A leitora que junta escritores
É um dos rostos de uma história de expressão ibérica, escrita a muitas mãos, junto ao mar. 'Madame de Bovary' faz parte dos livros da vida desta leitora que escreve para crianças
Todos os anos, no declínio de Fevereiro, uma multidão de escritores e outra gente do mundo da escrita aporta na Póvoa de Varzim. Manuela Ribeiro, a leitora que escreve livros para crianças quando lhe apetece, integra desde a primeira linha esse vasto conjunto de personagens de história inacabada que une, rente ao mar, mulheres e homens das palavras. A ventura fez agora doze anos, e parece interminável
A escritora (ou será a leitora?) diz ter o mar dentro de si. O mar que em criança, fora da época da turba estival, contemplava, "sozinha, sentada na areia". Entre os dois - a menina e o mar imenso - havia de nascer uma secreta cumplicidade. Manuela Ribeiro desvenda-a agora nos seus livros, destinados ao público jovem.
Na obra mais recente, Rosa e os Feitiços do Mar (ed. Trinta Por uma Linha), o universo marinho irrompe no título e guarda a chave para o desfecho quase feliz da história. Privada da audição aos seis anos, através do extraordinário mecanismo da escrita, Rosa aprende a "linguagem fascinante do silêncio". Um peixe, a pescada Matsya , ajuda-a na redescoberta dos dias felizes - sempre que alguém precisa, deixa-se pescar "em noite de lua cheia".
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Nos livros anteriores (O Cego do Maio e O Catitinha), o mar da Póvoa, de igual modo marca presença na narrativa. "Não vivo sem o mar, embora não precise de estar sempre à frente dele todos os dias", confessa. Do mar também terá surgido um acuriosa ideia de viagem que fascina Manuela. "Sempre gostei de viajar", mesmo quando as viagens são interiores. "Gosto de sair e nunca regressar ao local de partida, por mim a vida teria a forma de uma viagem permanente".
De todos as viagens, reais ou interiores, há uma encetada por duas mulheres da família. E muito havia de influenciar a leitora que passou a infância "numa casa onde não havia livros". O avô, como outros poveiros, emigra para o Brasil. Um dia, a avó tocada pela saudade pega na filha pequena (hoje mãe de Manuela) e entra num barco que as levarias às longínquas terras de Vera Cruz. "Quando ouvia esta história fiquei verdadeiramente encantada pela coragem da minha avó. Senti o fascínio da aventura". O prazer da aventura não o herda da mãe - a avó voltaria ao Brasil, "a minha mãe não queria ir, viajava por obrigação".
Do Brasil chegaria mais tarde um dos livros que a leitora "desorganizada" ainda guarda muito perto do coração. O Meu Pé de Laranja Lima, de José Mauro de Vasconcelos, continua a ser revisitado pela escritora de histórias para crianças, com o mar ao fundo. "É um livro que me marcou: ainda hoje o ofereço aos meus sobrinhos e aos filhos dos meus amigos".
Quando frequentava a Faculdade de Letras do Porto, onde cursou Línguas e Literaturas Modernas, outro livro se cruza no destino da leitora e de viajante com as palavras. Madame Bovary. No romance de Gustave Flaubert, a leitora queda cativa, empolgada, com a imprevista "independência" da personagem principal: uma mulher de oitocentos definia o seu próprio percurso. "Nos romances de Eça de Queirós que personagem feminina tinha a possibilidade de desenhar a sua história?"
Depois de Madame Bovary , outras leituras se juntam ao grande rio das palavras. As viagens através dos livros, como as que Manuela Ribeiro deseja, parecem infinitas. Não existe regresso, é um constante começar de novo. Na última década, por prazer e por dever de ofício, muitos outros livros povoaram-lhe o quotidiano. O prazer da leitura (na casa da infância livros não havia) deve-o à sua professora primária. "Oferecia aos alunos, que faziam os trabalhos bem feitos, histórias tradicionais - eram umas edições pequeninas, muito bonitas".
O gesto da mestra, que incentivava os alunos a ler, fez-se exemplo, seguido pelo Correntes d' Escritas, encontro de escritores de expressão ibérica, que Manuela Ribeiro ajuda a organizar. Alguns dos escritores, desde a primeira edição, visitam as escolas da Póvoa de Varzim e partilham as palavras (as que fazem sonhar, as que ajudam a transformar o mundo) com os mais novos, leitores do devir.
Do evento literário, um dos mais importantes em Portugal, prefere que sejam outros a usar da palavra. Está na organização, desde o início, apenas porque é funcionária da autarquia, refere. "Gosto de fazer isto, dá muito trabalho. O Correntes d'Escritas é uma produção imensa mas, no final, é grande a satisfação de se ter atingido as expectativas".
Na Póvoa de Varzim, durante os dias em que se torna a cidade da Europa com mais escritores de expressão ibérica por metro quadrado, "há profissionalismo e afectividade" por parte de quem trabalha fora do palco, de quem vela as palavras dos outros. Começou, há doze anos, com 23 escritores. Na décima edição do evento literário, organizado pela autarquia, aportavam à terra onde Eça de Queirós terá nascido 120 autores de múltiplas proveniências.
A barca das palavras volta para o ano - trará os rostos de sempre e nova gente.