luxo em Nova York", brincou na plataforma Twitter o ministro da Secretaria da Presidência da República, Luiz Eduardo Ramos, como legenda da foto.

"Hoje é pizza-coca", acrescentou no Instagram o ministro do Turismo do Brasil, Gilson Machado, famoso pela interpretação muito pessoal do Ave Maria de Gounod em acordeão em homenagem às vítimas da covid-19, em mais um registo para sublinhar a suposta simplicidade do grupo.

Já ontem, dia 20, Bolsonaro reuniu-se com Boris Johnson, primeiro-ministro do Reino Unido. Em imagens distribuídas pela agência Reuters, ouve-se Johnson a recomendar a vacina da AstraZeneca/Oxford, que é produzida também no Brasil em parceria com a Fundação Osvaldo Cruz, ao brasileiro.

"É uma ótima vacina. Obrigado, pessoal. Tomem vacinas da AstraZeneca!", diz ele ao lado de Bolsonaro, que é o único líder entres as maiores economias do planeta que alega não ter tomado ainda imunizante contra a Covid-19.

"Já tomei duas vezes", disse ele, olhando para Bolsonaro e apontando com o dedo como questionando se ele tinha tomado também, ao que o brasileiro responde que "ainda não".

Nessa noite, a comitiva brasileira foi recebida no hotel por manifestantes brasileiro a chamar o presidente de "genocida". Causou espanto, de dentro de um autocarro a reação de Marcelo Queiroga, ministro da Saúde, a fazer um gesto com o dedo médio esticado para os compatriotas.

Tido como moderado, o diplomata Carlos França, ministro das Relações Exteriores, respondeu imitando com a mão uma arma, um dos símbolos do bolsonarismo.

Em paralelo, Bill de Blasio, o mayor de Nova Iorque, disse que Bolsonaro não era bem-vindo e marcou o presidente brasileiro numa publicação onde listava os locais de vacinação.