Sociedade
28 maio 2023 às 22h14

Arrábida. Quanto vale e para quem?

Dois meses após o encerramento da consulta pública sobre o aumento de superfície de exploração das pedreiras da Arrábida, a SECIL acredita ter grande chance de concretizar o plano. Em diferente debate cientistas limam 300 medidas para o futuro da Arrábida daqui a 100 anos, com paisagem muito diferente

Ana Martins Ventura

Por estes dias "o mais difícil não é ir à Arrábida", como dizia Sebastião da Gama, "difícil, difícil, é entendê-la". Passaram 45 anos desde que o poeta cantou a serra como "Mãe". Da beira Sado ao cume, o "casamento do cheiro a maresia com o perfume agreste do alecrim" mescla-se com tradições, postos de trabalho e negócios de milhões, mas o troco de quanto? O postal vivo vale 86 milhões de euros para a SECIL, cerca de 20 milhões para os produtores de vinho e queijo, mais 16 milhões na Herdade da Comenda. Para a ZERO é "conjunto impagável", onde "é difícil fazer valer a lei".

Há papéis em revisão sobre o destino de parte da Arrábida. Opiniões e lei são divergentes no "Novo Plano de Pedreira Vale de Mós A" da SECIL. A administração da fábrica confia na possibilidade de unir as pedreiras. Conhece "o parecer da CMS [Câmara Municipal de Setúbal] e algumas declarações verbais que apontam para a incompatibilidade do projeto". O que não a impede de contestar que "se o único fator de avaliação de um projeto, em sede de Avaliação de Impacto Ambiental, for de natureza jurídica, poderá ser emitida uma Declaração de Impacto Ambiental favorável, condicionada à futura compatibilização do projeto ao ordenamento jurídico".

Na outra bancada, o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas, enquanto entidade responsável pelo licenciamento de novas explorações geológicas no Parque Natural da Arrábida, refugia o caso na lei. O Plano de Ordenamento do Parque Natural da Arrábida estabelece que "é interdita a instalação de novas explorações de recursos geológicos, nomeadamente pedreiras, e a ampliação das existentes por aumento de área licenciada".

A administração da SECIL defende que segundo o Estudo de Impacte Ambiental "a fusão das pedreiras e a sua reconfiguração tem como consequência não o aumento, mas, antes, a diminuição do tempo de laboração da pedreira em cerca de 3 anos" o que reduz de 40 para 37 anos o tempo estimado de laboração da SECIL na Arrábida. O mesmo documento indica um aumento da superfície de exploração geológica em 18,5 hectares.

Escuteiro e caminhante por trilhos da Serra da Arrábida à Serra do Risco, João Albuquerque lamenta que o Parque Natural "nunca tenha alcançado a classificação de Património Mundial da UNESCO", como a rocha Brecha da Arrábida alcançou recentemente. O grande problema da candidatura está sempre nas "pedreiras que dão ao parque uma paisagem esventrada".

Com vinte anos de trabalho na Comissão de Acompanhamento da SECIL, Paulo Martins representa ZERO neste dossier e assume que "na Arrábida é difícil fazer valer a lei quando os problemas envolvem grandes empregadores". Segundo dados da administração da fábrica só no complexo do Outão trabalham 169 colaboradores dos quais 83% residem na península de Setúbal. Mas, afirma Paulo Martins que "este é um tempo diferente daquele em que a fábrica foi fundada e a aposta devia ser a desativação, não a expansão".

Alegando que dará um futuro mais verde à "Serra Mãe" a SECIL integra o plano das pedreiras num projeto agregador de várias medidas ambientais: o Clean Cement Line, avaliado em 86 milhões de euros.

Neste grande objetivo o Clean Cement Line "vai reduzir em 20% as emissões de CO2, aumentar em 20% a eficiência energética e produzir 30% das suas necessidades de energia elétrica através do aproveitamento de calor do processo".

Paulo Martins está certo de que, a causa que move a SECIL é, somente, "o facto de as reservas de calcário das pedreiras estarem a acabar, restando apenas margas, o que impede a resposta às necessidades do mercado". Se assim for "pode-se estar perante uma falta de transparência" pois, "há vinte anos, quando foi elaborado o Plano de Reestruturação e Exploração da SECIL, isso podia ter sido previsto". No futuro, "quem garante que não surgirá outra questão idêntica e será necessário mais e mais para explorar pedreiras na Arrábida?".

Estela Lúcio, setubalense e ativista na defesa da serra tem escutado, entre as gerações mais velhas de trabalhadores da SECIL que, "a fusão das pedreiras de Vale de Mós está mais que feita, basta olhar a serra a partir de cima".

Intenção repetida, unir as pedreiras é plano apresentado pela SECIL desde 2019. De posição negativa em posição negativa o Governo vai dando a entender que a proposta nunca será aceite.

A união das pedreiras já se chamou apenas Clean Cement Line, até surgir, em Dezembro de 2022, associada à designação: Ambition 2025 Crescimento Sustentável.

A empresa submeteu a consulta pública um Estudo de Impacte Ambiental desenvolvido de 2017 a 2021, com investigação de campo realizada em 2022, sobre a fusão das pedreiras Vale de Mós A e Vale de Mós B. Com a consulta pública, o plano ressurge com o nome "Novo Plano de Pedreira Vale de Mós A" e o lema "Melhor paisagem na Serra, melhor Ecossistema no final da operação".

Muitas propostas de alegada recuperação ambiental têm sido feitas sob o chapéu do Clean Cement Line, desde a plantação de vinhas nos socalcos de pedreiras desativadas, à implementação de um campo de painéis solares, até à produção de energia com ciclopentano, químico altamente inflamável. Confirma a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) deu ao projeto Licenciamento Único Ambiental e, apesar de ser considerado uma "alteração substancial", o Waste Heat Recovery teve "emissão de decisão favorável" na SECIL-Outão.

A SECIL "nunca utilizou o ciclopentano em projetos de geração de energia elétrica", como está agora a fazer. Admite que "é provável que sim, em outras ocasiões, já que o ciclopentano é amplamente utilizado em equipamentos industriais". Contrariamente ao disposto na ficha de perigosidade do químico, esclarece ainda que "este fluído foi desenvolvido especificamente para ser amigo do ambiente".

Quando ao perigo de utilização a SECIL diz ser "nenhum", porque o químico circula num circuito hermético e fechado na turbina. Em caso de acidente, a probabilidade do ciclopentano se libertar do circuito é estimada com inferior a 1/milhão. Mesmo que houvesse um acidente, "o fluido ficaria encapsulado na turbina, pelo que nunca chegaria aos ecossistemas". Ainda assim, "o ciclopentano já é usado há mais de 20 anos e não há registo de nenhum acidente com esta substância", garante a SECIL.

Segundo relatório da fábrica o ciclopentano tem "propriedades de amigo da camada do ozono", sendo até utilizado na fabricação de isolamentos térmicos para frigoríficos.

Garante ainda a administração da SECIL que "o ciclopentano não está classificado como substância perigosa para os organismos aquáticos" e "não se prevê que esta substância venha a provocar danos em organismos aquáticos". Mas, a norma europeia H412, indica que o clicopentano tem "toxicidade crónica para o ambiente aquático". E a área onde o ciclopentano circula inclui zonas envolventes sensíveis como o Hospital do Outão e Parque de Campismo do Outão, na orla costeira.

Em caso de derrame de ciclopentano a SECIL garante utilizar areia "com capacidade de absorção até 500 kg/litros". Mas a areia precisa ser utilizada rapidamente, porque o ciclopentano evapora em 2,18h e em estado gasoso gera bolsas altamente inflamáveis. No mesmo relatório a SECIL assegura que durante um incêndio de ciclopentano são libertados gases e vapores irritantes e não deve ser utilizada água, apenas produto químico seco, porque a infiltração no solo seria prejudicial para o meio ambiente.

Na união de pedreiras ou a utilização de novas fontes de energia, "a Agência de Energia e Ambiente da Arrábida [ENA] tampouco tem sido consultada para a emissão de pareceres", afirma Carla Guerreiro, presidente da agência criada para abordar questões energéticas e ambientais relacionadas com a Arrábida que Setúbal Palmela e Sesimbra, como o das alterações climáticas com previsões a cem anos.

A proteção da Arrábida em tempo de alterações climáticas está identificada numa "lista de 300 medidas elaboradas com o apoio da ENA; autarquias de Setúbal, Palmela e Sesimbra; uma equipa do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território; e a participação da Universidade Nova de Lisboa".

Os incêndios, a seca, perda de biodiversidade e o risco de cheias nas zonas costeiras, são "os maiores riscos que a Arrábida enfrenta nos próximos cem anos". O cenário é traçado para orientar gerações que ainda não nasceram, deixando "grande espaço para a imprevisibilidade dos avanços tecnológicos, mudanças na fauna e flora e mudanças sociais", salienta Carla Guerreiro.

Está prevista "uma cheia centenária, precisamente a cada 92 anos, que afectará Setúbal e Sesimbra". Inversamente, o aumento de temperatura trará seca extrema ao concelho de Palmela. Aliás, com base neste estudo "o aumento da temperatura será elevado e, na maior do ano, sentir-se-ão 35 graus celsius". A partir do momento em que a temperatura sofrer alterações drásticas, seja pela seca extrema, ou pela subida do nível do mar, "muito mudará desde o Parque Marinho Luiz Saldanha ao Estuário do Sado".

O aspeto que o Parque Natural da Arrábida terá ainda não ficou incluído neste estudo, mas, seja qual for o cenário "as mudanças na fauna e flora da Arrábida serão grandes".

O futuro da "Serra Mãe" pode estar a ser alvo de desenho pormenorizado, mas Carla Guerreiro assume que "para garanti a sustentabilidade entre economia e ambiente a ENA ainda tem muito trabalho a fazer".

dnot@dn.pt