23 setembro 2018 às 06h21

O populismo na campanha Marques Vidal

Catarina Carvalho

Há uma esperança: não teve efeito na opinião pública a polémica da escolha do novo procurador-geral da República. É, pelo menos, isso que dizem os estudos de opinião - o número dos que achavam que Joana Marques Vidal devia continuar PGR permaneceu inalterável entre o início do ano e estas últimas semanas. Isto retirando o facto, já de si notável, de que haja sondagens sobre este assunto.

Talvez o povo seja, de facto, sereno. Ou, vamos ser ainda mais otimistas, adulto. Ou talvez o povo seja apenas realista, e portanto imune à conversa que elogia a tal justiça contra os ricos e poderosos. O povo sabe na pele que um processo continua a demorar em tribunal mais do que a maior parte dos bolsos podem aguentar. E a ideia de que a justiça serve os ricos em vez dos pobres toca-lhe de outra forma: a justiça continua a ser mais justa para quem tem mais capacidade de pagar uma boa defesa. Há mais justiça para quem tem mais meios para a aguentar.

Foi tudo isto que esteve ausente da discussão sobre se Joana Marques Vidal devia ficar ou sair. A avaliação da sua atuação foi feita através de sound bites nos media. Aliás, é possível que os holofotes desses grandes processos tenham até ajudado a pôr na sombra a crise da justiça que se mede, por exemplo, em prazos. Ninguém tira a Joana Marques Vidal o mérito de ter feito processos difíceis andar para a frente. Mas esses casos mais mediáticos não medem a aplicação da justiça como um todo, nem o seu papel numa sociedade melhor, mais justa.

Operacionalizar a justiça para os ricos não tem nenhum efeito na justiça para os pobres. E talvez seja essa uma das razões por que o povo se esteja muito perto de "nas tintas" para se Joana Marques Vidal é substituída ou não. Ou se é substituída por uma outra magistrada do Ministério Público ou por um juiz ou por um advogado.

E ainda bem. Porque se não fosse assim, é possível que o povo tivesse reparado na mais incrível deriva populista que aconteceu em Portugal desde que o populismo se tornou a tendência política internacional do momento. E seria muito perigoso que o povo aderisse aos argumentos dos que fizeram desta nomeação um ringue de boxe político, arena de lama partidária, sendo que nenhuma destas metáforas faz jus a todas as tristes figuras que se colecionaram, dos políticos aos jornalistas, opinadores e comentadores.

Os mesmos que são sobranceiros para com Donald Trump, Viktor Orbán, Jair Bolsonaro ou Matteo Salvini, que fazem esgares de nojo sobre o populismo e como é perigoso para o mundo... são talvez os mesmos que insinuam que há interesses que capturaram a escolha da nova PGR, apesar de ter sido feita pelos legítimos protagonistas. Que politizam a justiça.

Numa conversa informal esta semana, o novo embaixador britânico em Lisboa, Christopher James Sainty, que ainda nem sequer apresentou credenciais, tinha uma curiosidade: porque em Portugal não há movimentos populistas? Percebe-se a preocupação vinda de quem, embora não possa dizê-lo - na diplomacia real dos embaixadores -, vive embrulhado no problema a que o populismo conduziu um país inteiro com o brexit.

É certo que há razões para permanecermos a salvo em Portugal, desde os ventos que afastam das nossas costas algarvias as barcaças que, vindas do Magrebe, nos trariam os imigrantes, até à concentração do protesto numa esquerda organizada mas conservadora, ou uma direita que se mantém aberta e cosmopolita. Mas talvez isto não dure para sempre. E quem tem responsabilidades políticas tem também o dever de estar mais atento ao perigo. E, sobretudo, não o usar como uma arma de arremesso. Até porque um dia se pode voltar contra si.