Comunicação, arma da América
Há uns anos viajei num destroyer americano entre os Açores e a base espanhola de Rota, perto de Cádis. Foram três dias de acesso total ao USS Carney e à sua tripulação. As refeições do pequeno grupo de jornalistas, tirando uma com os marinheiros em noite de gelados, foram todas na messe dos oficiais, com possibilidade de conversar com o comandante Ken Pickard. Na mesa com 14 lugares, só duas cadeiras estavam reservadas: a que dizia CO (commanding officer), destinada ao comandante Pickard, e a com XO (executive officer), para o número dois.
Relembro esta reportagem para reafirmar o quanto os americanos são bons na comunicação. Inclusive os militares. Sabem que as armas decidem quase tudo em última instância, mas antes há que tentar garantir a paz por outros meios. E voltei a testemunhar esta semana a mestria dos Estados Unidos na arte de promover a maior transparência possível mas também transmitir confiança, quando fui convidado para participar numa conferência telefónica com o almirante James Morley, vice-comandante da STRIKFORNATO (baseada em Oeiras) e o comandante Jonathan D. Lipps, que chefia a força naval americana Task Force SIX FOUR. Durante meia hora, ambos explicaram o exercício naval Formidable Shield, e isto quando estavam já a caminho do Norte do Atlântico na fragata espanhola Blas de Lezo, pois o treino contra um eventual ataque de mísseis vai decorrer ao largo da Noruega. Os jornalistas podiam fazer todas as perguntas que quisessem sobre as manobras que envolvem 20 navios, 1 submarino e 37 helicópteros e que apesar de ocorrerem a cada dois anos, ganharam importância acrescida depois da invasão russa da Ucrânia em 2022. Claro que respostas a questões mais concretas, como sobre um míssil russo que terá caído em território polaco, não foram dadas, mas sim declarações mais gerais sobre a importância de os países da NATO continuarem a treinar para desenvolver capacidade de contrariar ameaças.
Haverá quem veja nesta vontade de comunicar dos militares americanos apenas uma ação de relações públicas, ou até uma forma de propaganda. Chame-se o que se chamar, é um sinal de confiança nas capacidades e que, provavelmente, se revelará útil de várias formas, mais não seja pela exigência que os próprios militares têm de ter consigo mesmos ao serem expostos ao escrutínio dos media; ou porque esta transparência - a possível - está de acordo com a máxima de que mesmo nas guerras as democracias têm de ser fiéis aos seus ideais. É difícil imaginar chineses ou russos a terem uma política de comunicação semelhante, até porque nem os media chineses nem os russos têm a mesma margem de crítica que os americanos (e os europeus ocidentais).
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Coincidência ou não, os dois exemplos que dei de política de comunicação dos americanos são da Marinha. Ora, vou então acrescentar um terceiro, também da Marinha, já claramente relações públicas. Numa entrevista em Lisboa à almirante Michelle Howard em 2017, nas vésperas de se iniciar o primeiro Formidable Shield, perguntei-lhe sobre o impacto de a sua voz de comando aparecer no filme Capitão Philips, com Tom Hanks, sobre os piratas da Somália. "Se alguém me tivesse dito, há 35 anos quando comecei na Marinha, que iria combater piratas, não teria acreditado", respondeu, com total naturalidade, aquela que foi a primeira mulher na Marinha americana a chegar a almirante de quatro estrelas. Mas melhor ainda é a forma como contou reagir às perguntas sobre ser mulher e comandar navios: "Lembro-me de ter ido à Austrália e havia câmaras de televisão no cais porque sabiam que a bordo mandava uma mulher. E uma jornalista perguntou-me: "é mais difícil ser uma mulher comandante do que um homem comandante?" E eu respondi: "não sei, nunca fui um homem comandante. Não posso fazer a comparação"". E riu-se. Por alguma razão, e apesar das profecias constantes sobre a sua decadência, a América continua o mais poderoso dos países.
Diretor adjunto do Diário de Notícias