"Não sou capaz de imaginar quem eu seria se não existisse a União Europeia"

Mafalda vive em Londres com um francês, Jorge vive em Bruxelas com uma espanhola, Daniel vive em Lisboa com o polaco Bartek, que conheceu em Berlim. Estudaram através de programas europeus, circularam pelas fronteiras abertas e apaixonaram-se por nacionais de outros países da UE. Europeus como nós, sabem exatamente, ao contrário da maioria, o que isso quer dizer - e o quão importante é para eles.

Andei a distribuir panfletos na rua a favor do Remain. As pessoas perguntavam-me porque é que eu andava naquela campanha, e respondia: "Sou um produto da Europa." A minha avó era analfabeta, os meus pais foram os primeiros da família a estudar e eu beneficiei de programas europeus. Não faço parte de uma elite, sou da classe média. Tenho a vida que tenho porque a Europa e Portugal me apoiaram."

Nascida em Santarém há 34 anos, mais um dos que Portugal tem de comunidade europeia, Mafalda Dâmaso circula nas fronteiras abertas da UE há mais de metade da sua vida adulta: fez Erasmus em Viena de Áustria, onde aprendeu alemão, mestrado na Bélgica, em Bruxelas, esteve na Holanda, e agora, vivendo há nove anos em Londres, onde fez o doutoramento e deu aulas em universidades inglesas, trabalha para uma empresa alemã e um think tank de Bruxelas e dá aulas numa universidade francesa. E está numa relação com um francês que conheceu na capital britânica quando os dois estavam lá a estudar.

"Nunca nos teríamos conhecido de outra maneira. Vim para cá para fazer um doutoramento em Visual Culture - a relação entre arte e política - no Goldsmith Institute, que faz parte da Universidade de Londres, com o apoio da Fundação para a Ciência e Tecnologia. E fiquei por várias razões, pessoais e profissionais. Comecei por dar aulas cá enquanto fazia o doutoramento, mas se calhar a principal razão, até porque agora trabalho mais com instituições francesas, é ter aqui redes pessoais e profissionais bastante interessantes." E também, acrescenta com riso na voz, o facto de ela e o namorado, designer gráfico, viverem assim num "terreno neutro".

"Se fôssemos todos iguais a Europa não seria tão interessante"

Na sua experiência de europeia, iniciada em 2006-2007, quer ela quer a Europa transformaram-se. "Quando estava na Áustria viajei muito porque na altura havia um passe que me permitia viajar de graça, de comboio, até à fronteira. E daí apanhava um comboio para Veneza, por exemplo. São coisas que mudam muito a forma como a pessoa vê o que é a Europa, a situar-se. Antes de sair de Portugal tinha algum medo de viver num país que não conhecesse. Fui viver para os Países Baixos e não tinha um iPhone nem falava holandês e tive de me desenrascar e perceber como os serviços funcionam. Percebi que os sistemas podem ser algo diferentes mas é possível lidar com eles. E viver em diferentes países abriu-me à possibilidade de haver formas diferentes de fazer as coisas, diferentes organizações de comunidade. Quando estou a ouvir um debate político num sítio percebo que geralmente se centra tudo no Estado-nação e que as pessoas acham que só há uma maneira de fazer as coisas. E há muitas maneiras diferentes. Por exemplo fui aluna em vários países e há muitas diferenças na confiança que é dada aos alunos, formas de perceber e impor a autoridade - no Reino Unido, por exemplo, a autoridade é vista como algo que se ganha, e um aluno também pode tê-la, pode ter o seu campo de especialização e o professor reconhecê-lo. E em Portugal enquanto fui aluna não era nada assim. Mas apercebi-me de que as diferenças são bastante positivas, na verdade. Todas estas experiências me fizeram celebrar essa diversidade - que se fôssemos todos iguais a Europa não seria tão interessante. Por exemplo, que trabalhar com uma organização alemã que é um cliché de extraordinária organização e com franceses que não são tanto me leva a criar ideias novas."

"Sou um produto da Europa. A minha avó era analfabeta, os meus pais foram os primeiros da família a estudar e eu beneficiei de programas europeus. Não faço parte de uma elite, sou da classe média. Tenho a vida que tenho porque a Europa e Portugal me apoiaram."

Descobriu também coisas que à partida seriam contraintuitivas: "Achava que Londres, uma metrópole tão grande, com tanta gente diferente, tão multicultural, ia ser muito impessoal - mas não sinto que seja verdade. Sinto exatamente o contrário - conheço os meus vizinhos e sei que se precisar de ajuda as pessoas me ajudam." Outra conclusão inesperada é que Portugal pode não ser muito barato comparado com países mais ricos: "Uma das razões pelas quais fui fazer um mestrado fora, em Bruxelas, foi porque como era de Santarém tinha de pagar quarto em Lisboa e contas feitas, como em Bruxelas pagava 800 euros anuais de propinas, acabava por ficar ela por ela, até porque os transportes lá eram muito mais baratos."

Havia outro motivo, porém: quando voltou a Portugal depois do Erasmus, em 2008-2009, percebeu que "felizmente ou infelizmente já tinha mudado tanto que já não me sentia em casa, tinha de voltar a sair". Não teve nada, garante, que ver com a crise económica, que de resto ainda não se fazia sentir nessa altura. Foi mesmo a sua nova identidade europeia a determinar o caminho.

"Sou filho da emigração e da UE"

"Quando voltei de Erasmus tinha a família toda à espera com cartolinas mas agora apanho um autocarro para casa. A minha vida adulta foi toda passada na Europa fora de Portugal. A minha casa hoje é tanto Portugal como Bruxelas como a Europa."
Jorge Pinto, 32 anos, nascido em Amarante e engenheiro do ambiente, ri. O ano de Erasmus, feito em Kaunas, a segunda cidade da Lituânia (que aderiu à UE em 2004), foi há 11, e desde então que anda por fora. "Logo a seguir fui fazer a minha tese de mestrado na Índia - num programa que por acaso não é europeu -, estive lá quatro meses, voltei a Portugal, fiz a defesa da tese no início de 2010 e logo a seguir fui para França como au pair, fazer babysitting, para aprender francês. Quis fazer isso porque a minha mãe é bilingue, filha de emigrantes, e foi para França em bebé."

Jorge detém-se na história da mãe: "Ela regressou para Portugal aos 17, para ir para a universidade, recambiada pelo meu avô porque se tinha apaixonado por um francês e os pais, que eram analfabetos, queriam que ela estudasse e não a queriam francesa. Os meus avós analfabetos saíram nos anos 1960-70, acho até que o meu avô foi nos anos 1950, para trabalhar na construção civil. Viveu 30 anos em França e nunca aprendeu francês, a minha avó sabe ler e escrever e aprendeu francês porque trabalhava em casas. Tiveram cinco filhos e quiseram educá-los: licenciaram-se três. Sou filho quer da adesão à CEE [Comunidade Económica Europeia, o nome que a UE tinha nos anos 1980] quer da emigração dos portugueses."

Uma ironia que o filho tão estrangeirado só tivesse nascido porque a mãe conheceu um português em Portugal, em vez de ter ficado com o namorado estrangeiro; e outra ironia que tenha sido em Amarante e não nas suas viagens que Jorge tenha conhecido a espanhola com quem vive em Bruxelas: "Ela estudava cá mas esteve um verão na orquestra em Amarante, com um minicontrato."

"Acho que o fim da Europa não é uma possibilidade"

As linhas do destino na Europa sem fronteiras são assim, um emaranhado. E o de Jorge dá muitas voltas. Esteve em Bruxelas pela primeira vez num estágio de primeiro emprego, e daí para Milão, no âmbito do programa INOVcontacto. "Primeiro fiquei triste porque queria ir para fora da Europa, conhecia quem tivesse ido para Nova Iorque, para Moçambique... Queria ir para a América Latina e afinal calhou-me Itália, num estágio da Sonae Sierra. Mas graças a isso e por ter aprendido italiano arranjei um emprego em Parma, sem bolsa, mas muito bem pago. Fiquei mais ou menos convencido a ficar em Itália mas veio a crise, estávamos em 2011-2012. Candidatei-me a várias coisas e cheguei à última fase de entrevistas do Greenpeace. Mas não fui escolhido. Essa custou-me muito."

"Acho que o fim da UE não é uma possibilidade. Até porque a minha geração e os depois de mim são muito europeus. Há dez anos que faço muito mais amigos de outras nacionalidades do que portugueses."

Voltou pois a Bruxelas: a Organização Europeia de Segurança de Tráfego Aéreo tinha aberto concurso para engenheiros e fora escolhido entre 1800 candidatos para entrar num programa de graduação de três anos, findo o qual se candidatou a uma posição permanente. Está no seu sétimo ano na agência e parece finalmente ter criado raízes. "Temos um bom salário, podemos trabalhar em casa, há flexibilidade horária, recuperação de dias de férias por horas a mais que se trabalha." Reflete: "Estou mesmo naquela minoria que saiu por vontade própria, nem sequer procurei emprego em Portugal e tenho tido sempre muito boas condições. O mais difícil é sair. Porque depois o complicado é voltar. Por causa de certas coisas, como a cultura do presentismo, a ideia de que as pessoas para trabalharem têm de estar no escritório, por exemplo. E, claro, há a questão salarial também. Atualmente então, com o preço das casas em Portugal, que é literalmente o mesmo que em Bruxelas ou mesmo mais - vi um T2 em Bruxelas em construção por 200 mil -, pode ser mais barato viver fora. E se te adaptas sentes-te em casa. Claro, podes ter saudades do sol. Por exemplo agora estou a olhar para o céu e está pior do que chumbo."

As nuvens negras não são só meteorológicas: há também a possibilidade de desmembramento da união. Jorge não acredita, porém. "Acho que o fim da UE não é uma possibilidade. Até porque a minha geração e os depois de mim são muito europeus. Há dez anos que faço muito mais amigos de outras nacionalidades do que portugueses." Vê outros motivos para a esperança: "Amarante tem 60 mil habitantes e há lá uma associação que recebe voluntariado europeu e teve um grande impacto na cidade. Fez as pessoas perceberem que há todo um mundo para lá do país."

"A entrada na UE abriu o mundo"

Há todo um mundo. Bartek Kowalik, 31 anos, e Daniel Cardoso, de 35, atestam-no. No Twitter, onde responde ao apelo do DN pedindo testemunhos de pessoas para quem a liberdade de circulação e as possibilidades trazidas pela UE tenham tido uma grande importância, Daniel escreve: "Fiz doutoramento em Berlim, onde conheci o meu noivo (polaco), que começou a estudar na Alemanha pouco após o acesso da Polónia à UE. Sem fronteiras abertas, provavelmente nunca nos teríamos conhecido." Depois, em conversa, comenta: "No caso dele é ainda mais notória a importância da UE."

Bartek sorri, assente: "Na Polónia nunca é totalmente possível fazer o que queres, é mais conservador. Na Polónia oficialmente não há homossexuais - a homossexualidade não existe, não se fala disso. Nunca poderia dizer aos meus amigos, nunca poderia ter um marido. E se souberem as pessoas colocam-te numa caixa, torna-se perigoso, pode acontecer alguma coisa na rua."

Sair para a Alemanha, conta, "abriu o mundo". E a entrada da Polónia para UE também. "Antes, os meus pais - ele trabalhava na construção civil e a minha mãe como costureira - só podiam viajar para a parte comunista da Europa. E só aprenderam russo como língua estrangeira. As pessoas não podiam aprender inglês e sem aprender inglês era impossível estudar fora e até viajar. Eu só comecei a aprender inglês com 14, por exemplo. Agora as crianças nas escolas polacas começam a aprender aos 6 anos."

A conversa decorre em português: Bartek aprendeu a língua na embaixada portuguesa em Berlim e já a domina muito bem. Economista, tirou o curso numa universidade alemã na fronteira com a Polónia. "Era estranho porque comecei a estudar lá depois de a Polónia aderir mas antes de Schengen e tinha de mostrar o meu passaporte todos os dias na fronteira, que era numa ponte sobre o rio. Às vezes havia grandes filas. Em 2007, quando demoliram a fronteira, passou a ser uma cidade só, como antes da Segunda Guerra, antes de a dividirem, uma parte para a Alemanha e outra para a Polónia."

"Não consigo perceber a ideia de fechar fronteiras"

A experiência dessa ferida que parece tão longínqua deste lado da Europa é um bom motivo de reflexão, crê Bartek. "Não consigo perceber a ideia que anda por aí de fechar fronteiras, e estou preocupado. Para mim isto da UE é muito pessoal também, a minha vida mudou por causa disso. Não imagino a minha vida de outra forma, sem a União Europeia. Acho que teria tentado sair da Polónia de qualquer modo mas teria sido muito mais difícil e caro." Suspira. "Gostaria muito que a Polónia se tornasse um pouco mais liberal e menos conservadora. O que aconteceu nos últimos anos lá foi um pouco assustador. Acho que as pessoas ainda não perceberam as vantagens de estar na UE. Pensam que é para facilitar as viagens e arranjar trabalho, não se dão conta de que é importante esta construção para fazer frente à Ásia e aos EUA."

"Não consigo perceber a ideia que anda por aí de fechar fronteiras, e estou preocupado. Para mim isto da UE é muito pessoal também, a minha vida mudou por causa disso. Não imagino a minha vida de outra forma, sem a União Europeia."

Juntos desde 2011 em Berlim, Bartek e Daniel mudaram-se para Lisboa em 2016, quando o português concluiu o seu doutoramento. "Dou aulas de Teoria das Relações Internacionais e faço investigação na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova, e o Bartek está a trabalhar numa empresa de auditoria e consultoria financeira. Vamos casar-nos em breve."

Apesar de serem os dois cidadãos da UE, porém, a papelada para o casamento foi complicada. "Segundo as nossas regras a Polónia tem de dar um certificado a dizer que o Bartek não é casado, não tem dívidas nem distúrbios mentais, mas eles não dão isso para um casal do mesmo sexo. Tiveram de nos abrir uma exceção na conservatória. Fiz uma pesquisa e percebi que já tinha acontecido antes, e então informei a senhora da conservatória e tudo se resolveu."

E como é passar de uma cidade de quatro milhões de habitantes como Berlim para Lisboa? "Acho que estou a adaptar-me", responde Bartek. "Foi fácil em termos profissionais porque vim trabalhar para uma empresa do mesmo grupo daquela para a qual trabalhava na Alemanha. Mas não ganho o mesmo que ganhava lá: é metade, mais ou menos. E tenho de dizer uma coisa: aqui trabalha-se mais - mais horas extra. E o trabalho aqui parece muito mais exigente. Vocês acham que na Alemanha se trabalha mais - mas não é verdade."

Ainda assim, trabalhando mais e por metade do dinheiro, está encantado: "Pensamos ficar aqui em Lisboa para sempre. Gostamos muito, é uma cidade muito bonita, o tempo é incrível, a comida também. E as pessoas."

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