Sociedade
28 novembro 2021 às 07h00

"Desde que o supermercado passou a vender hortaliça, fruta e peixe, isto morreu"

A falta de clientes foi a justificação para meter as grandes superfícies nos mercados. Um erro, segundo geógrafo que estudou esta transformação, defendendo que os promotores públicos têm culpa no declínio. Comerciantes e e clientes dão-lhe razão. Alvalade é a exceção.

Céu Neves

Ana Maria e Florbela conversam, sentadas junto às bancas no Mercado Forno do Tijolo, em Arroios. Têm pouco que fazer. Com a entrada do supermercado foram empurradas para o canto da praça que já foi grande. "Desde que o supermercado passou a vender hortaliça, fruta, peixe, isto morreu", lamenta Ana Maria. Desabafa: " Vendia no Chão de Loureiro, que fechou, daqui só para casa, fim da história". Florbela corrobora: "Algumas pessoas nem sabem que estamos aqui. Se viessem e fizessem contas, viam que aqui é melhor e mais barato".
Ana Maria Rosa, 56 anos, peixeira, e Florbela Filipe, 61, que vende fruta e legumes, ocupam duas das quatro bancas que restam do Mercado do Forno do Tijolo. Seis estão vazias. É uma das praças que a Câmara Municipal de Lisboa abriu à iniciativa privada (ver quadro). Ana Maria veio do Mercado Chão de Loureiro, substituído pelo mesmo super, o Pingo Doce, onde a mãe vendeu 45 anos. "Se não fossem os restaurantes, não valia a pena. Temos os nossos clientes, levamos a casa, mas à quarta e à quinta é uma tristeza", lamenta Ana.

Lembra-se dos bons tempos de venda da mãe, também de Clara Fonseca, 71 anos, que esteve com elas no Chão de Loureiro. "Tenho 52 anos disto, 20 no Forno do Tijolo. Acabaram com os mercados de rua e estão a acabar com estes, qualquer dia só existem os supermercados. No início, o Lidl não vendia legumes e fruta e, quando nos mandaram para este canto, passaram a vender de tudo, o que contribuiu para piorar a nossa situação. E a nova geração não quer mercados", protesta. Clara ocupa a terceira banca, a quarta e última é de venda de vinhos. "Uns morreram, outros foram embora por não terem fregueses e não voltam a ser ocupados", explica.

As clientes que entram são, na maioria, da idade dos comerciantes, como Noémia Marques, 73 anos, que faz ali as compras desde que era profissional de seguros. Há oito anos mudou-se para a zona. "Gosto de ver os produtos e comprar no mercado é completamente diferente. Falamos com as pessoas, perguntamos, no super não se fala. Isto mudou e para pior", assegura.

Mercado Empresa Tipologia Ano
Alvalade Norte LIDL supermercado 2001
Forno do Tijolo LIDL supermercado 2006
Alcântara LIDL supermercado 2010
Arco do Cego APMZ restauração 2012
Campo de Ourique MCO restauração 2013
Ribeira Time Out restauração 2014
Santos DIA supermercado 2017

Fonte Pedro Guimarães, "Processo de reabilitação dos mercados municipais em Lisboa à luz da gentrificação comercial" e CML

O Mercado do Forno de Tijolo é um exemplo negativo da intervenção dos investidores privados nos mercados municipais, segundo Pedro Guimarães, geógrafo que estudou o impacto da medida. "A ideia de existir uma coabitação positiva entre cadeias de supermercados e os comerciantes tradicionais, estabelecendo acordos para os supermercados não venderem frescos, caiu por terra quando a autarquia revogou esta proibição na generalidade. Esta concorrência leva à perda de viabilidade económica dos antigos comerciantes"

Tem estudado o tema e as conclusões foram apresentadas no artigo "Reabilitação dos mercados municipais à luz da gentrificação comercial". Defende que a chamada reabilitação afundou ainda mais a venda tradicional. "Temos que perceber que a evolução deste comércio insere-se na transformação das cidades, mas algumas mudanças ocorrem com impactos negativos para a população e para os comerciantes".
Analisa essa transformação com base no conceito de gentrificação, que surgiu no Reino Unido nos anos 60/70. Na área comercial, significa a substituição de um tipo de comércio por outro e que pode ter a ver com a entrada de uma nova população, mais abastada, de novos espaços comerciais, sendo estes substituídos por outras valências, por exemplo, de lazer ou turísticas. Os antigos frequentadores, em especial os mais vulneráveis e com menor mobilidade, deparam-se sem locais onde fazer as compras e os comerciantes vão sendo "expulsos" (até pelo custo das rendas), deslocados.

Em Lisboa, os mercados surgiram no século XIX, em bairros que se iam formando, prestando um serviço de proximidade. Eram sete em 1970, agora são 28, um deles não coberto. A cidade mudou, os moradores também, surgiram os grandes centros de consumo, alguns dos quais na envolvente dessas praças. Entraram em declínio e a autarquia decidiu abrir esses espaços à iniciativa privada. Apresenta-os ao DN "como mercados reabilitados no âmbito das contrapartidas estabelecidas nos concursos públicos para concessão de exploração". Têm, agora, outro espaço no mercado de Alvalade para concessionar. Estas rendas são pagas à autarquia, a gestão e taxas dos mercados é para as juntas de freguesia.
Pedro Guimarães atribui a queda destes espaços à falta de interesse público. "O declínio é claramente forçado pelos promotores públicos. Os mercados foram dotados ao abandono e, depois, entrou-se no discurso de "temos que fazer alguma coisa". O Mercado de Alvalade foi o primeiro que a câmara de Lisboa abriu aos supers, ao Lidl, em 2001, mantendo parte das suas características. A última concessão foi ao Minipreço, em 2017, que "engoliu" o Mercado do Bairro Santos.

O Mercado do Bairro de Santos apenas mantém o nome do que era no passado. Os vendedores ficaram em pequenas lojas à entrada do super. "Já não o é mercado nenhum. Tiraram-nos lá de dentro e deram-nos uma loja. A maior parte dos comerciantes desistiram, uns morreram, outros reformaram-se", critica Cristina Soeiro, 45 anos, agora, a única peixeira (eram oito), dona da Cristina Peixe. Continua a reclamar: "Está muito pior. O mercado é um espaço aberto com bancas, isso desapareceu. Enfiaram-nos num cubículo e ainda aumentaram as rendas e outras despesas".

O que lhe vale são as clientes antigas, como Maria Eduarda, 66 anos. "O meu filho mora aqui. Conheci o mercado antigo e quando vi a mudança fiquei triste. Nem lá entro, faço as compras aqui, há mais qualidade e conheço as senhoras".
Opinião partilhada por quem vive na zona desde sempre. "Não é um mercado, é um supermercado. Venho aqui ao peixe e comprar uma ou outra coisinha. No mercado, havia mais bancas e era mais barato, ficou tudo mais caro. Confesso que compro a hortaliça e os legumes aos chineses. São bons e baratos. A minha reforma é de 450 euros mensais, 200 são para a renda, tenho de fazer contas", conta Maria Rosa Pinho, 81 anos, que era supervisora numa empresa. A vizinha, Etelvina Parreira, 80 anos, ouve e comenta: "Com a minha idade, já nem me preocupo. Faço a minha vida".

Estão na charcutaria de Lurdes Cardoso, 60 anos, 24 dos quais no Mercado de Santos. "A minha loja tinha 16 m2, agora tem 13, não me posso mexer. No início, fiquei ainda mais chateada. Puseram-me no primeiro andar e disseram que era "pegar ou largar". Estive lá poucos meses, veio um novo presidente e passaram-me para aqui. Se lá tivesse ficado, já me tinha ido embora".

Lurdes até fatura mais atualmente porque fecha mais tarde (os mercados encerram às 14.00). "Podia estar com o mesmo horário do supermercado mas não compensa, as pessoas estão habituadas a vir de manhã", diz, para sublinhar: "Mas não digam que isto é um mercado. Ainda há dias uma senhora me perguntou onde era a entrada para o mercado e eu respondi: "Acabou"". Acrescenta que se sente enganada porque o resultado da mudança foi muito diferente do anunciado, também por ninguém ter protestado. "Pensavam que era para melhor, ninguém se mexeu, cada qual puxou a brasa à sua sardinha".

As conclusões de Pedro Guimarães corroboram a experiência de Lurdes. "O mercado de Alvalade resistiu porque existe uma população de massa crítica e que não o deixaram cair", sublinha.
Acrescenta que aquele mercado e o de Benfica são bons exemplos de como os mercados podem funcionar bem e atrair clientela. "Benfica e Alvalade demonstram que os mercados são viáveis, pois continuam a ter espaço de venda em banca. Os mercados foram votados ao abandono, as pessoas deixaram de ir lá. Depois, as câmaras querem rentabilizar e recorrem aos privados, mas os supermercados não são uma boa solução. São extremamente perniciosos para a viabilidade dos mercados e além disso já há muitos supermercados em Lisboa, muitos deles nas envolventes dos mercados".

O Mercado de Alvalade mantém a função primitiva. Bancas de peixe, de fruta, legumes, charcutarias e pão, saltam aos olhos de quem entra. Também se percebe que os produtos se destinam a uma população com poder de compra. E, em geral, os comerciantes não se queixam da concorrência do Lidl. Até porque tem frescos, como salada, salmão ou framboesa, mas são embalados.

"Não afeta no meu ramo, peixe só vende praticamente congelado. E estou mais virado para a restauração", explica Horácio Alves, 55 anos. Lídia Martins, 67 anos, também é peixeira e vende mais para particulares. "Afeta sempre um pouco. De início, não podiam ter peixe. Hoje já podem, mas é embalado. Não podem vender os produtos que temos aqui. Agora, é verdade que isto já foi melhor, mas não é só por causa do Lidl, também do Pingo Doce e do Continente, aqui ao lado", argumenta.
A Banca da Alice é uma das mais antigas. A dona é Alice Santos, 62 anos, há 34 no Mercado de Alvalade. Está satisfeita com a mudança. "O supermercado não vende o que eu vendo, só têm frescos embalados, até beneficiámos. O Lidl trouxe gente, os que vão ali vêm aqui também. E percebem que os nossos produtos não têm nada a ver, são melhores. Há muita gente nova que veio para aqui morar e que gosta de vir aos mercados".

Um ramo apontado como tendo sido mais prejudicado é o do pão, negócio de Rui Felizardo, 57 anos, há 30 no mercado. Tem uma padaria, cafetaria e charcutaria. "Prejudicar, prejudica sempre. O supermercado era para vender só produtos alemães e vende de tudo. Mas eu tenho muita variedade e vem tudo das próprias regiões. Desde que não perca a noção de qualidade, tenho sempre clientes", acredita Rui.
O futuro pode ser bom para incentivar os mercados, numa ótica de sustentabilidade. Preocupações que sustentam a tese que os habitantes devem ter tudo a uma distância de 15 minutos, defendida por Pedro Guimarães: "O tecido comercial não deve ser apenas visto com uma lógica de rentabilidade mas de serviço público. É importante ter em conta o abastecimento da população, cada vez mais envelhecida e com menos capacidade de mobilidade. A cidade só tem a beneficiar com uma aposta nas cadeias de abastecimento e estes mercados têm maior sustentabilidade. É o comércio de proximidade, aliado às questões mais prementes de sustentabilidade, distâncias mais próximas para realizar as necessidades diárias".

ceuneves@dn.pt