SOFA
Um vizinho meu, que acabou emigrante nos Estados Unidos da América, garantia-me convicto que aquele país é grande e poderoso porque tinha tido a sabedoria de aceitar cabo-verdianos no seu seio. Os cabo-verdianos é que fizeram a América, dizia-me ele seguro, sem nós eles não seriam nada, não teriam os seus grandes edifícios porque não teriam quem trepar nos andaimes, não teriam esgotos porque não teriam quem os escavar, e olha que isso vem desde os tempos da pesca da baleia!
Nunca tive coragem ou argumentos para o contrariar, até porque antes dele tinha conhecido um homem da Boa Vista que tinha passado uns meses em Boston e considerava a América e a ilha da Boa Vista, que festejam no mesmo dia, uma a independência a outra o dia do município, as duas grandes potências que o mundo gerou, ou como dizemos em crioulo: dôs pisóde, Merca ma Bubista!
Deixando de lado a bazofaria dos nossos, historicamente a América já nos matou muita fome, mandando não poucos navios carregados de milho e outros mantimentos para as ilhas nos anos que foram épocas de grandes crises. Mesmo após a independência continuou a mandar milho com alguma regularidade, e mais modernamente ofertou-nos dois envelopes MCA, tendo o primeiro desses pacotes financeiros americanos sido tão inesperadamente avultado para as nossas ambições que o primeiro-ministro da altura, não sem algum exagero, o considerou como a segunda independência de Cabo Verde.
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Mas eis que a grande aliada quer de nós um acordo SOFA: Status of Forces Agreement. Dizem que tem disso por centenas de países, até com Portugal (nossa guru!), até com Senegal, vizinha do lado. E logo o governo ficou entusiasmado, e o nosso ministro dos Negócios Estrangeiros, que por sinal também representa a Defesa Nacional, vai ao Parlamento apresentar o SOFA aos deputados. E com tanta veemência o fez, que não hesitou em afirmar que Cabo Verde e os Estados Unidos têm mais de 200 anos de relações diplomáticas, não obstante termos apenas 43 anos como país independente. E pede aos deputados que aprovem a SOFA por unanimidade, uma maneira de serem simpáticos à Grande Mana. Mas o PAICV e a UCID abstêm-se, só o MpD vota favorável.
Ora por causa da SOFA, tanto este governo como o anterior têm sido admoestados por certa opinião pública. Traidores, incompetentes, ingénuos, são algumas das expressões com que têm sido mimoseados. A comentadora política Rosário da Luz, então, foi desbragada. Socorrendo-se do crioulo, atirou-se aos parlamentares: falta de kodjon, disse, Porquê pôr-se a jeito?, porquê da cadera des manera?, pergunta, para responder que é consequência do nosso pendor Kultural para a prática de dnher na mon kosta na txon! Dinheiro na mão, costas no chão...
E como se não bastasse, desde lá longe em Braga, o professor de Direito Constitucional Wladimir de Brito, ativo membro do grupo que elaborou a Constituição de 1992 que declarava orgulhosa "o Estado de Cabo Verde recusa a instalação de bases militares", vem dizer abertamente que "Este parlamento perdeu legitimidade para nos representar". Opinião secundada por grande número de gente, de tal modo que o ex-primeiro-ministro, do PAICV, hoje na oposição, José Maria Neves, teve necessidade de vir a terreiro dar uma ajudinha ao governo (MdP) lembrando não só a história como também os dois pacotes financeiros MCA: os EUA são um dos mais importantes parceiros de Cabo Verde, escreveu, acrescentando que em 2013 o presidente Obama o convidou para uma cimeira em Washington onde fez rasgados elogios ao nosso país.
Tenho defendido que esses dois, PAICV e MdP, deveriam fundir-se, quem sabe se esse não foi o princípio. Os descontentes estão na esperança de um veto ao SOFA, mas o presidente já disse que um acordo não é vetável, quando muito pode não ratificar.
Escritor cabo-verdiano, Prémio Camões 2018.