O busílis da Lei de Bases da Saúde
Quanto mais os cidadãos precisarem de ser especialistas para discernir o que se passa na política, mais afastados estarão dela. Sobretudo vivendo o mundo numa época de simplismos perigosos.
ALei de Bases da Saúde parece uma má novela. Mau guião, tema fraco, atores péssimos e diálogos canastrões. Provavelmente, serve os mesmos propósitos das más novelas: distrair. Mas, no entretanto, acaba por prejudicar o sistema. As novelas más degradam sempre um pouco mais as televisões. As discussões, os avanços e recuos na Lei de Bases da Saúde ajudam a desacreditar mais um bocado a política.
Numa época em que os simplismos estão na moda, Portugal resolveu deitar-se a discutir uma coisa complexa chamada Lei de Bases da Saúde. Fê-lo com o mesmo afinco com que já discutiu a diferença entre arguidos e acusados, entre défice e dívida, provas de aferição e vitamina D. Não é nada de extraordinário - a vida pública portuguesa segue o googlismo crónico da atualidade, que torna qualquer ignaro num sábio, qualquer burro num génio.
Mas para saber as respostas é essencial fazer bem as perguntas. Perguntas profundas que nos levem a respostas operativas. E o que é e para que serve a Lei de Bases da Saúde? De que estamos a falar quando estamos a falar? Que objetivos preenche esta lei? Que muda na vida dos cidadãos comuns? Que muda nos hospitais, nos centros de saúde?
Não há maneira de dar respostas que não sejam vagas, ou teóricas, a estas perguntas. Porque uma lei de bases é algo técnico, tem que ver com uma espécie de ideologia de política da saúde - em que se cruza tudo, desde o valor da medicina preventiva, os serviços da Segurança Social, a responsabilidade dos diversos atores, do SNS às autarquias, e ao peso dos privados.
Esperem... o peso dos privados? Exato. Algo muito concreto, que coloca, então, o busílis nesta questão. É por aqui que entra a polémica, o tudo ou nada, o arrancar cabelos na discussão e rasgar documentos na negociação. E, também, o que polariza os partidos e põe o governo e o PS numa posição delicada, entre ter de responder aos seus parceiros de coligação - que agitam as bandeiras do público com vigor - e o eleitorado do centro de que precisa para as próximas eleições e para a tal maioria absolutamente inequívoca. Nada se tornou mais político do que a saúde em Portugal.
É por isso que tudo é tratado com pinças, ao nível da palavra. Tudo começa com uma: "concorrência". Que vem na lei de 1990, onde se diz que "é apoiado o desenvolvimento do setor privado da saúde e, em particular, as iniciativas das instituições particulares de solidariedade social, em concorrência com o setor público". Depois segue para "supletiva", a palavra que começou por afastar o PS e o PSD nestas negociações.
O governo queria que a gestão dos estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde fosse pública, mas "podendo ser supletiva e temporariamente assegurada por contrato com entidades privadas ou do setor social". E nada mais. No projeto do PSD, a ideia era tirar essa palavra, e permitir que pudesse existir privado, ou seja, mesmo que em sobreposição.
Em tudo isto, era bom que os partidos fossem mais claros, mais diretos, e os cidadãos tivessem respostas mais rápidas. Demagogia leva a lugares perigosos. Até porque quanto mais os cidadãos precisarem de ser especialistas para discernir o que se passa na política, mais afastados estarão dela. Sobretudo vivendo o mundo numa época em que há para dar e vender respostas simples para problemas complexos.
Como disse, a candidata às primárias democratas, a senadora da Califórnia Kamala Harris, as pessoas "não querem assistir a uma luta de comida. Querem saber como é que nós vamos pôr comida na mesa delas".