Emergência à medida da coabitação. Nada obrigatório, tudo possível
O Presidente, saído de uma quarentena voluntária em casa e de dois testes negativos ao coronavírus, queria um estado de emergência - e o governo deu-lho. Muitas limitações - mas sem sanções.

António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa reunidos em Belém, na sala do Conselho de Estado, mantendo a devida "distância social".
© Presidência da República/Miguel Figueiredo Lopes(Lusa
Portugal está em estado de emergência - e nunca tal tinha acontecido desde que foi aprovada a Constituição da República, em 25 de abril de 1976. O decreto presidencial teve parecer favorável do governo e foi aprovado, sem votos contra, por larga maioria (PS, PSD, CDS, BE, PAN e Chega, na quarta-feira, no Parlamento.
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Nesse dia, o primeiro passo do Presidente da República foi ouvir o Conselho de Estado (por videoconferência dadas as normas de "distanciamento social" em vigor) e, que se saiba, a única voz que se fez ouvir claramente contra foi a do histórico comunista Domingos Abrantes (no Parlamento o PCP absteve-se, tal como o PEV, a IL e Joacine Moreira).
Às 00.00 de quinta-feira Portugal entrou em estado de emergência. Não se via tal coisa desde o 25 de Novembro de 1975 - antes, portanto, de aprovada a atual Constituição da República.
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O parecer do governo foi favorável - vários dias antes já António Costa tinha anunciado que assim seria - mas o entusiasmo nenhum. Marcelo avançou para a medida sem que o primeiro-ministro lha tenha pedido. Na quarta-feira, após o Conselho de Ministros extraordinário que deu parecer favorável ao decreto presidencial - redigido, de resto, a quatro mãos, entre a Presidência e o governo -, António Costa diria mesmo: "Com ou sem estado de emergência adotaremos as medidas necessárias." Sublinhando ainda: "Todas as necessárias, nada mais do que as necessárias." E recordando, pelo meio, que a cerca sanitária estabelecida em torno de Ovar (ninguém entra, ninguém sai) foi estabelecida antes de ser decretado o estado de emergência, ao abrigo das normas que regulam o estado de calamidade pública.
Marcelo - que começou por enfrentar a crise colocando-se de quarentena em casa e sujeitando-se a dois testes ao coronavírus (ambos negativos) - quis um estado de emergência e o governo deu-lhe um estado de emergência. Só que exatamente à medida das resistências de Costa: quase sem medidas repressivas para quem não cumprir o determinado. "As pessoas têm cumprido tão bem [que seria] um desrespeito pelos portugueses impor um quadro sancionatório", explicou o primeiro-ministro.
"Dever geral de recolhimento"
O decreto que põe em marcha o estado de emergência ainda estava ontem a ser discutido no Conselho de Ministros à hora do fecho desta edição. A reunião iniciou-se na quinta-feira e teve de ser prolongada para sexta, aprovando não só medidas de limitação da circulação como de encerramento quase geral de estabelecimentos comerciais e, também, de apoios sociais às famílias e empresas.
Quanto à circulação, Costa falou num "dever geral de recolhimento". Sair de casa só para fazer o indispensável: trabalhar, assistir a família, passear os filhos e os animais domésticos, ir às compras, abastecer o carro. Mas isto serão "deveres" - ou seja, não serão obrigações (pelo menos por enquanto). Mesmo para a obrigação de encerramento de estabelecimentos comerciais (tudo menos supermercados e afins, de todas as dimensões) não há nenhum quadro sancionatório previsto. Aliás, na questão dos restaurantes, o chefe do governo quase que sugeriu que mudassem o seu funcionamento passando a operar para take away e/ou distribuição ao domicílio (este tipo de restauração está autorizada a funcionar).
Crime de desobediência
Mesmo nas normas limitadoras da circulação das pessoas com 70 anos ou mais não há multas previstas. Estas pessoas - o grupo de risco mais vulnerável ao coronavírus - estão aconselhadas a só sair de casa em situações de exceção (compras, irem ao banco ou aos CTT tratar da pensão, cuidados médicos, pequenos passeios higiénicos) mas - mais uma vez - nada está previsto como sanção para quem violar estas disposições.
Assim, a única verdadeira imposição é a do isolamento obrigatório dos doentes com covid-19 ou das pessoas em vigilância ativa por suspeitas de poderem estar infetadas. Caso violem essa obrigação serão de novo confinadas ao isolamento e haverá participação ao Ministério Público por crime de desobediência.
"Vasta base de direito"
Dito de outra forma: o que saiu da tensão entre Belém e São Bento foi aquilo que o próprio Marcelo Rebelo de Sousa definiu como um "estado de emergência confinado" porque "não atinge o essencial dos direitos fundamentais". O Presidente decretou-o, o Parlamento aprovou e agora o Governo executa - mas "o que foi aprovado não impõe ao governo decisões concretas", apenas lhe dá "uma mais vasta base de direito para as tomar". Dentro de duas semanas será reavaliado.