Internacional
20 março 2023 às 21h46

Com o "velho amigo" Putin, Xi ensaia novo papel de mediador

Em Moscovo, o líder chinês faz equilibrismo entre o aprofundamento das relações bilaterais com a Rússia e a iniciativa de paz para a Ucrânia. TPI pede ajuda para investigar crimes de guerra e a União Europeia chega a acordo para fornecer munições a Kiev.

É a primeira viagem ao estrangeiro do líder chinês desde que foi reconduzido a um inédito terceiro mandato, tal como fez quando ascendeu ao poder, em 2013. Mas como o próprio visitado escreveu antes do encontro, "muitas coisas mudaram no mundo e muitas vezes não para melhor", incluindo uma guerra e uma invasão à Ucrânia e um mandado de detenção em seu nome. É nestas circunstâncias que a visita de três dias à Rússia de Xi Jinping se reveste de particular importância para Vladimir Putin. E que permite ao presidente chinês ensaiar um novo papel na ordem mundial, ao oferecer-se como um agente pelo estabelecimento da paz na Ucrânia, num equilíbrio entre o reforço das relações com Moscovo e a anunciada neutralidade no conflito.

A visita decorre quase um mês depois de Pequim - pressionada há meses pela sua inação diplomática face à guerra - ter apresentado um plano de paz constituído por 12 pontos. Sem mencionar a Rússia ou a Ucrânia, o documento pede uma trégua, negociações de paz e o fim da sanções, enquanto defende a soberania de todos os países.

"Estamos sempre recetivos a negociações", disse Putin a Xi na primeira reunião entre ambos, informal, no Kremlin, que durou quatro horas e meia, ao que se seguiu um jantar, com a cimeira a decorrer nesta terça-feira. Antes, o assessor diplomático do Kremlin Yuri Ushakov disse que "o principal é as negociações, as negociações e as negociações".

Destaquedestaque42% Uma sondagem do European Council on Foreign Relations conclui que 42% dos chineses defendem o fim da guerra, ainda que a Ucrânia seja forçada a perder território. Só 23% diz que Kiev deve retomar o seu território, ainda que prolongando o conflito.

Na preparação para o encontro, que culminará com uma declaração conjunta e assinatura de vários acordos, cada líder assinou um texto num jornal do outro país. Putin deu as boas-vindas ao "velho amigo" Xi e descreveu a viagem de "amizade, cooperação e paz".

Em Kiev, o porta-voz da diplomacia pediu a Pequim "para usar a sua influência em Moscovo para pôr fim à guerra agressiva contra a Ucrânia". Porém, Washington continua desconfiado das motivações chinesas e o secretário de Estado Antony Blinken advertiu que a iniciativa de Pequim pode ser uma "tática para empatar", permitindo à Rússia, em caso de trégua, ganhar tempo para se fortalecer.

O Tribunal Penal Internacional (TPI) pediu o apoio e a "perseverança" da comunidade internacional para ajudá-lo a investigar crimes de guerra cometidos na Ucrânia, três dias depois de emitir mandados de prisão ao presidente russo Vladimir Putin e à comissária russa para os direitos das crianças Maria Lvova-Belova, pelo crime de guerra de "deportação ilegal" de crianças ucranianas. "Precisamos coletivamente de perseverança para alcançar a justiça", defendeu o procurador-geral do TPI Karim Khan numa conferência em Londres, organizada pelo Reino Unido e Países Baixos, com a participação de ministros da Justiça e representantes de mais de 40 Estados.

Em retaliação à iniciativa do TPI, que afirmou ser "legalmente nulo e sem efeito", Moscovo anunciou a abertura de uma "investigação criminal" contra Khan e três juízes do TPI. E do regime chinês recebeu também críticas. O tribunal deveria "manter uma postura objetiva e imparcial e respeitar a imunidade de jurisdição dos chefes de Estado com base no direito internacional", declarou o porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Wang Wenbin, que instou o TPI a "evitar a politização e os padrões duplos". A Rússia e a China - tal como os EUA e a Índia - não estão entre os 123 países signatários do Estatuto de Roma, que define a vigência do TPI.

Portugal faz parte do TPI desde a primeira hora e o ministro dos Negócios Estrangeiros afirmou que "Portugal assume as suas responsabilidades como signatário" do TPI, o que inclui a eventualidade de deter o líder russo caso este entrasse em solo português. "E essa é a nossa expectativa também em relação aos outros 122 países que são signatários".

Na véspera, o ministro da Justiça alemão Marco Buschmann também declarara esse compromisso para com o mandado de detenção emitido pelo tribunal de Haia.

Reunidos em Bruxelas, os ministros da Defesa e dos Negócios Estrangeiros dos 27 chegaram a acordo sobre uma iniciativa destinada a fornecer à Ucrânia um milhão de munições de artilharia nos próximos 12 meses e ao mesmo tempo reconstituir os stocks dos estados-membros.

A primeira parte do plano da UE reserva mil milhões de euros de financiamento partilhado para tentar fazer com que os Estados da UE explorem os seus stocks de munições que podem ser enviados o quanto antes. A segunda parte verá o bloco europeu utilizar mais mil milhões de euros para encomendar munições de 155 mm para a Ucrânia numa aquisição conjunta destinada a estimular as empresas de defesa da UE a aumentarem a produção.

O chefe da diplomacia da Ucrânia, Dmytro Kuleba, saudou a "medida decisiva" da UE. "Exatamente o que é necessário: entrega urgente mais aquisição conjunta sustentável", escreveu Kuleba. As forças de Kiev estão a racionar o poder de fogo numa fase em que a invasão russa se transformou numa guerra de desgaste e de trincheiras e o consumo de munições ultrapassa em muito a quantidade que os seus aliados ocidentais fabricam.

O chefe da diplomacia da UE, Josep Borrell, disse que o plano consiste em comprar a fabricantes europeus e assinar contratos para as munições até ao final de maio, mas o ministro dos Negócios Estrangeiros lituano Gabrielius Landsbergis exprimiu publicamente as suas dúvidas sobre a capacidade de cumprir o calendário. "Isto vai levar tempo, claro, há também alguma falta de materiais e assim por diante", disse por sua vez o ministro finlandês Pekka Haavisto, tendo explicado que a produção "é para o tempo de paz e desta vez estamos em guerra na Europa".

No mesmo dia, o país que mais gastou em assistência militar à Ucrânia, os Estados Unidos, anunciou o 34.º pacote desde agosto de 2021. Avaliado em 350 milhões de dólares, inclui as referidas munições de 155 mm, munições para o lançador múltiplo de precisão HIMARS, mísseis HARM (que os ucranianos adaptaram aos caças soviéticos Mig-29), entre outro material. A Noruega, por sua vez, informou que os oito tanques Leopard 2 que se tinha comprometido enviar para a Ucrânia já chegaram ao destino. "Para a Ucrânia, a doação de tanques será decisiva para a sua capacidade de conduzir operações ofensivas e retomar as terras ocupadas pela Rússia", disse o tenente-coronel Lars Jensen, chefe do Batalhão Blindado da Noruega.

cesar.avo@dn.pt