Ismaelitas e Portugal
Poderia falar dos 200 mil euros que a Fundação Aga Khan doou para ajudar o Museu Nacional de Arte Antiga a comprar uma pintura de Domingos Sequeira como um exemplo da fortíssima ligação a Portugal da comunidade ismaelita (Ismaili, preferem os próprios), ou da escolha de Lisboa para a futura sede do Imamat Ismaili, instituição liderada pelo príncipe Aga Khan, descendente do profeta Maomé. Mas talvez lembrar o agrupamento de escoteiros que vi a funcionar numa das minhas visitas ao Centro Ismaili em Lisboa, onde agora foram mortas duas pessoas num ataque à facada, diga mais sobre a abertura à sociedade que caracteriza os ismaelitas, sobre a integração dos perto de dez mil membros desse ramo do Islão que vivem em Portugal, sobre uma comunidade que escolheu ser este o seu país, e que, sendo tão famosa pelo espírito empresarial, como pela filantropia, contribui para a economia com empresas como os hotéis SANA e as lojas Sacoor.
Que o presidente Marcelo Rebelo de Sousa e o primeiro-ministro António Costa condenem de imediato o que se passou - um atacante, refugiado afegão, frequentador de aulas de Português no Centro Ismaili, matou duas funcionárias e feriu várias outras pessoas - mostra a surpresa do país perante um ato que, pelo que se sabe, será de um tresloucado sem ligação a grupos terroristas, mas também a vontade de assumir o sofrimento da comunidade ismaelita, pois este não foi um ataque apenas desferido contra ela, foi um ataque simbólico a Portugal. Igualmente o cardeal patriarca de Lisboa expressou a sua solidariedade com esta comunidade pertencente a um ramo ultraminoritário do Islão xiita e que é considerada das mais progressistas do Islão, basta pensar no protagonismo das mulheres ismaelitas. Não por acaso, D. Manuel Clemente relembrou a relação próxima e permanente da Igreja Católica com a comunidade, ela própria promotora do diálogo inter-religioso, incluindo através de iniciativas como aquela que um dia, no Centro Ismaili, me deu oportunidade de entrevistar o alto-representante da ONU para a Aliança das Civilizações. Então, em resposta a uma pergunta sobre os ismaelitas, Miguel Angel Moratinos afirmou: "É um exemplo de integração que se tem de aplaudir e que pode ser utilizado para demonstrar que todos os estereótipos que nos dizem que o Islão quer ocupar e voltar a dominar o Mundo Ocidental são falsos".
Quem já viajou pelo mundo islâmico provavelmente deparou com escolas ou hospitais ligados ao Imamat Ismaili. A comunidade teve origem no Médio Oriente há mais de mil anos, mas com o decurso dos séculos passou a ser mais numerosa no subcontinente indiano (onde estão as raízes remotas dos ismaelitas portugueses, vindos em regra de Moçambique no fim da era colonial) e, mais recentemente, surgiu uma importante diáspora na Europa e na América do Norte. Mas a regra é não serem esquecidos os crentes que vivem em países pobres como o Paquistão, o Afeganistão, o Tajiquistão ou a Síria, e nesta última, após os recentes sismos que também atingiram a Turquia, logo a Fundação Aga Khan se organizou para socorrer a comunidade e não só. Pensar que, quando a futura sede do Imamat Ismaili estiver concluída, toda esta atividade global será coordenada a partir de Lisboa deve ser fonte de orgulho para os portugueses, por ser o reconhecimento do seu país como respeitador das diferenças e acolhedor das minorias étnicas e religiosas.
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Uma vez mais, este foi um ataque aos ismaelitas, mas também a Portugal, país que após a descolonização se tornou pátria de muitos muçulmanos, mas também de hindus e outros grupos, todos respeitadores da sociedade que os acolheu. E será sempre um terrível ataque simbólico a Portugal, mesmo que se conclua que foi um ato de loucura, uma tragédia isolada, porque o que aconteceu nos tira a ilusão de sermos eternamente um oásis de paz.
Diretor adjunto do Diário de Notícias