Internacional
22 maio 2022 às 23h29

Da luta do Solidariedade ao regresso dos talibãs, as reportagens e análises de um grande jornalista

É um livro de homenagem a Carlos Santos Pereira (1950-2021) aquele que hoje é apresentado às 18.00 no IDN, em Lisboa, com textos que o repórter publicou ao longo de quatro décadas no Expresso, no Público, no DN, na Lusa e no Le Monde Diplomatique.

Tenho pensado muito sobre o que escreveria o Carlos Santos Pereira sobre a guerra na Ucrânia se não tivesse morrido faz agora um ano. Conheci-o em 1993, quando começou a colaborar com o DN e, acabado de chegar da Bósnia na sua BMW, se sentava ao meu lado e comentava "vamos lá aviar a prosa". Na época, ainda se fumava nas redações e o Carlos (sim, vou ter de o tratar assim) tinha paixão por cachimbos, tanta como dizer meia dúzia de palavrões enquanto escrevia, ao mesmo tempo que pelo canto do olho tentava perceber se as jornalistas da secção Internacional, em especial a Lumena Raposo e a Ana Glória Lucas, se escandalizavam. Era, creio, uma forma de combater o stress, um stress que tinha muito que ver com a forma totalmente dedicada com que encarava a profissão. Para ele, coragem e saber eram duas faces da mesma moeda para quem queria ser o que às vezes se chama um repórter de guerra. No livro homenagem ao Carlos que hoje é apresentado no Instituto de Defesa Nacional, em Lisboa, às 18.00, está uma reportagem feita em 1993 em Srebrenica para o DN que testemunha bem como sabia aliar bravura e conhecimento. Estão muitas outras do mesmo valor, publicadas ao longo dos anos também no Expresso, no Público, na Lusa e no Le Monde Diplomatique - edição portuguesa.

Intitulado Do Solidariedade ao Afeganistão- Quatro Décadas de Vida de Repórter, o livro recolhe alguns dos melhores artigos do Carlos, sejam reportagens ou análises, e nasceu da iniciativa de alguns amigos, logo no dia do funeral. Esses amigos, entre os quais tenho a honra de estar incluído, surgem como coordenadores e são ainda André Santos Pereira (sobrinho), Carlos Branco, Manuela Barreto, Pedro Caldeira Rodrigues e Sandra Monteiro. Falante de várias línguas eslavas, e nomeadamente do russo, o Carlos dedicou-se muito à Europa de Leste e não deve surpreender que boa parte do conteúdo do livro tenha muito que ver com as transformações no antigo bloco comunista, como a emergência nos anos 1980 do Solidariedade na Polónia, o sindicato liderado pelo eletricista Lech Walesa que fez vergar o regime de Varsóvia, que surge no título. Mas a geopolítica era também uma paixão e daí o título falar igualmente de Afeganistão, referência a uma análise publicada já em 2021 sobre a retirada americana.

Quando morreu, o Carlos era pela terceira vez colaborador do DN. A nossa última conversa foi para combinarmos um artigo de análise sobre o conflito israelo-palestiniano e as suas ramificações em todo o Médio Oriente. Na casa perto de Ourém onde vivia, e que tinha sido dos pais, entre milhares e milhares de livros, estavam algumas notas para esse artigo que nunca chegou a ser finalizado. Comoveu-me (este é um texto muito pessoal, não podia deixar de ser, tenho de o reafirmar) e deu ainda mais sentido ao editorial que lhe dedicámos no DN a 25 de maio de 2021 e que tinha como título "Desta vez, o Carlos não aviou a prosa".

Espero que este livro seja um sucesso. O Carlos merece. São páginas que ajudam a perceber o mundo, até esta guerra atual na Ucrânia, e que podem inspirar atuais e futuros jornalistas. Também não posso deixar de recomendar, entre outros livros que o Carlos publicou, o monumental Da Jugoslávia à Jugoslávia. E para aqueles que se lembram do Carlos na televisão, na RTP, o prefácio da Diana Andringa é também um notável contributo para perceber no todo o que foi este repórter, um verdadeiro grande repórter.

leonidio.ferreira@dn.pt