O engenheiro que foi bolseiro da Gulbenkian antes de haver bolsas
Queria ser engenheiro, mas faltava o dinheiro. Pediu à Gulbenkian ainda não existia a fundação. Fizeram-lhe um empréstimo que acabou por se transformar em bolsa. Ele não esqueceu "a dívida".
"Não sou especial, sou um simples professor", começa Carlos Corrêa, 81 anos e muitos deles passados como docente universitário, quando o DN lhe pede esta entrevista, que só aceita depois de muita argumentação. Mas faz sentido conhecer o homem que foi o primeiro bolseiro da Gulbenkian e que no ano passado quis pagar o que recebeu entre os 18 e os 23 anos para se poder formar em Engenharia Química. Ninguém lhe pediu o dinheiro - para a fundação era apenas uma bolsa -, mas quando Carlos recebeu o dinheiro para se formar, foi sob a forma de empréstimo. Na época, ainda não havia bolsas, tão-pouco fundação.
"Eu sabia que tinha aquela dívida. O que interessa é que cumpri o meu dever." É como Carlos Corrêa justifica a entrega de 15 mil euros à fundação. Assim, simplesmente, e "para que outro aluno tenha a oportunidade que eu tive". Entendeu ele que 15 mil euros eram a quantia correta numa conversão "grosseira" dos 60 contos (300 euros) recebidos durante os seis anos do curso de Engenharia Química na Universidade do Porto, 750 escudos (3,75 euros) por mês.
Infância em Barcelos
"No início, eu não tinha possibilidade de pagar. O ordenado de um professor universitário era baixo, os filhos estavam a crescer... Quando o poderia fazer, a desvalorização do dinheiro era tal que achei ridículo pagar o equivalente a 60 contos. Ia devolver 300 euros quando durante seis anos me deram apoio mensal?" Multiplicou então os 300 euros por 50, deu 15 mil. E o dinheiro terá o destino pretendido, confirmou ao DN Margarida Abecasis, diretora do serviço de Bolsas da Gulbenkian.
Subscreva as newsletters Diário de Notícias e receba as informações em primeira mão.
A história de Carlos Corrêa podia ter sido bem diferente. Enquanto jovem, vivia em Barcelos e a escolaridade só ia até ao antigo 5.º ano (atual 9.º). "Uma pessoa fazia o 5.º ano do liceu e depois empregava-se, trabalhava num banco. Eu tinha três irmãos bancários." Quem queria ir para a universidade tinha de sair para Braga. Mas ele e os amigos ficaram em Barcelos, pagaram explicações de Ciências e Matemática e propuseram-se aos exames. Carlos conseguiu terminar o secundário com 18 anos e a vontade de ir para a Faculdade de Ciências era já inegável. Isso, porém, significava ter de ir viver para o Porto, desafio quase impossível para o mais novo de dez irmãos, com pai acamado.
Estávamos em 1955, quando Calouste Gulbenkian viria a morrer (20 de julho), doando a fortuna para apoiar o ensino e as artes. E um dos irmãos desafiou-o: "E se falasses com Azeredo Perdigão, a quem ele confiou a herança?" Incrivelmente, o pedido feito por carta foi atendido e em breve começava a receber os tais 750 escudos que davam para pagar o aluguer do quarto (200 escudos) e ter uma boa vida de estudante.
"Disseram que era um empréstimo e prometi cumprir", recorda. Tornou-se engenheiro químico e, bom aluno, foi convidado a dar aulas na faculdade. Lembra-se da pergunta do diretor do departamento de Química: "O Carlos Corrêa tem alguma coisa de seu?" Era um alerta: um professor universitário ganhava mal... Tentou então compensar na indústria, onde recebia quase o dobro do que ganhava na universidade e trabalhava muito menos, mas só lá esteve três meses antes de voltar às aulas de Química Orgânica e Química Médica. "Era um tédio. Gostei sempre de dar aulas, estavam cheias, eu tinha jeitinho, transformava as coisas complicadas em simples. O pior eram os exames: os alunos pensavam que a matéria era simples e não estudavam como deviam."
"Saberiam eles do empréstimo?"
Bolsas começaram em 1996, entre 17,5 e 44,6 euros, o equivalente a 1656 e 4033 euros.
Ainda antes de ir para Inglaterra, onde nasceram três filhos - teve outros dois em Portugal e hoje tem sete netos e uma bisneta -, casou-se. O pagamento foi sendo adiado, mas aquela dívida não lhe saía da cabeça, apesar de nunca lhe terem pedido para devolver um centavo. Por vezes, até se questiona: "Saberiam eles deste empréstimo? As pessoas que lá estão nem eram nascidas em 1955... Quando fui entregar o dinheiro, vi a minha ficha e estou como bolseiro número um. Nem deviam saber em que moldes me foi atribuída a bolsa, mas eu sabia. A minha mulher diz que era porque eu pensava que ia morrer (tive um problema oncológico), mas não foi por isso: eu tinha aquele compromisso e tinha de o cumprir. Nunca lhes poderei pagar o que fizeram por mim, o que me proporcionaram."
Fundação investe dois milhões de euros por ano em bolsas.
Honrou a palavra 56 anos depois de ter concluído o curso - em 1961, ano em que o pai morreria - na casa de onde se jubilou como catedrático a 31 de maio de 2006. "Foi a última aula que dei, para amigos, alunos e colegas." Antes disso, acumulou a investigação e o ensino. E quando se reformou pegou na malinha e no carro e andou pelas escolas do secundário a fazer experiências, "as brincadeiras", como gosta de dizer.
Recebeu mais duas bolsas da Gulbenkian, estas logo atribuídas como tal. A primeira para se doutorar na Universidade de Oxford, também se doutorou na Universidade do Porto. A segunda para se preparar para a admissão a professor extraordinário.
Coautor de livros de Física-Química do secundário, continua ativo - responde a e-mails, tem vídeos no YouTube (professor Carlos Corrêa, química) e frequenta o Facebook, mas não pelos likes. "Quando intervenho é para dizer qualquer coisa, é fácil 'gostar'", nem se sabe se a pessoa leu o que escrevemos. Eu escrevo, contacto com alunos e colegas de quem não sabia há anos. Fora isso, entretenho-me a combater uma coisa que está muito na moda: a pseudociência." Bem-disposto e dono de uma memória extraordinária, reconhece que há quem diga que foi tolo. "Mas se formos por aí, somos tão trafulhas como eles."