Internacional
24 janeiro 2022 às 00h00

Bolsonaro usa crime de 2002 para atacar Lula na campanha

Morte de Celso Daniel, alto dirigente do PT, gera há 20 anos teorias da conspiração contra o partido. Polícia considerou-a fruto de "crime comum". "Ele é o nosso JFK", diz autor de filme sobre o caso

João Almeida Moreira, São Paulo

"O Celso Daniel ia atrapalhar a eleição do 'nove dedos' lá em 2002 porque sabia de um esquema de corrupção, acabou sequestrado, torturado e executado". A frase, de Jair Bolsonaro, dita dia 20, cita o nome de um autarca do Partido dos Trabalhadores (PT), cujo assassinato, há 20 anos, gera repetidas teorias da conspiração contra Lula da Silva, a quem o presidente do Brasil se refere como "nove dedos". Essas teorias, difundidas logo em seguida por bolsonaristas, entraram definitivamente na campanha.

"São calúnias e difamações graves a propósito de um crime que a polícia da época, estávamos ainda sob o governo de Fernando Henrique Cardoso, concluiu como sendo 'crime comum' e não 'crime político'", reage ao DN Paulo Teixeira, secretário-geral e deputado do PT. "Nunca se comprovou qualquer relação do nosso partido com o caso e se a equipa da rachadinha [referência ao esquema de corrupção em que Bolsonaro e dois filhos são atingidos] utilizar alguma teoria conspiratória sobre a morte do Celso no tempo de antena oficial incorrerá em crime".

No dia 18 de janeiro de 2002, Celso Daniel, de 50 anos, prefeito da influente cidade de Santo André, na periferia de São Paulo, e coordenador da campanha que elegeria Lula da Silva presidente da República pela primeira vez no final desse ano, saiu de uma churrascaria de São Paulo acompanhado do braço-direito Sérgio Silva, conhecido como "Sombra".

O carro, guiado por "Sombra", foi então perseguido, alvejado e encurralado por três viaturas. Dois dias depois, o corpo do prefeito foi encontrado, longe dali, com oito tiros no rosto e sinais de tortura. "Sombra" escapou ileso.

Segundo a polícia, um grupo de seis criminosos, liderado por Ivan Silva, conhecido como "Monstro", executou o crime por engano. "Monstro" contou que o grupo perseguia um comerciante, foi despistado por ele e por isso decidiu sequestrar o primeiro passageiro de um veículo caro que visse no caminho.

No dia seguinte, ao tomar conhecimento pelos jornais de que Daniel era autarca, "Monstro" assustou-se, telefonou para os parceiros que estavam junto à vítima e ordenou a sua "dispensa" - termo que significaria "soltura", na gíria criminosa, mas que foi entendido como ordem para matar por um dos membros da quadrilha, de nome Lalo, menor de idade.

Ao saber que a polícia condenara os sequestradores e classificara o assassinato como "crime comum", um irmão de Celso Daniel, com quem o prefeito estava de relações políticas e pessoais cortadas, pediu a reabertura do processo, alegando motivação política. O Ministério Público acompanhou a tese do irmão da vítima, segundo a qual "Sombra" fora o cérebro do crime por estar envolvido num esquema de corrupção que o prefeito pretendia denunciar e que incluía beneficiários como José Dirceu, braço direito político de Lula no PT naquele tempo.

Ainda de acordo com esta tese, que o ministro da Justiça de Fernando Henrique Cardoso, do PSDB, adversário político do PT, considerou inconsistente, "Sombra" pedira a Dionízio Severo, um criminoso que se evadira de helicóptero de uma prisão dois dias antes do crime, para contratar o tal grupo de criminosos.

As teorias da conspiração ganharam corpo na opinião pública por, meses depois, Severo ter sido esfaqueado na prisão. E Sergio Orelha, criminoso em cuja casa Severo se abrigara, e Otávio Mercier, um investigador de polícia que lhe ligara na véspera do sequestro, foram mortos a tiro na sequência.

Antonio, o empregado de mesa que serviu o prefeito e "Sombra" na churrascaria na noite do sequestro, também foi executado. Paulo Brito, testemunha deste último crime, idem. Iran Redua, agente funerário que reconheceu o corpo, e Carlos Printes, médico legista que atestou marcas de tortura no cadáver, apareceram mortos nos dois anos seguintes.

Em 2013, Marcos Valério, o operacional condenado a 40 anos de prisão no Escândalo do Mensalão, garantiu às autoridades que a cúpula do PT estava a ser chantageada por um empresário de Santo André, Ronan Pinto, sobre o Caso Celso Daniel. Em 2016, os juízes da Operação Lava Jato verificaram que Pinto, de facto, fora o destinatário em 2004 de uma transferência no valor de seis milhões de reais de José Carlos Bumlai, amigo pessoal de Lula.

"É possível que este esquema criminoso tenha relação com o homicídio, em 2002, de Celso Daniel", escreveu em despacho de abril de 2017 o juiz Sergio Moro, um ano antes de se tornar ministro de Bolsonaro e cinco antes de se assumir candidato à presidência da República. Teixeira, o secretário-geral do PT, contrapõe: "A Lava Jato era liderada por um juiz parcial e incompetente, conforme a justiça brasileira já determinou".

Roberto Wider, promotor de Santo André, reabriu então o caso, com o intuito de voltar a ouvir "Sombra", considerado testemunha chave. No entanto, "Sombra" morreria num hospital de São Paulo - vítima de cancro - meses depois. "Com a morte dele, o caso chega ao fim, é uma frustração", lamentou o promotor.

A propósito dos 20 anos da morte de Celso Daniel, dois documentários serão exibidos em breve. Um, em formato de série, pela plataforma de streaming Globoplay, com depoimentos de José Dirceu e Fernando Henrique Cardoso, e outro da autoria de Marcelo Felipe Sampaio. Sampaio contou ao DN que o caso o "persegue desde sempre". "Sou de Diadema, cidade ao lado de Santo André, e estava num concerto em São Caetano, outra cidade nas imediações, quando vi uma caravana de carros da polícia passarem e pensei que algo importante teria acontecido; no dia seguinte li no jornal 'Celso morto'".

"Estou há três anos a fazer este documentário porque é o nosso caso JFK", afirma, aludindo ao assassinato em 1963 de John Kennedy, presidente dos EUA, e às teses, variadas, que se lhe seguiram. "Por isso o documentário se chama Celso Daniel - Fragmentos de Verdades Sem Fim".

"Ele era muito respeitado, caso contrário não seria coordenador de campanha do Lula, no fundo, ele poderia ter sido o sucessor do Lula, ele poderia ter sido a Dilma [Rousseff]!", sublinha o documentarista.

Para o lugar de Daniel na coordenação de campanha foi nomeado Antonio Palocci, à época prefeito da cidade de Ribeirão Preto, que se tornaria o homem forte da economia do Governo Lula. "Com Celso vivo, talvez não tivéssemos tido alguns problemas", diz Paulo Teixeira, aludindo à delação contra Lula e o PT feita por Palocci no âmbito da Lava Jato. "Além disso, o Celso tinha uma formação muito boa, nós sofremos duplamente, pela morte de um companheiro e pela calúnia, mas saberemos fazer frente às fake news bolsonaristas".

"Aos 20 anos da morte de Celso Daniel, é sempre bom lembrar deste vídeo", disse no Twitter, no dia 18, a deputada bolsonarista Carla Zambelli, ao publicar o depoimento de Marcos Valério de 2013.

"Há 20 anos o PT tenta enterrar o ex-prefeito de Santo André na vala das vítimas de crimes comuns. Agora, o partido tenta voltar ao poder conduzido pelo mesmo grupo que continuará a ser assombrado pelo fantasma de Celso Daniel", escreveu a revista Oeste, pro-Bolsonaro, três dias antes.

"Eles querem voltar para governar o Brasil. Você vai deixar?", pergunta o site Família Direita Brasil com as fotos de Daniel e também de Lula e Dirceu em fundo.

O realizador Josias Teófilo, autor de documentário laudatório sobre o guru da extrema-direita brasileira Olavo de Carvalho, afirmou que "além do documentário da Globo, surgiu um novo sobre o Caso Celso Daniel - estou curioso para ver", a propósito do filme de Sampaio.

Mas para Sampaio, que produziu o documentário Fakeada, sobre a facada em Bolsonaro, o seu documentário "é independente". "Eu não tenho partido, acusam-me de trazer o assunto à tona em ano eleitoral mas é precisamente para que não aconteçam novos casos Celso Daniel, numa altura em que há tanto ódio e tão pouca empatia no Brasil, que o fiz do meu próprio bolso".