Espírito do corpo
Poucas coisas tão claras nisso que se chama vocação como o arco de um corpo, o desenho limpo dos gestos, músculo a músculo, tendão a tendão, da dança. Tiago Amaral, Ricardo Macedo e Francisco Sebastião, 15 anos e 16 anos, premiados num concurso em Berlim, são disso prova e testemunho. E de como em Portugal se fazem bons bailarinos.
Ele chega e depois de 5 horas de dança diárias ainda anda em casa aos pulos". José Coelho é o pai do Tiago Gomes, 15 anos, aluno há ano e meio da Escola de Dança do Conservatório e medalha de bronze em dança contemporânea no Tanzolymp, o Concurso Internacional de Dança de Berlim, na categoria de 13 a 15 anos (em que os outros dois premiados, com ouro e prata, foram os seus colegas Ricardo e Francisco). "Ele chegou tarde à dança clássica, os outros miúdos começam aos oito, nove, e ele só se iniciou aos 12. Está no segundo ano disto. Mas se calhar o amor, a paixão pela dança compensam."
Uma paixão que o põe à procura das palavras. "Como é que eu hei-de dizer? Divirto-me a fazer aquilo, desde que esteja a dançar estou bem. É a sensação de estarmos onde devemos estar. Às vezes penso que pode haver uma coisa que me impeça de dançar, mas nem gosto de pensar nisso, é o que eu quero, é mesmo isto." Consciente do seu atraso em relação aos colegas, confessa que os primeiros tempos foram muito difíceis. "Sabia que não estava ao mesmo nível, mas os professores puxaram por mim ainda mais por isso. A escola é óptima, mas quando cheguei a Berlim foi um choque, porque as pessoas lá fora são muito boas, e percebi que se conseguir uma bolsa para uma escola estrangeira tenho a possibilidade de evoluir mais." O seu ponto mais fraco? Não hesita: "Não sou muito bom a girar. Mas é daquelas coisas que com trabalho vou conseguir. O ponto forte? Não sei... Acho que como sou novo nisto faço mais as coisas pelo que sinto, e não pelo que me dizem. Os professores dizem que ponho muita expressão no que faço, que mostro que gosto de dançar. Mesmo quando não estou a fazer as coisas bem."
Natural de Vizela, Tiago frequentava aulas de dança jazz numa escola privada do Porto quando uma das professoras lhe disse que devia tentar clássica. Da primeira vez não gostou, não sabe dizer porquê, e desistiu. "Mas mais tarde fui fazer outra vez e adorei." A dureza da disciplina só a percebeu mais tarde, sobretudo com um professor russo que chegou a fazê-lo chorar: "Ele agarrava em nós e encostava-nos à parede para fazer a espargata." Aos treze anos, um professor francês sugeriu-lhe que tentasse entrar na Escola de Dança do Conservatório. "Achava que não tinha hipóteses e os meus pais também, mas viemos a Lisboa fazer a audição de clássico. E passei." Passou até na audição de dança contemporânea, que nunca tinha feito. "Quando disse aos meus pais gerou-se um grande problema, porque realmente eles achavam que não ia conseguir." José Coelho assente: "Eu até tinha perguntado ao professor que o incentivou se valia a pena o desgosto de ele tentar e falhar. E de repente, em 15 dias, tive de alterar a minha vida. Ele disse-me "Oh pai, percebo se não puder ser, mas é isto que eu quero.'" E, aos 47 anos, José Coelho largou o emprego no Norte e mudou-se para Lisboa para acompanhar o filho, enquanto a mulher, bancária, continua em Vizela. A outra filha, a estudar Veterinária, está também em Lisboa. "Pus-me à procura e arranjei um emprego, na área dos seguros. Fazemos 800 quilómetros todos os fins de semana e temos de sustentar duas casas. Tem muitos custos. Mas acho que há muitos pais assim, que só não fazem pelos filhos o que não podem fazer. Ele não podia vir para cá sozinho, para uma selva destas, nós de uma terra pequenina, sem conhecer ninguém e sem ter nenhum apoio."
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Houve outros obstáculos para vencer pelo sonho de Tiago, além dos geográficos e económicos. "Nos primeiros tempos que o miúdo se dedicou ao clássico mesmo dentro da família havia resistências - o avô materno desaprovava um bocado. Se em Lisboa, numa cidade grande, há desses preconceitos, imagine uma cidadezinha de seis mil habitantes como Vizela. Os miúdos chamavam-lhe larilas e eu disse-lhe: 'Tu és muito mais, muito maior que isso. Segue o teu sonho, se é esse.'" Tiago encolhe os ombros, a voz risonha à menção. "O meu avô disse: 'Isso é para raparigas, não para rapazes' - mas nunca dei muita importância à opinião dos outros. E apesar de achar chato esse tipo de ideias, não acho que haja vergonha nenhuma em um rapaz dançar. Tenho esperança que com o tempo as pessoas percebam que esses preconceitos não fazem nenhum sentido." Tiago espera mais: "Que estes prémios em Berlim façam as pessoas perceber que esta escola é boa, que somos bons e que é preciso investir. Estavam lá muitas escolas muito boas e trouxemos muitas medalhas."
Francisco Sebastião, também de 15 anos, que conseguiu uma medalha de ouro na categoria de clássica e uma de prata na de contemporânea, sendo assim o aluno da ESD com mais distinções no Tanzolymp, mostra que os prémios não lhe subiram à cabeça. "É um meio muito competitivo. Na nossa escola podemos ser os melhores mas quando vamos para estes concursos percebemos que não somos. Ganhei um primeiro prémio no Algarve na minha categoria mas a primeira vez que fui lá fora, a Pequim, não ganhei nada. Abriu-me muito os olhos, percebi que eles são muito mais duros e trabalham muito, que há tanta gente no mundo e que o mundo está cheio de estudantes de dança." A realização, ao invés de o deitar abaixo, motivou-o, assegura. Mesmo assim, admite que em Berlim "não estava à espera de ganhar nada porque os outros eram muito bons. Fiquei feliz, não estava mesmo à espera." Do que gostou mais foi da bolsa que acompanhou as medalhas: duas semanas numa escola de Estugarda, em Julho.
Iniciado nos cursos livres da ESD, aos oito/nove anos, filho de uma bibliotecária e de um professor de teatro, Francisco lembra-se de ter querido ser de miúdo "muitas coisas ligadas às artes, circo, etc". A dança esteve sempre tão presente na sua vida - "Sempre gostei de dançar" - que não sabe dizer quando lhe ficou claro que era o seu destino. Pelo menos, crês, até aos 40. "Ou um bocadinho mais, talvez, mas depois temos de arranjar outra coisa para fazer."
Falta muito para isso, não está sequer na linha do horizonte e, como o pai de Tiago comenta, "sabe-se lá o que é que hoje em dia resulta, em termos de opção profissional; sei lá se à minha filha, que está em Veterinária, as coisas vão correr melhor". Sabe-se lá, de facto - ainda que Sérgio Macedo, pai de Ricardo, 16 anos, acrescente óbices. "Nestas coisas só há um primeiro bailarino, os outros estão a fazer figuração. E em termos de saídas profissionais é complicado; há rapazes que saem da escola e vão para o La Féria." O ideal, adianta, seria ter um plano B preparado (a escola tem obviamente uma parte académica, mas só vai até ao 12º ano): "Mas é complicado, porque ele não vai ter tempo. Mesmo agora, entra às oito e meia e sai às oito da noite." A necessidade de evoluir e estar entre os melhores implica pois não só uma enorme dedicação por parte dos candidatos como um fortíssimo apoio da família, em todos os aspectos. "A semana que o Ricardo esteve em Berlim foi mil euros, entre inscrição no festival, viagens e estada. Tudo do nosso bolso, a escola não entra." Segue-se o Festival Eurovisão da Dança, onde Ricardo participa na categoria de contemporânea, com a mesma variação que lhe valeu a medalha de ouro em Berlim.
Antes, aos 11 anos, Ricardo foi campeão nacional de ginástica acrobática, em pares. Uma lesão e a disparidade entre os tipos de desenvolvimento corporal específicos das duas disciplinas fizeram-no desistir a favor da dança, apesar de ao princípio lhe ter torcido o nariz. "Achava que era para raparigas. E ao princípio chateava-me muito o preconceito, mas agora não ligo."
Habituado a treinar acrobática três horas por dia, adaptou-se bem à exigência da dança. Mas de vez em quando gostaria de poder fazer uma vida mais livre, como a dos amigos que andam em escolas "normais". "Mesmo nas férias temos ensaios. Por exemplo nas do Natal andámos sempre a preparar-nos para o concurso. Não tinha ideia de que isto ia ser tão difícil, agora é que estamos a perceber como é." Ainda assim, sai à noite de vez em quando - e tem, face às colegas raparigas, a vantagem de poder comer mais ou menos tudo o que lhe apetece. "Elas tem de ter um especial cuidado, para serem leves... Ainda agora comi um Mac com batatas fritas", confessa, a rir. Dezasseis anos são dezasseis anos.