Pina Moura
De Cunhal dos pequeninos a cardeal dos socialistas.
Aquele que um dia foi um dos mais promissores políticos comunistas, delfim de Cunhal, transformou-se, em 15 anos, num dos mais badalados capitalistas nacionais com várias ligações. Eis o perfil de Joaquim Pina Moura, um homem 12 vezes mais rico do que quando iniciou a sua carreira política.
Antes das urnas fecharem e de se conhecer a segunda maioria absoluta de Cavaco Silva, às 18 horas do dia 6 Outubro de 1991, um militante comunista com o cartão nº 130 entrava na sede do PCP na Soeiro Pereira Gomes e entregava um envelope com 14 páginas manuscritas. Joaquim Pina Moura explicava os motivos pelos quais abandonava o partido a que aderira em 1972, consumando assim um afastamento cuja origem era, pelo menos, tão antiga como a perestroika de Gorbachov.
Quando na próxima quarta-feira, véspera da Assembleia Geral da Media Capital, Pina Moura renunciar ao lugar de deputado e abandonar os cargos nos órgãos nacionais do PS, onde se filiou em 1995, para assumir o lugar de administrador não executivo da empresa que domina a TVI, irá cumprir o que prometera numa entrevista ao Expresso em 2000 e em que (quase) niguém acreditara nessa época: "eu reformar-me-ei" da política.
Sai da política activa uma pessoa diferente. 34 anos depois de aderir ao PCP e 12 de militância PS, Pina Moura é hoje um homem mais rico e sobretudo mais influente a nível empresarial. Em 12 anos, triplicou o seu rendimento. Segundo a declaração de IRS apresentada ao Tribunal Constitucional teve um rendimento bruto em 1994 de cerca de 44 mil euros (três mil euros por mês, considerando 14 meses de ordenado).
A declaração é conjunta com a mulher, a enfermeira Herculana Rosa Diogo de Carvalho, filha de um mítico militante comunista e herdeira da grande fortuna do avô paterno. O casal beneficia de rendas de imóveis, no Porto, pertencentes a Herculana Carvalho, com quem casou em Outubro de 1976 com separação "absoluta" de bens, declara ao Constitucional.
Em 1995, ano em que chega ao PS e ao Governo, ainda enquanto secretário de Estado adjunto de António Guterres, o rendimento bruto apurado para efeitos de IRS atinge os 59 mil euros. Em 2001, ano em que cessa funções governamentais, declara um rendimento como trabalhor dependente de 72.398,7 euros (este terá sido o rendimento individual já que ao contrário dos outros anos em que optou por apresentar os comprovativos da entrega do IRS, neste caso o valor foi divulgado no formulário do Tribunal Constitucional, onde se pede o valor individualizado).
A última declaração recebida por esta instância, data de Março de 2005, apresenta o rendimento de 2003, ano em que Pina Moura além de deputado era consultor do Millen nium bcp. Nesse ano recebeu 54.493,7 euros como trabalhador dependente e 118.164,5 euros como independente.
Pina Moura, que deixa o Parlamento no dia 2 de Maio, tem 60 dias para actualizar a informação ao Constitucional, mas a presidência da Iberdrola, que assumiu em 2004, estima-se que lhe renda, mensalmente, 60 mil euros, a que se juntam os cerca de nove mil euros da Media Capital. Pina Moura, à RTP, justificou a opção da Prisa pelos créditos que lhe são conferidos como gestor. Certo é que a sua vida na gestão executiva começa tarde. A influência política, no entanto, vem de trás.
Desde 1994, os rendimentos de Pina Moura têm subido, mas os bens patrimoniais declarados não. Reside, há anos, no mesmo andar no Restelo, paredes meias com o Hospital Francisco Xavier, onde trabalha a mulher.
Automóveis? Além do carro de serviço, da empresa, conduz a sua própria máquina. Já não é o velhinho Peugeot 205 que declarava ao Constitucional estar "muito usado". Não são conhecidos hobbies excêntricos. Aliás, há quem diga mesmo que nos bens materiais preferiu manter a escola PCP.
Dissidente comunista
O "Cunhal dos Pequeninos", como era conhecido nos tempos em que liderava a União dos Estudantes Comunistas (UEC) e era apontado como potencial sucessor do líder mítico tinha perdido qualquer esperança num possível "desvio social-democrata" desde Agosto de 1991.
O apoio da Comissão Política do PCP ao golpe de Moscovo contra Gorbachov só não fez com que ele abandonasse logo o partido porque se estava em período pré-eleitoral. Mas, em Outubro, cortava definitivamente com o ideário comunista, con cluindo um longo processo de ruptura, cuja origem tinha ainda razões internas: a crítica comunista à adesão europeia e a decisão de nunca apoiar uma candidatura de Soares a Belém.
O jovem em que Ângelo Veloso tinha reparado quando ainda estava no Porto à frente da estrutura dos estudantes comunistas e que tinha aderido ao partido, em 1972, ficando com o pseudónimo Duarte que tinha sido, décadas antes, o de Cunhal, já não olhava para as qualidades do líder como nesses anos a seguir ao 25 de Abril e em que teve uma ascensão no interior do partido.
Em 1976, no VIII Congresso do PCP, entrou como suplente no Comité Central, cooptado da UEC, ao lado de Zita Seabra, a quem sucedeu, no ano seguinte, à frente da direcção nacional da estrutura que congregava os estudantes comunistas - o que implicou mudar-se do Porto para Lisboa.
Por essa época, ainda Cunhal não lhe responderia, com alguma rispidez, às dúvidas que manifestaria antes dos congressos de 1988 e 1990. Ao defender, a par do voto secreto e que o Avante! se abrisse à discussão interna, que fossem aceites moções alternativas no XII Congresso, ouvirá Cunhal retorquir que se os 150 mil militantes quisessem todos escrever moções não haveria papel que chegasse. No XIII Congresso, onde Carvalhas foi eleito secretário-geral adjunto, ainda defende, entre vaias e aplausos, uma "refundação da identidade comunista". Era tarde.
Governante socialista
O antigo elemento da Secção de Informação e Propaganda, o ex-elemento da Comissão de Actividades Económicas do Comité Central foi desenhando um trajecto ideológico que converge com os de Vital Moreira e Zita Seabra. Anos depois, quando o seu grupo segue o mesmo caminho desses pioneiros da contestação, já há uma profunda ruptura política e até ideológica.
Talvez por isso a aproximação ao PS parecesse tão rápida - o grupo tinha a convicção de que era possível empurrar, por dentro, o PS para a esquerda - e, comentariam os cínicos, acabariam eles por ser arrastados para a direita. A Plataforma de Esquerda, que reuniu essa vaga de dissidentes, cindiu-se, depois, entre esse grupo e o que originou a Política XXI (de Miguel Portas), que acabaria por ser um dos partidos fundadores do BE.
Logo a 1 de Junho de 1992, quando, em vez da porta comunista da Soeiro Pereira Gomes, Pina Moura subiu as escadas socialistas do Largo do Rato, estabelece uma cumplicidade com Guterres, sobre o qual dirá que o facto de o ter conhecido foi "das coisas muito boas" que lhe sucederam na vida. Pina Moura será, sucessivamente, secretário de Estado adjunto do primeiro-ministro, ministro das Finanças e superministro da Economia e das Finanças. É como governante que começa a sua proximação ao mundo empresarial.
Entretanto, salta para o jargão político o cognome "cardeal". Jorge Coelho leu um artigo no Avante! em que surge aquele título eclesiático numa comparação entre Guterres e Pina Moura com Luís XIII e Richelieu - e, desde então, o próprio chefe do governo adoptaria a alcunha com que se referia ao seu ministro. Agora, quando vai ser administrador de uma cadeia de televisão que começou por ser atribuída à Igreja Católica, é uma tentação recuperar a metáfora de "o cardeal".