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22 agosto 2018 às 06h21

Campeonato do mundo de canoagem? "Aqui nem temos um supermercado"

Montemor-o-Velho recebe estes dias o primeiro campeonato do mundo do país. É a canoagem a dar cartas numa pequena vila onde o Centro de Alto Rendimento passa ao lado dos habitantes

Paula Sofia Luz

Uma brisa ligeira agita os campos de milho que quase entram na vila, pintando-a de verde-esperança. É assim que Montemor-o-Velho está, por estes dias, à espera que o campeonato do mundo de canoagem - que ali decorre, a partir desta quarta-feira e até ao próximo domingo, 26 de agosto - traga novos ventos ao Baixo Mondego. Por agora, traz milhares de pessoas, sim, mas ficam do outro lado, no Centro de Alto Rendimento, projetado para acolher as modalidades de canoagem, natação, remo e triatlo. Inaugurado em 2010, o Centro levou para o concelho atletas e organismos vários, mas a população não consegue vislumbrar grandes mudanças, ou retorno. "Fica tudo lá. Nem sequer atravessam a estrada, porque aqui no centro da vila também não temos nem um supermercado", diz ao DN Maria José, proprietária de uma das lojas que fazem parte do mercado municipal.

É terça-feira, agosto vai a 21, e nas duas esplanadas do centro da vila o campeonato do mundo que hoje começa, ali a dois passos, passa praticamente ao lado. É uma população envelhecida aquela que ainda mora no centro, como se percebe pelo movimento das carrinhas de apoio domiciliário da Santa Casa da Misericórdia local, à hora de almoço. Na Papelaria Bento, de porta aberta há 24 anos, encomendam-se os livros escolares. Rosa Bento está sozinha ao balcão mas dá conta do recado. Por ela esgotava jornais e revistas, vendia mais recordações de Montemor aos poucos turistas que por ali passam, a caminho do castelo. "O que faz falta é trazer aqui as pessoas. De que vale termos aí milhares a assistir ao campeonato se não vierem aqui dinamizar a economia?" Rosa enumera tudo o que a terra tem de bom: a gastronomia, um parque zoológico, um castelo (com umas escadas rolantes desde a vila até lá acima), os campos de arroz - que pode ser comprado na cooperativa local - e o rio, sim. Acredita que o Centro de Alto Rendimento foi uma boa aposta, mas falta rentabilizá-lo localmente.

O concelho de Montemor-o-Velho não tem mais de 30 mil habitantes, espalhados entre a vila-sede e as 11 freguesias. Por estes dias o presidente da Câmara está de férias, mas deixou em mensagem escrita a promessa aos atletas e fãs da canoagem: "Montemor-o-Velho vai surpreender-vos. Sejam bravos, descubram os nossos segredos e ajudem-nos a valorizá-los." Em seu lugar deixou o vice-presidente da Câmara e vereador do Desporto, José Veríssimo. O autarca reconhece que "inicialmente a criação do Centro não criou grande impacto, mas neste momento leva Montemor a todos os cantos do mundo, repercutindo-se na economia do concelho e até nos concelhos à volta". Afinal, a vila fica a 16 km da Figueira da Foz e a 27 de Coimbra, o que lhe vale de muito no que toca ao alojamento, um dos calcanhares de Aquiles. Veríssimo reconhece a lacuna, mas lembra: "Esse é um trabalho que temos vindo a fazer de há quatro ou cinco anos para cá", ou seja, desde que o socialista Emílio Torrão ganhou a Câmara.

O vice-presidente sabe que "Montemor não está preparado para estes grandes eventos, que trazem muita gente", mas aponta o caminho: "A preparação que nós estamos a fazer é criar condições de treino para que as equipas - essencialmente dos países de leste e nórdicos - nos procurem, porque aqui temos condições para treinarem no inverno. A ideia é termos aqui condições para os acolhermos, e então aí vai notar-se na economia". Aos poucos, são visíveis pequenos avanços. O vereador exemplifica com "alguns casos de atletas que acabaram por ficar cá a residir e formar aqui a sua vida".

A estrada e o comboio

"O problema de Montemor é a estrada", sugere na vila um funcionário da autarquia. Na verdade, os moradores do centro livraram-se há anos do trânsito da nacional 111 (também conhecida como estrada do Baixo Mondego) mas com o desvio perderam o movimento. "Não há bela sem senão."

Rosa Bento diz que já sugeriu à Câmara a criação de um comboio turístico, José Veríssimo lembra ao DN que já o fizeram, há três anos. A experiência foi quase um fracasso. "As pessoas não aderiram. Mas se calhar vamos voltar a repetir, porque na época talvez a canoagem ainda não estivesse tão divulgada como hoje". E, afinal, Montemor é outro depois do Centro? "É evidente. 27 milhões de euros investidos terão de ter o seu retorno", diz o autarca, que fala de um processo lento, gradual, que carece de boa promoção. Quanto ao alojamento - apontado como uma falha, já que há apenas duas unidades hoteleiras -, José Veríssimo lembra o plano de recuperação urbana em curso. "A Câmara criou o mecanismo e tem vários projetos em fase de aprovação, para alojamento local."

Nos próximos cinco dias, o campeonato do mundo de velocidade e paracanoagem conta com 1700 participantes, provenientes de 70 países. O evento tem um custo estimado de 1,3 milhões de euros. O Centro de Alto Rendimento tem um plano de água, com 2000 metros de extensão, 135 metros de largura e 3,5 metros de profundidade. Dele fazem parte uma pista de retorno, um canal de aquecimento e arrefecimento, um percurso ciclável ao longo dos planos de água, assim como uma via técnica para apoio ao treino, hangares, balneários, ginásio, sauna e salas polivalentes. Além disso, está lá instalado serviço de restauração e bar. A maioria dos atletas, técnicos e espetadores abastece-se por lá.

As estrelas nacionais

Teresa Portela faz canoagem desde 1996. Começou a praticar em Gemeses (Esposende), de onde é natural, quando tinha apenas 9 anos, e atravessou aquela que considera "toda a fase má da canoagem", até à reestruturação da Federação. Depois entrou no processo de evolução, e atualmente é uma das caras femininas da canoagem portuguesa, em dupla com Joana Vasconcelos.

O último título conquistou-o em Belgrado, em junho passado: foi medalha de ouro no campeonato da Europa. Mas do seu palmarés fazem parte lugares cimeiros nos jogos olímpicos de Pequim (2010), Londres (2012) e Rio de Janeiro (2016). Aos 22 anos já era licenciada em Fisioterapia, e agora aos 30 está prestes a terminar o curso de Osteopatia. "É claro que a canoagem é sempre a prioridade, mas é possível conjugar as duas coisas", disse ao DN Teresa Portela, no final da conferência de imprensa de apresentação do mundial.

Já correu mundo, e por isso conhece a realidade de outros Centros de Alto Rendimento, o que lhe permite estabelecer comparações. Reconhece uma grande evolução no Centro de Montemor, nos últimos anos, mas falta a ligação com a comunidade. "Podiam fazer mais atividades com a população de Montemor. Agora está aqui muita gente, porque há este evento, mas durante o inverno isto está deserto, há pouca gente. É verdade que isto mudou alguma coisa, mas o investimento que aqui foi feito podia ser rentabilizado de outra maneira, ter aqui outras atividades e se calhar assim haveria mais gente a utilizar e a fazer desporto", sublinha Teresa.

A atleta treina bastante ali, por ser a única pista em Portugal, embora continue a utilizar também o Centro da Aguieira. "Nem tenho a certeza se as pessoas de Montemor sabem que vai haver aqui o campeonato do mundo. Assim é difícil a modalidade ganhar notoriedade", conclui.

A seu lado, Joana Vasconcelos sustenta a mesma ideia. Entretanto casou e vive agora em Amares (Braga), mas foi em Gaia que entrou pela primeira vez numa canoa. De resto, Joana faz parte dessa geração que cresceu em Montemor-o-Velho à conta do Centro de Alto Rendimento. Mudou-se para lá quando era adolescente, em 2008, e frequentou a escola secundária local, enquanto treinava. Viveu ali até 2013, e por isso assistiu "à evolução do Centro. Mudou muita coisa. Agora temos condições fantásticas", assegura. Mas falta-lhe ver ali o mesmo cenário a que assiste no estrangeiros: "À volta das pistas de canoagem há sempre atividades, danças, tudo o que possa envolver o público." Falta essa ligação à comunidade, tão sentida pelos populares da vila.

Joana entrou para a canoagem incentivada por uma amiga. Era verão, e aquela parecia-lhe a atividade perfeita no Clube Náutico de Crestuma, onde acabaria por iniciar a carreira. "Foi tudo fantástico. Estava calor, água quentinha." Mas veio o inverno e percebeu que a canoagem nem sempre era pera doce. Ainda assim, o esforço compensava, como continua a ser. Entrou em 2007 para a seleção, em 2009 já era campeã do mundo em juniores, e essa motivação fê-la continuar. Não foi fácil conciliar os estudos, acabou por congelar a matrícula na faculdade, mas acabou por fazer um curso de Educação Física que lhe permite dar aulas em ginásios, por exemplo. Porque sabe que a alta competição não vai durar para sempre. Enquanto durar, a atleta do Benfica está ali para dar o seu melhor, ao lado de Teresa Portela, em K2.

Fernando Pimenta, retrato de um campeão

Fernando Pimenta começou a praticar canoagem em 2001, quando tinha apenas 11 anos. Foi no programa de férias desportivas do clube náutico de Ponte de Lima. Até então só praticara natação. Foi então que o atual treinador o descobriu, convidando-o a entrar na competição. "A partir daí foi passo a passo. Fui melhorando. Ao início foi muito complicado, porque não tinha equilíbrio nem a coordenação necessária para poder praticar canoagem. Mas fui ganhando aos poucos." Hoje, Fernando Pimenta é campeão do mundo. Lembra-se bem do primeiro troféu que levou para casa, quando foi a primeira vez campeão nacional, em 2004. Depois vieram os títulos individuais, a primeira medalha de ouro em K4 - 500 metros, e a partir daí "as coisas foram acontecendo naturalmente".

O atleta falava ao DN no final da conferência de imprensa de apresentação do campeonato do mundo, ontem à tarde, e apontou o que falta para que o país se aperceba da dimensão da modalidade: "Primeiro que tudo a sensibilização da comunicação social. Os jornais começam a falar da canoagem, mas é de lamentar a falta da maioria das televisões aqui na apresentação da equipa. Isso deixa-nos tristes. Não é que nós queiramos ter fama, mas que as pessoas conheçam a modalidade. Portugal nunca acolheu um campeonato do mundo e por isso é de lamentar essa falta de divulgação. A federação fez um excelente trabalho, através do road show, mas não chega. Isso tem de partir do chamado trampolim, que é a comunicação social."

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