Sete andares
A deslegitimação do outro, daquele que nos desafia, surpreende, nunca é resultado de um decreto. Se o fosse, seria descoberta, intolerável, chocando com as construções filosóficas que, com algum esforço e brio, fomos construindo. Não se desqualifica, no sentido de desumanizar, de inferiorizar, com essa súbita exuberância. Não me impressiono, por isso, com a ausência de ordens, invetivas; nem sequer as procuro, porque não é suposto que as encontremos se queremos detetar esse tortuoso processo de desqualificação desse outro que é igual a nós mas que talvez não seja porque vem de outro lugar, de outra fé, de outra geometria de alma.
Só em casos doentios os genocídios e as discriminações se apresentam como tal. A desqualificação em que se fundam é sempre o resultado, não o propósito: não queremos expulsar a diferença nem os diferentes; queremos outra coisa qualquer, ao gosto das convenções, como seja garantir a segurança, os valores, a legítima defesa, a justiça.
Já aqui tenho escrito sobre a polarização e a moralização do debate político, contexto que favorece a desqualificação e a deslegitimação do outro. E talvez me repita no tema, mas isso é a medida da preocupação.
Há dias regressei aos Sete Andares, de Dino Buzatti, e encontrei nele uma adequadíssima alegoria para essa desumanização, para os artifícios que criamos para a não perceber, e ocorreu-me convocar o conto para esta repetição.
Nele, Giuseppe Corte, que sofre de uma ligeira manifestação de uma doença, interna-se num sanatório de sete andares, onde a distribuição dos pacientes é feita por níveis de gravidade: os quase-sãos no sétimo andar, os que precisavam de alguma atenção embora não em estado grave no sexto, e assim até ao primeiro andar, destinado a "quelli per cui era inutile sperare".
Corte entra para o sétimo andar, o piso dos que olham com desdém para os doentes graves. O que o separava da sanidade era uma fina camada, um quase. Em pouco tempo estaria de volta para os sãos, os normais - o seu devido lugar, não tendo nunca de se misturar com os inferiores.
Uma sucessão de infortúnios, descritos como aleatórios, começou a levar Corte em direção ao primeiro piso. De cada vez que lhe propunham descer um piso, nunca lhe referiam a doença como pretexto, era sempre outra coisa plausível: limpezas, erros, algo provisório.
E Corte foi descendo, de livre vontade, piso a piso, baixando continuamente de condição, fazendo por acreditar que ainda era dos quase-sãos, sentindo-se superior aos seus companheiros de piso. Ninguém precisou de o condenar ao primeiro piso, algo que ele recusaria. Bastou que ele tivesse aceitado o pressuposto dos andares, bastou um processo lento e plausível de desumanização, uma narrativa eficaz, e o próprio se deixou levar, piso a piso.
Perante a dignidade máxima da pessoa, nenhuma comparticipação por andares é aceitável; mas quantas vezes estamos dispostos a aceitar, sempre pelos melhores motivos, edifícios de sete andares a organizar-nos?
Advogado