Cultura
19 junho 2021 às 22h56

Covid-19 cerca Lisboa

O historiador Valentino Viegas, que tem como tese de doutoramento "Uma Revolução pela Independência nacional nos finais do século XIV", respondeu ao desafio do DN e esboça aqui uma analogia entre alguns episódios da História nacional e a covid-19.

Valentino Viegas

Caros lisboetas, permitam-me que me apresente. Eu sou aquilo a quem chamam de novo coronavírus, SARS-CoV-2, também conhecido como Covid-19.

Deixem-me conversar convosco de forma sincera e honesta. Vou ser claro nas minhas pretensões para não haver ambiguidades sobre as minhas intenções. Terei muito prazer em esclarecê-las à medida que formos conversando.

Para não me acusarem de terem sido apanhados desprevenidos, começo por vos dizer que li o tratado da estratégia militar, conhecido como A Arte da Guerra, da autoria do chinês Sun Tzu, escrito vários séculos antes de Cristo, onde ensina que a suprema arte da guerra consiste em subjugar o inimigo sem o combater.

Sei perfeitamente que a Europa só conheceu esta importantíssima obra quando, na cidade de Paris, em 1772, o missionário jesuíta em Peking, padre J. J. M. Amiot publicou a sua interpretação.

A partir dessa altura, tal como se presume ter feito Napoleão Bonaparte, também os principais quadros militares portugueses, e até civis, devem ter lido essa obra-prima militar.

Gostei tanto dos seus treze capítulos, plenos de actualidade, que posso citar de memória passagens inteiras, como, por exemplo: "se conheceres o inimigo e te conheceres a ti próprio, numa centena de batalhas, nunca estarás em perigo; se conheceres mal o inimigo, mas se conheceres a ti próprio, as probabilidades de ganhar ou perder são iguais; se fores ignorante em relação ao inimigo e a ti próprio, estarás de certeza em perigo em todas as batalhas".

Confesso-vos, com toda a franqueza que me caracteriza, que, em termos de aspiração suprema, o meu desejo ultrapassa todas as ambições dos generais do mundo inteiro: pretendo, de forma inteligente, o domínio absoluto dos humanos existentes na face da terra, ou seja, desejo subjugar-vos com a vossa colaboração e sem vos combater abertamente.

Para atingir este desiderato irei semear a divisão, promover a discórdia e protestos e, se possível, levantamentos populares e até rebelião; aproveitarei as lutas intestinas e políticas, as desavenças, as intrigas, os erros cometidos, as contradições, os quiproquós, que caracteriza o vosso comportamento desde os primórdios, e os utilizarei como trunfos em meu benefício.

Claro que não sou o primeiro nem serei o último invasor a impor a sua presença, vários me precederam, mas eu conto com a intensa mobilidade existente entre vós para me multiplicar e assim atingir, de forma célere e generalizada, toda a população portuguesa.

Reconheço que a ligação que tenho convosco é uma relação de amor e ódio, em simultâneo, amor porque necessito de vocês para sobreviver e me reproduzir, e ódio porque vocês têm vontade própria e não se deixam dominar facilmente, sem oferecer resistência. Pior ainda, procuram envidar esforços e utilizam conhecimentos adquiridos para impedir que sejam vencidos, diligenciando vacinar, em tempo recorde.

Imagino que estarão a acusar-me de ter invadido a vossa cidade sem declaração de guerra. É verdade, sim senhor, que não declarei guerra, mas porventura serei o primeiro a tomar essa atitude?

Calculo que devem estar esquecidos, porque isso aconteceu há muito tempo, mas como vocês raras vezes aprendem com os vossos erros, vou recordar-vos alguns acontecimentos.

Em 6 de Dezembro de 1383, D. João, Mestre de Avis, acompanhado de um punhado de nobres, entrou nos paços da rainha D. Leonor Teles e assassinou o seu amante, o conde D. João Fernandes Andeiro, conde de Ourém, executando, na perfeição, a estratégica acção manipuladora montada por Álvaro Pais, que mobilizou e se serviu da cobertura do povo de Lisboa, apregoando que matavam o Mestre nos paços da rainha, quando sabia que era o Mestre que matara o conde Andeiro.

Após esse assassinato nos paços da rainha, outros se seguiram, tais como o do bispo D. Martinho, por ser castelhano, do prior de Guimarães e do tabelião de Silves, na Sé de Lisboa, a revolta popular, que começara a grassar nas ruas de Lisboa, transformou-se em revolução a partir do momento em que D. João, Mestre de Avis, é coagido pelo povo citadino a aceitar a sua eleição como Regedor e Defensor dos Reinos de Portugal e do Algarve.

Esta eleição foi ratificada, no dia seguinte, na Câmara do Concelho de Lisboa, com a presença de mesteirais, arraia-miúda, burgueses e alguns nobres, sob forte coacção popular e ameaças, de espada em punho, do tanoeiro Afonso Anes Penedo aos burgueses indecisos.

D. João, Mestre de Avis, homologa as reivindicações populares e justifica a aceitação do cargo dizendo que pretendia manter e defender a independência nacional, impedindo que o rei de Castela usurpasse o trono português e fosse rei de Portugal.

Contudo, de acordo com o contrato de casamento de Salvaterra de Magos, assinado pelo falecido rei D. Fernando de Portugal e pelos representantes do clero, da nobreza e do povo, D. João I, rei de Castela, por estar casado com D. Beatriz, filha do rei D. Fernando e da rainha D. Leonor Teles, era considerado legítimo herdeiro do trono português.

Conhecedor dos levantamentos populares tidos lugar em Lisboa e em outras localidades do país, após o falecimento do rei D. Fernando, ocorrido em 22 de Outubro de 1383, o rei de Castela manda convocar o seu Conselho em Póvoa de Monte Alvão e decide pugnar em defesa dos seus direitos, nem que fosse pela força das armas.

Aproveitando o pretexto da eleição de D. João Mestre de Avis, como Regedor e Defensor dos Reinos de Portugal e do Algarve, e tendo sido convidado pelo bispo da cidade da Guarda, D. Afonso Correia, chanceler da rainha D. Beatriz, pôde dar-se ao luxo de invadir Portugal, com menos de trinta homens, e ser recebido em solene procissão, com o bispo postado na dianteira.

Como espero ter comprovado, não fui o primeiro a invadir o vosso território sem declaração de guerra.

Perante a invasão estrangeira, sabem qual foi o vosso comportamento?

Não sabem, pois não? Eu explico: o mesmo que tem vindo a ser desde que também invadi Portugal. Querelas fúteis, divisão e falta de unidade nacional.

A rainha fugiu para Alenquer e depois para Santarém, levando consigo os membros governamentais e tentando criar um vazio de poder em Lisboa, convencida de que ainda seria capaz de dominar a situação.

O rei de Castela ia engrossando o seu exército e recebia homenagens de personalidades mais importantes do país, à medida que se encaminhava para Santarém.

O Mestre de Avis cria um governo revolucionário em Lisboa, o coração de Portugal, pois dizia-se que quem tivesse Lisboa seria dono do país.

Na fase inicial da revolução, de uma maneira geral, os estratos mais baixos do povo, isto é, os mesteirais, os assoldadados e os pobres vagabundos tomaram, sempre que a situação objectiva de cada localidade o permitia, o partido do Mestre de Avis, enquanto os mais ricos, os mais honrados e a maior parte do país tomou o partido da rainha e depois do rei de Castela, considerando válido o juramento de fidelidade e o contrato de casamento de Salvaterra de Magos. Para eles, a revolução era uma rebelião que tinha de ser esmagada.

Foi com a arraia-miúda, os ventres ao sol, os populares, os mesteirais e os menos honrados que se conquistaram os castelos e se sujeitaram cidades importantes como Porto, Évora, Beja e Portalegre.

Incapaz de dominar a situação, no dia 13 de Janeiro de 1384, em Santarém, a rainha D. Leonor Teles esquece todos os impedimentos e abdica do governo e do regimento a favor do seu genro, o rei D. João I de Castela.

A vocês, ignorantes lisboetas, que falam tanto mal de mim, digo-vos aquilo que aconteceu em Lisboa depois de terem sido cercados pelo rei de Castela por terra e pelo mar.

A vitória do vosso herói Nuno Álvares Pereira, na Batalha de Atoleiros, em 6 de Abril de 1384, apenas serviu para levantar o vosso moral, provar que os castelhanos não eram invencíveis, e admitir que a vitória final era possível.

Os mantimentos trazidos, pela frota, vinda da cidade do Porto, durou pouco tempo e só aumentou o número de bocas para se alimentar.

Desde que o invasor chegou ao Lumiar até ao levantamento do cerco, em 3 de Setembro de 1384, decorreram quatro meses e vinte e sete dias.

Durante todo esse período de tempo vocês não imaginam as insuportáveis privações que os vossos antepassados passaram na cidade cercada.

Para se enganar a fome comia-se pão de bagaço de azeitonas, queijo de malvas e raízes de ervas.

Nos locais onde se vendiam cereais, as crianças e os adultos revolviam a terra à procura de grãos de trigo e de milho e se por acaso encontravam algum metiam-no logo à boca, tamanha era a sofreguidão. Havia quem comesse ervas e bebesse muita água. De tanta fome, homens e crianças apareciam mortos e de barriga inchada.

Os catraios, que mendigavam pelas ruas ficavam delirantes quando recebiam côdeas de pão, pois na maior parte das vezes eram somente confortados com lágrimas de desgosto.

Assistindo a estes sofrimentos atrozes, eu admirei a resiliência dos vossos antepassados, fiquei condoído e tive pena daquelas crianças inocentes. Decidi ajudar-vos. Actuei como peste, ataquei e fui matando os castelhanos até obrigar o rei de Castela a levantar o cerco e regressar ao seu país, razão pela qual o vosso Fernão Lopes pôde escrever que nenhum português era contaminado pela peste, esta apenas atacava os castelhanos.

Mas como vocês são ingratos, não sabem reconhecer os erros e são incapazes de corrigi-los eu, que vos salvei no passado, decidi agora continuar com o cerco de Lisboa.

Não pensem que, pelo facto do vosso Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, ter afirmado peremptoriamente que, no que dependia dele, não haveria volta atrás no confinamento, por o Vice-almirante Henrique Gouveia e Melo andar de camuflado, dizendo que o país está em guerra, ou porque António Guterres foi reeleito como Secretário-geral da Organização das Nações Unidas por unanimidade e aclamação, me impressionam e metem medo.

As mutações e as novas variantes, com que me apresentei, são apenas uma pequeníssima amostragem daquilo que posso fazer.

Caros lisboetas, por estar farto e cansado dos vossos abusos, ficam avisados de uma vez para sempre: ou vocês deixam de ser egoístas, tomam juízo e trabalham em prol do bem-estar da colectividade, deixando de ser recorrentes na violação da harmonia que têm por obrigação de preservar em colaboração com a natureza, em vez de actuar contra o planeta Terra como fazem cada vez com mais intensidade, ou eu farei da vossa vida um inferno.

O cerco que vos montei é apenas um ínfimo sinal daquilo que vos aguarda.

A decisão é vossa, depois não digam que não vos avisei!