29 JUL 2020
29 julho 2020 às 00h22

Manhãs na rádio: a longa luta entre estrelas e vida privada

Mais do que notícias, trânsito ou temperatura, os programas das manhãs estão cada vez mais recheados de vida privada, personalidades de luxo e o obrigatório humor.

A mais recente travessura do filho, o episódio insólito na rua, a multa de estacionamento, a aventura no supermercado ou o habitual passeio diário do animal de estimação são histórias que surgem cada vez mais lado a lado com as notícias, a meteorologia, os regulares reports do trânsito e, mesmo obrigatório, as rubricas de humor.

As manhãs das rádios generalistas, até às dez ou onze horas, têm vindo a ser palco maior de conversas de foro privado, de disputa concorrencial acesa com contratações de luxo, ou não fosse aquele o horário nobre do éter com mais de três milhões de pessoas sintonizadas diariamente. Emissões que chegam com cada vez mais vida pessoal lá dentro. E fora dela também, afinal estes programas prosseguem para lá do sinal horário, agora e mais do que nunca, pelas próprias mãos dos radialistas matutinos e através das redes sociais próprias.

"Não contamos nada de íntimo, partilhamos o nosso quotidiano, o que nos aproxima à vida das pessoas. Se fosse só a apresentar músicas, não dava para chegar às pessoas, temos de ter essa componente pessoal", explica Pedro Ribeiro.

Para o radialista, presença na líder Manhãs da Comercial, e diretor de programação da mesma frequência, esta proximidade já não vem de agora, mas reconhece que a técnica "se tem aperfeiçoado, está mais espontânea e verdadeira do que há 15 anos". Garante, contudo, a separação e que o Pedro-diretor jamais pediria ao Pedro-animador para falar ou colocar o que quer que fosse nas plataformas pessoais: "O que cada um faz individualmente nas redes tem de ser tão espontâneo e verdadeiro tal como o que faz no ar. Forçar é mentir. Nunca digo ao Vasco [Palmeirim] ou Nuno [Markl] partilha isto ou aquilo. Não pode ser, eles têm de ser o que já são."

Do outro lado desta dura e renhida batalha de audiências está a RFM, com Café da Manhã conduzido por Pedro Fernandes, Mariana Alvim, Salvador Martinha, Luís Franco Bastos e Duarte Pita Negrão. Na corrida está também a M80, com Vanda Miranda, Paulo Fernandes e Susana Romana, juntos a disputarem horário com As Três da Manha, com Carla Rocha, Ana Galvão e Joana Marques na Renascença.

O responsável desta última emissão, Pedro Leal, lembra que a rádio nunca se fez de outra maneira. "Hoje as pessoas aceitam este tipo de comunicação mais pessoal, escrevem-se coisas nas redes sociais que ninguém sonhou escrever numa carta", compara o diretor-geral de Produção do Grupo Renascença.

O que está a fomentar esta disputa acesa de contratações e de incremento de episódios de vida privada dos animadores é, para este responsável, "uma competição muito grande pelos lugares cimeiros das audiências, que estão nas mãos de apenas dois [Comercial e RFM]". "Se calhar, antigamente era mais fácil ter uma quota parte significativa da publicidade. Estamos todos a lutar pela sobrevivência". E como não é de agora, Leal recorda António Sala e Olga Cardoso: "Ouvia-se falar do Vítor, o marido da Olga. Ela e o Sala contavam anedotas um ao outro, criava-se uma narrativa e formava-se a legião de uns e outros".

João David Nunes concorda: "A rádio tem que ver com a vida das pessoas, se não não sobrevive. Sempre foi assim. António Sala e Olga Cardoso a certa altura falavam de coisas mais pessoais".

Contudo, o antigo diretor e presidente da Comercial recomenda atualmente "mais cuidado" com a omnipresença dos temas de vida privada. "Eu desligo, não oiço rádio hoje em dia e não vejo televisão. Noticiários é uma banalidade absoluta e uma ameaça à inteligência das pessoas. Não se aprende nada, e mais grave: desaprende".

E se a vida privada é assunto, David Nunes explica a origem, mas não a intensidade. Lembra que esses programas matutinos chegaram ao panorama nacional no final dos anos 50 do século passado - "porque antes a rádio abria ao meio-dia" - e não foi preciso muito tempo para que a conversa mais livre tomasse de assalto o horário. "Na Emissora Nacional, o Artur Agostinho e o Pedro Moutinho começaram a ter conversas naturalmente engraçadas e inventaram uma sigla simples para definir o que era o programa da manhã, que se tornou bastante conhecida: era a "Bdmbd", "Bom dia, muito Bom Dia. Eram coisas muito ingénuas", ri-se o antigo radialista e especialista em Direitos de Autor.

Tudo mudou. Considera João David Nunes que, "com a diferença dos tempos, hoje em dia tudo é devassado, tudo é público, as redes sociais contribuem para isso, fazem com que seja muito tentador publicar fotografias e ver coisas tão interessantes como, por exemplo, um almoço. Depois isso transfere-se para os media", analisa.

"As estações que tem mais audiência são as que têm menos notícias", repara aquele antigo responsável, que admite que quando esteve na Radio Comercial jogou com esse predomínio da sociedade do espetáculo ao conceber o formato "Cinco estrelas". Criou, então, um monstro? "Não", reage o antigo responsável da estação. "Fui pelo entretenimento nesse período horário, que é quando se pode ganhar dia, mas não descurámos o resto, procurei sempre a diversidade. Antigamente, havia programas dentro da radio, hoje há playlists", afirma.

Presença habitual na televisão e há quatro anos no Café da Manhã da RFM, Pedro Fernandes lembra que "cada vez mais se sabe o que acontece aos outros, em primeira mão, nas redes sociais, mas só se vê um vislumbre, uma fotografia, uma story". Comparando, "na rádio, acabamos por partilhar este momento e discuti-lo entre amigos", lembrando que os limites são estabelecidos individualmente por quem integra os formatos. "Mas quem nos ouve sente-se parte dessa discussão do grupo, da conversa de amigos e de um episódio que é pessoal. Talvez a rádio de manhã acabe por criar uma relação de maior proximidade com o público", analisa Pedro Fernandes.

E não vai ser diferente no futuro. "A rádio é um reality show continuado em que alguém se identifica, se sente espelhado. Vai sempre acontecer porque é um formato que não se esgota", diz o apresentador e radialista. Pedro Fernandes vinca que "ela sempre foi feita de assuntos relacionáveis, quanto mais relatasse - palavra de ordem em radio - um filho com piolhos ou uma multa que se apanhou, mais alguém se identifica porque todos esses assuntos acontecem nas vidas de todos".

Para António Mendes, diretor da RFM, a "vida pessoal faz parte do jogo da coisa". "São programas que têm de ter conteúdos e com os quais os ouvintes se relacionem. Obviamente, não são temas privados de foro mais íntimo, são universais e que recorrem à utilização da múltiplas plataformas". O responsável considera que a personalização "torna a rádio mais próxima, o que pode ser uma das razões para o sucesso". Um êxito "cujo alcance", sublinha Mendes, "continua a ser impressionante elevado, fruto de uma capacidade de adaptação a este novo panorama digital, competição entre meios e nas apostas que são feitas".

Pedro Ribeiro olha também para essa maior diluição das diferenças. "Cada vez mais se vão misturar os terrenos. A rádio vai ter mais imagem e mais redes sociais, mas sempre com conteúdos específicos para cada uma delas", graceja o responsável da Comercial. "Passa por chegar a mais gente, usando as ferramentas de comunicação e que são diferentes", conclui.

Rádios encurtam audiência em tempo de pandemia

A quarentena e o isolamento social obrigaram todos a ficar em casa. Sem viagens de carro, sem trânsito e sem filas, as rádios perderam auditório, sobretudo no seu período mais nobre, entre as sete e onze da manhã.

Mas o que caiu no carro, subiu em casa e nas redes. É isso mesmo que vinca Pedro Ribeiro comentando os resultados de audiências de maio e junho e que demonstram quebras assinaláveis para todas as emissoras. "A rádio, por excelência, ouve-se no carro. Nos meses de pandemia, as pessoas não sairam de casa, logo caiu, mas disparou o nível de consumo online, nas redes e na inclusivamente na TV", refere o diretor de programação da Comercial.

E se o Bareme rádio demonstra uma quebra para todas as estações, ele não altera o pódio: Comercial liderou a Audiência Acumulada de Véspera (AAV) com 14,9%, seguindo-se a RFM (13,8%), M80 (6,6%) e Renascença (5,6% e a única a manter os resultados entre abril e junho.

A maior quebra foi da Comercial, mas Pedro Ribeiro lembra que "quem tem o bolo maior, arrisca queda maior, mas a liderança continua do nosso lado seja em audiência, seja reach semanal, apesar de confinamento", remata.