Cultura
19 junho 2021 às 23h16

Rui Reininho. O "Stockhausen dos pobres" 

O vocalista dos GNR está de regresso em nome próprio com 20.000 Éguas Submarinas, um álbum inspirado pelo som do mar ​​​​​​​e no qual assume uma surpreendente faceta experimental, baseada na tradição budista das taças e gongos tibetanos.

Depois de uma primeira aventura a solo, em 2008, com o álbum Companhia das Índias, Rui Reininho está de regresso em nome próprio com 20.000 Éguas Submarinas, um trabalho surpreendente, pelo modo como se afasta do universo pop rock onde sempre vagueou, desbravando um novo caminho feito de experimentalismos vários, sons da natureza, eletrónica vintage e sonoridades budistas. Feito em parceria com o músico e produtor Paulo Borges, o disco é resultado de um trabalho de pesquisa e descoberta a dois, ao qual se juntaram outros músicos durante o caminho e que teve como figura tutelar a terapeuta musical holandesa Jacomina Kistemaker, de quem Rui Reininho se tornou discípulo nestes últimos anos. "Foi ela a inspiração que espoletou isto tudo", afirma nesta entrevista ao DN. Com edição física, em vinil, marcada para 17 de julho, 20.000 Éguas Submarinas já está disponível nas plataformas digitais e vai ser apresentado ao vivo pela primeira vez no dia 26 de junho, no festival Aleste, no Funchal, seguindo-se mais atuações no festival Jardins Efémeros, em Viseu, a 10 de julho, e na Culturgest, em Lisboa, e GNRation, em Braga, respetivamente a 10 e 11 de setembro.

Para quem está habituado a ouvir o registo mais pop rock dos GNR, este poderá ser um disco surpreendente, concorda?
Este disco é uma peça de artesanato urbano, que demorou algum tempo a moldar, porque à partida nem sabíamos muito bem o que ia sair dali. Foi algo que teve início nalgumas conversas com o Paulo Borges, até porque é preciso desmistificar a ideia de que isto é um álbum a solo, porque nem sequer tenho competência para isso e num trabalho deste género uma pessoa tem de se ouvir através dos outros.

Como é que surgiu essa vontade de trabalharem juntos?
Ele já tinha colaborado algumas vezes com os GNR, até porque é um músico bastante conhecido, apesar de não ter muitos trabalhos em nome próprio. Mas estamos a falar de uma pessoa com uma grande escola, ao nível da composição, que estudou com o mestre Tinoco. E foi a partir desse convívio quase diário, durante quatro anos da estrada, que surgiu uma certa cumplicidade, até ao nível dos gostos musicais. Um dos momentos chave foi quando tocámos na ilha de São Jorge, de onde o Paulo é natural e ele me falou de algumas gravações subaquáticas do canto das baleias, o que também criou entre nós uma grande empatia. Começámos então a fazer algumas captações de som com a Jacomina Kistemaker, a minha maestrina, como lhe costumo chamar. Trata-se de uma dama holandesa de 74 anos, quase do meu tamanho, formada em terapia musical, com quem costumo fazer uns retiros de terapia musical e que teve sempre a gentileza e a graça, em relação a mim, de nunca me querer evangelizar no que quer que fosse. É ela a influência que espoleta isto tudo.

Daí esse certo lado místico, que se sente ao longo do disco?
O único misticismo que aqui existe é a constatação de que somos todos feitos de vibrações e quando o nosso corpo começa a vibrar de maneira errada é porque há algum problema. Por exemplo, foi ela que me fez recuperar dos permanentes zumbidos nos ouvidos, resultantes do excesso de trinta anos de mau rock and roll (risos). Ainda há duas semanas estive num retiro com ela, no Centro da Ponta de Couso, na Galiza, também para lhe mostrar o disco, de que gostou muito. Disse-me que logo no primeiro tema, Ressonância Magnifíca, tinha conseguido abrir a minha tessitura de voz de uma nova forma e também achou muita piada ao título, que brinca um bocadinho com todo aquele misticismo.

Nunca se sentiu julgado, por essa ligação a algo tão mundano como o rock and roll?
Bem pelo contrário. Houve até uma ocasião em que abandonei um retiro para ir fazer um show com os estimados e queridos Gênêrrê ali na zona de Monção. Acabei por dormir lá e só voltei a aparecer de manhã, para a primeira aulinha, e foi esquisitíssimo porque a carga de rock and roll que eu trazia foi totalmente desestabilizadora para o resto do grupo. Digamos que tive de fazer uma limpeza, com um banho de mar e os gongos e tal, para me aquietar. Toda a gente sabe que a desinfeção e o jejum fazem bem e de certa maneira foi algo que também me salvou de outras tropelias.

Como são esses retiros?
São períodos muito agradáveis, em que estamos isolados do mundo por uns quantos dias e conseguimos repousar. Mas não se impõe nada a ninguém. O gongo toca de manhã e no período antes do pequeno-almoço cada um faz o que quer. Uns vão meditar, outros podem fazer uns flic-flacs à retaguarda e eu simplesmente anseio pelo pequeno-almoço, que é a minha refeição favorita. Depois começa tudo a entrar naquela sintonia musical e passam-se uns dias muito agradáveis, mas também extenuantes. Os próprios sonhos se alteram enquanto lá estamos. Mas sempre sem tentarem impingir qualquer manual de budismo ou de comportamentos. Eu infleti logo para a parte mais musical, que é a que mais me interessa e a dada altura comecei a pensar em eternizar toda esta experiência num raio de um vinil à minha pequena dimensão cósmica, cuja inspiração principal fosse aquela criatura que entrou na minha vida completamente ao acaso e a transformou por completo. No fundo, este disco não é mais que um agradecimento.

E como foi esse processo, já com o Paulo Borges, de pesquisa e descoberta de sons?
Foi isso mesmo, um processo de descoberta, em que ambos dávamos coisas novas a conhecer ao outro, naquilo a que eufemisticamente comecei a chamar de "Stockhausen dos pobres" (risos). Passámos horas a ouvir eletrónica antiga e outras coisas que não poderiam ter qualquer utilização prática na minha outra vida com os GNR, na qual também já levo 40 anos. Gravámos mais de duas horas de conteúdos e o mais difícil foi mesmo reduzir tudo a um álbum de 40 minutos. Curiosamente, alguns produtores daquelas áreas musicais mais modernaças já me pediram o beat dos Animais Errantes, para fazer um remixe. Em vez de um insulto, querem pegar naquilo e dar-lhe uma nova vida o que acho muito interessante.

Entretanto juntaram-se ao disco outros músicos, como é o caso do Pedro Jóia ou do Alexandre Soares, ele próprio um ex-GNR.
Além de amigo, o Alexandre é meu vizinho em Leça e como estou com ele regularmente aproveitei para lhe mostrar o disco. A reação dele foi muito curiosa, porque o achou ao mesmo tempo muito estranho de ouvir, mas também muito agradável. Foi aliás ele que me aconselhou a não meter bateria nem seção rítmica, "não é preciso, só vai estragar". Isso dito por uma pessoa com a sensibilidade dele, é maravilhoso. E ainda se ofereceu para tocar um bocadinho. Todo o disco foi aliás feito assim, com colaborações muito generosas de todos os que participaram. Do estúdio aos músicos, passando pela editora Turbina, que desbloqueou todo o processo do vinil, à equipa de vídeo, os artistas responsáveis pela capa, tive muita sorte com as pessoas com quem me cruzei. A dada altura foi preciso um depósito de dois mil euros, para avançar com o vinil e que paguei do meu bolso, porque queria mesmo ter o objeto físico. Mas também, o que é isso para um conhecido playboy como eu, que gasta isso em duas coca-colas (risos)? Mas felizmente tudo se resolveu e agora é uma felicidade estar aqui a contar esta história, só possível devido ao espírito que esta vida de trincheira tem.

Este é um projeto para manter no futuro?
Eventualmente, mas não de uma forma pretensiosa, porque tenho de ser sincero e reconhecer que a minha praia é o pop-rock e isto é como se estivesse a brincar ao tal "Stockhausen dos pobres". Mas permitiu-me ir buscar coisas antigas ou que tenho ouvido ao longo dos anos e perceber que, afinal, até faz algum sentido para outras pessoas é muito porreiro para mim. Afinal não era só loucura.

dnot@dn.pt