400 pessoas em risco de perder casa ou escola na Azambuja

Há funcionários a demitirem-se e a direção da instituição, na Azambuja, já pediu aos pais para fazerem a limpeza das instalações. O antigo presidente da Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade diz que este é um problema nacional. Mais de 40% das IPSS portuguesas estão em dificuldades.

Nos concelhos da Azambuja e de Alenquer, distrito de Lisboa, a CERCI Flor da Vida é a única instituição que presta apoio a pessoas portadoras de deficiência. Dos 7 aos 60 anos, 369 utentes residem ou entram todas as semanas nas três instalações desta cooperativa de solidariedade social - com regime equivalente a uma instituição particular de solidariedade social (IPSS). Mas uma crise financeira na associação, que a deixou perto de fechar as portas, trouxe um futuro incerto para todos eles.

Os salários e os subsídios dos funcionários estão em atraso, já são os pais das crianças e dos jovens que fazem as limpezas e os fornecedores estão sem receber. A dívida chegou aos 250 mil euros. Caso a crise leve a melhor, estas 369 pessoas não têm outra alternativa a não ser a transferência para uma qualquer instituição fora da sua área de residência. Muitos podem perder a casa e outros tantos, a escola.

Arminda Rodrigues, da direção da Flor da Vida, não esconde a preocupação. "Estamos numa situação financeira muito complicada", diz ao DN. Nesta associação, uma das maiores do concelho, já não há espaço para aceitar mais quem precise de acompanhamento - há dois anos que uma lista de espera continua inalterada - e aguentar os que já lá se encontram é um desafio diário.

São 24 os utentes em regime residencial e é precisamente na residência que se têm demitido mais trabalhadores nos últimos tempos, fruto de ordenados em atraso e subsídios que nunca chegaram. Caso a instituição feche, todas as pessoas inscritas, em formação profissional, nos centros de atividades ocupacionais, na valência socioeducativa, no serviço integrado de intervenção precoce ou no serviço residencial, podem ter de ser deslocadas para longe das suas áreas de residência.

Rodrigo, de 8 anos, é um deles. Ana David, a sua mãe e principal cuidadora, percorre todos os dias cerca de 80 quilómetros até à CERCI Flor da Vida, exceto se faz mais frio e o filho, mais vulnerável, não aguenta a mudança de temperatura que implica largar o conforto da casa. Há muito que se apercebeu dos problemas financeiros da instituição. Ouvia nos corredores, falava com os funcionários. Mas só no início deste ano seria chamada, juntamente com outros pais, a comparecer numa reunião com a direção. Ana tinha muitas questões e preocupações para deixar em cima da mesa.

Ficaram, ela e os outros pais, a saber que a entidade tem uma dívida de 250 mil euros, valor confirmado ao DN pelo atual presidente, Carlos Neto. "O que nos foi explicado é que eles deram passos maiores do que as pernas e endividaram-se", conta Ana David.

A situação ter-se-á complicado "há quatro anos", quando "construíram instalações novas", no valor de 1,3 milhões de euros (um milhão financiado pela Segurança Social). Mas foi a aposta na área de formação profissional, serviço que entretanto eliminaram para contenção de custos, que agravou o quadro financeiro. "Apostámos na área de formação profissional e descurámos o fundo de maneio que é necessário para manter o resto da estrutura", explicou Carlos Neto, em entrevista ao DN.

O representante salienta ainda que o problema também partiu dos financiamentos que lhes são prometidos anualmente. "Enquanto a Segurança Social e o Ministério da Educação nos pagam atempadamente os gastos, tanto na área educativa como na social, nos centros de atividade ocupacional e nas residências, com o Programa Operacional Inclusão Social e Emprego, recebemos com atrasos de quatro ou cinco meses. Gastamos primeiro e recebemos muito depois. No ano passado, estivemos oito meses à espera", revela. "Não tínhamos como resistir a isto."

Ana David acrescenta que lhes foi comunicado, nesta reunião, que "há sócios com quotas em atraso e já nem sabem se estão todos vivos ainda". "Uma responsável que pertence à mesa da assembleia comprometeu-se a atualizar esta lista em janeiro, mas diz que também não pode apontar uma arma aos sócios e obrigá-los a pagar", conta. Alguns serviços já foram até eliminados, nomeadamente a Loja Social, projeto da Câmara Municipal da Azambuja mas assegurada pela instituição, que prestava apoio a famílias carenciadas da região, e a existência de um tanque terapêutico para fisioterapia.

"O presidente Carlos Neto diz que isto foi gerido com o coração, não com a razão, mas não é uma explicação muito válida para uma dívida tão grande", desabafa Ana David.

É uma bola de neve de problemas que levou ao primeiro anúncio de morte da instituição desde que foi criada, em 1980, embora a direção esteja a procurar dar a volta ao destino. Ainda neste encontro entre pais e representantes da CERCI foram pedidos donativos aos encarregados de educação e até que se voluntariassem para assegurar as limpezas do espaço, depois de a funcionária de limpeza se ter demitido. "Pediram-me encarecidamente se eu poderia ir até lá, de forma voluntária, fazer limpeza", conta a mãe de Rodrigo.

Apesar das dificuldades, Arminda Rodrigues acredita que a instituição não se encontra "em perigo iminente" de fechar portas, mas a verdade é que já há funcionários a demitir-se por não suportarem a falta de salários, o que pode comprometer o bom funcionamento da mesma. "O mês de dezembro ainda não foi pago, o subsídio de Natal ainda não foi pago e para alguns trabalhadores, pelo menos metade, também ainda não foi pago o subsídio de férias", e "em relação a fornecedores [de alimentos para a residência] ainda temos bastantes atrasos", explica.

A representante acredita que, de todos os cerca de 80 funcionários, são os que trabalham nas residências os mais vulneráveis à demissão, pois "é um trabalho mais pesado e não muito bem remunerado - recebem o básico mais os subsídios". "É muito fácil que estas pessoas procurem outras soluções", lamenta. E perto de cinco profissionais, entre psicólogos, terapeutas da fala e assistentes sociais, já se demitiram.

Caso as demissões alastrem, a associação pode mesmo fechar. Contudo, para já, Arminda Rodrigues tem outras inquietações. "A nossa preocupação são estas pessoas que num dia têm alguém a dar-lhe banho e no dia seguinte não sabem se não será uma nova pessoa a fazê-lo. Isto é muito delicado. Enquanto formada em Psicologia, este é o risco que mais me preocupa", desabafa.

"Mais de 40% são instituições que estão em territórios de baixa densidade populacional, com muito pouca gente nova, com uma população com idade avançada que precisa de apoio e que não tem possibilidade de pagar as comparticipações às associações."

Um problema nacional

Além de um pedido de auxílio a todos os pais, Arminda Rodrigues garante que estão ainda "a ultimar o pedido de Fundo de Socorro Social à Segurança Social", com "a perspetiva de que será aprovado e que irá estabilizar a situação".

Contudo, o antigo presidente da Confederação Nacional de Instituições de Solidariedade (CNIS) João Dias - substituído nesta semana pelo seu sucessor - considera que talvez esta seja uma solução de curta validade. "É uma solução para acudir uma situação conjuntural, mas aquilo que me parece que acontece ali é uma questão estrutural e não conjuntural. Já falamos de salários em atraso, de despedimentos, já é estrutural. Já merece ser olhada de uma forma de reestruturação, ou seja, fazer uma avaliação financeira da instituição", explica. Para o especialista, "o primeiro passo deveria ser expor o problema e pedir ajuda junto da união distrital". "As instituições não estão abandonadas", reforça.

Todos os anos, a instituição conta com um apoio autárquico no valor de 25 mil euros, depositado a meio do ano civil. A direção parece estar a tentar adiantar este apoio para se conseguir reerguer e Ana David propõe mesmo que a CERCI comece a estar incluída no orçamento da Câmara Municipal da Azambuja. Contudo, João Dias considera que este não é um raciocínio viável. "Normalmente, as autarquias apoiam as IPSS, mas não têm essa obrigação. O financiamento autárquico não faz sentido", diz.

Explica que este apoio financeiro é central, até para "evitar favorecimentos territoriais", em que se cederia mais dinheiro para uma instituição em prol de outra por interesses. Aliás, todas as instituições devem estar inseridas no designado Compromisso de Cooperação, um documento em que está exposto o modelo de financiamento e no qual assenta a responsabilidade de comparticipação do Estado. Mas "aqui é que está o problema", no modelo de financiamento, afirma o ex-presidente da CNIS.

Em 2018, a CNIS divulgou os resultados de um estudo, feito em parceria com a Universidade Católica, em que mostra que mais de 40% das IPSS do país têm dificuldades financeiras. Os autores analisaram uma amostra de 565, num universo de 5131 IPSS registadas (e 2911 associadas à CNIS) - número que consideraram refletir a distribuição que a população total de IPSS (incluindo cooperativas de solidariedade) tem em termos de distritos. De acordo com João Dias, este estudo "veio dar razão às maiores preocupações" dos investigadores, que "há vários anos" olham para este modelo de financiamento como inadequado à realidade dos dias de hoje.

"Mais de 40% são instituições que estão em territórios de baixa densidade populacional, com muito pouca gente nova, com uma população com idade avançada que precisa de apoio e que não tem possibilidade de pagar as comparticipações às associações", começa por explicar. "Quando falamos do apoio domiciliário, esquecemo-nos de que temos territórios no Alentejo onde, para levar um prato de sopa a uma família, se percorre 80 quilómetros." No sistema atual, o Estado atribui um valor médio, igual para todas as instituições, "seja esta de Lisboa ou de Portalegre". No entanto, João Dias sublinha que as despesas de atividade das instituições são diferentes e, por isso, os apoios que lhe são prestados também devem ser diferenciados.

Ainda assim, não considera que este seja "um modelo obsoleto", pois a maior parte do modelo funciona. "O desafio é arranjar a fórmula para que não seja igual para todos, mas justo", explica, defendendo um modelo que se adapte às questões territoriais, mas "também a respostas sociais específicas", que exigem despesas diferentes. João Dias garante que a CNIS, os seus parceiros, a união de Misericórdias e o Estado já estão a reunir-se para propor um novo modelo de financiamento nacional. Mas alerta que "este não é um problema de resolução fácil", pois envolve mais injeção de fundos na Segurança Social, para que se consiga aumentar o apoio às IPSS.

Apesar das mortes anunciadas, "não têm fechado IPSS", pois "há ali um ponto de não retorno que se tem conseguido evitar", explica o representante. Contudo, alerta: "Estes mais de 40% é um número muito preocupante e, não sendo agora de quem está em vias de fechar, pode ser efetivamente o número das que estão prestes a fechar." E reforça que o verdadeiro problema "não é fechar a IPSS, mas sim o que resulta desse fecho, porque há pessoas que deixam de ter atendimento".

A Câmara Municipal da Azambuja abriu recentemente uma conta solidária, que estará a funcionar até 31 de janeiro, para angariar fundos para a CERCI Flor da Vida.

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