João e o alemão

A ligação desligou no ponto e o alemão, estremunhado de sono, nunca soube se era mesmo João ou a sua assombração.

Teve por aí um alemão, Marc Fischer, que andou fazendo muitas perguntas sobre João. Saiu de Berlim de coração destroçado, em desgosto de amor, e aterrou no Galeão à procura de João. De João Gilberto Prado Pereira de Oliveira, João de Juazeiro, João Gilberto, um "sujeito conhecido", como lhe chamou Bolsonaro, que nasceu em 1931 e morreu há dias, no Rio de Janeiro. Depois, o alemão escreveu um livro, um livro que não é bem sobre João, mais sobre sua obsessiva demanda, e por isso se chama Ho-ba-la-lá. À Procura de João Gilberto (São Paulo, 2012), obra recentemente adaptada a documentário que se estreará entre nós no próximo 3 de Agosto. As páginas do livro viram-se sozinhas, como um policial, na busca de resposta à central questão: o alemão viu ou não João?

Em torno de João giraram sempre muitas lendas e rumores, histórias de alucinação. Que vivia sozinho no seu apartamento no Leblon, recluso como um eremita, que não gostava da luz do dia nem de ver pessoas humanas. Diziam que falava só com gatos e com mortos (mas com mortos também Tom Jobim falava, não é coisa especial). Diziam que João uivava para a Lua. Que tocava dez horas por dia, sempre vestido de pijama. Que cobrava - e nisso não era doido - um milhão de dólares por dois ou três concertos. Bilhetes vendidos com meses de antecipação, salas lotadas, tremenda excitação: no final, João cancelava a prestação. Era um ser bondoso e imensamente generoso, mas consigo transportava uma maldição. Dos poucos que conseguiam aproximar-se dele, muitos acabavam enlouquecendo.

Com o alemão passou-se o mesmo. Virou o Brasil do avesso na pista de João Gilberto. Queria que João tocasse Ho-ba-la-lá só para ele, em trinado privado. Vasculhou o Rio à procura do menor indício do músico. Esteve na lendária loja de discos e livraria Toca do Vinicius, falou com o dono, e, claro, no antigo Veloso, hoje chamado Garota de Ipanema. Foi aí que, em 1962, Vinicius e Tom avistaram a musa da canção, a adolescente Helô Pinheiro, na altura uma menina lindíssima nos seus 15 anos, por sinal descendente de antigas linhagens portuguesas, de seu nome completo Heloísa Eneida Menezes Paes Pinto Pinheiro. Garota de Ipanema, segundo dizem, é a música mais tocada em todo o mundo. Curioso é também o nome do Veloso. Foi aberto no ano de 1945 por um português pacato de nome Raul Veloso. Era uma mercearia comum, que vendia de tudo, até pinga e cerveja. Logo acorreu a freguesia, ruidosa. Entre a clientela, muitos alunos do capoeirista Sinhozinho. Briga a toda a hora, está visto. Avesso a essas confusões, o portuga Veloso passou o estabelecimento em 1950, mas o nome estava dado eternamente. E Tom nunca gostou que em 1967 tivessem mudado a designação do botequim para o título da sua canção, continuando sempre a chamar-lhe Veloso. Hoje há turistas que perguntam se se trata de alguma homenagem a Caetano...

Na sua demencial pesquisa, Marc Fischer foi até falar com um homem baixinho e grisalho, dono do restaurante Couve-Flor, cozinheiro a quem Tom e Vinicius deram o nome de Garrincha, como o futebolista, e que durante anos a fio serviu João na maior discrição. João ligava para a churrascaria onde Garrincha cuidava dos grelhados, o restaurante Plataforma, perguntava pela família, longa conversa de quase uma hora, queria saber de tudo quanto havia para comer, mas no final encomendava sempre o mesmo steak ao sal, que um rapaz ia deixar na porta do seu apartamento, sem nunca avistar o génio.

Convites para casa de João? Raríssimos. Por lá passavam o malogrado Tim Maia, a ex-mulher Miúcha e a filha de ambos, Bebel, pouco mais. O professor de viola e produtor de songbooks Almir Chediak trabalhou com João Gilberto durante três anos, transformando em partituras as complexas harmonias do mestre. Em três anos de trabalho juntos, nunca o viu. Chegava semanalmente à porta do apartamento, trocavam de partituras pela frincha da porta, Almir entregava as novas, João devolvia as já corrigidas pelo seu ouvido ímpar. Para o livro Chega de Saudade, João aceitou ser entrevistado por Ruy Castro, o seu maior biógrafo ou, melhor dizendo, o maior biógrafo de toda a Bossa, que brilha semanalmente nas páginas deste jornal. Jamais se viram. João falou com Ruy ao telefone, durante horas, mas nunca lhe franqueou as portas de sua casa. Aliás, João era viciado no telefone, que, além da música, constituía o seu único meio de comunicação com o mundo. Não celebrava a chegada do Ano Novo nem comemorava o dia do seu aniversário, mas sabia de cor as datas de nascimento das filhas de Garrincha, o mestre do steak ao sal. Em 2004, foi pai de uma menina, Luísa Carolina. A mãe, Cláudia Faissol, era filha de um amigo antigo, e seu dentista. Foi um escândalo na família Faissol, clã tradicional. Cláudia queria fazer um documentário sobre João e apaixonou-se pelo objecto de estudo. Daí nasceu Luísa Carolina, Lulu, que o pai via apenas aos fins-de-semana. Durante a semana, não podia ser, João era perigoso. Deixava a criança acordada a noite toda, para ouvir os pássaros na madrugada. Não conseguia sequer entender que a filha precisava de ir à escola, de aprender a ler e a escrever.

E o mar? Toda a Bossa é um hino aos oceanos. Vinicius nadava, menino ainda, na ilha do Governador. Tom fazia o mesmo na lagoa Rodrigo de Freitas e, mais tarde, bracejava do Arpoador até ao Leme. Menescal era campeão de caça submarina, as músicas que fez com Bôscoli (O Barquinho; Nós e o Mar; Ah! Se Eu Pudesse; Você; A Morte de Um Deus de Sal) falam amiúde do mar. João Gilberto? Consta que nem nadar sabia. O mais perto que o viram do mar foi no areal de Copacabana, vestido dos pés à cabeça, a tocar viola em velhos retratos. Durante décadas, nem sequer viu a luz do sol, era animal nocturno, fugidio, que acabou os seus dias demente e doente, afundado em dívidas, com os filhos envolvidos em intermináveis disputas judiciais.

Conversando com Roberto Menescal, este avisou Marc Fischer: "João é perigoso. Tem alguma coisa de sombrio. De repente, é capaz de você se tornar um amaldiçoado para sempre". No Japão, onde são loucos por Bossa Nova, houve um cidadão chamado Toshimitsu Aono que era doido por João, e que ouvia os seus discos no mais puro vinil, para não perder uma nota só. Foi em casa dele, em Tóquio, que Marc Fischer escutou pela primeira vez os acordes de Ho-ba-la-lá, ficando enfeitiçado para todo o sempre. Outro japonês, um produtor musical de sucesso, conseguiu levar João ao Japão. Casas cheias, o público aplaudindo de pé, sem parar, durante infindáveis 25 minutos, João sempre fazendo mil e uma exigências (onde quer que se apresentasse, os microfones tinham de ser da marca austríaca AKG, modelo C414). A tournée foi um êxito e Menescal, que tinha sido o intermediário, ligou para Tóquio a felicitar o japonês. Tentou várias vezes, acabou por conseguir falar com a mulher do produtor. Logo após a partida de João, contou ela, o marido tinha tido um enfarte de desgosto. Tornou-se alcoólico assim que lhe deram alta no hospital, hoje é um trapo que vagueia pelas ruas de Tóquio. Era o que dava chegar perto de João. "A loucura dele é uma loucura suave, quietinha e, por isso mesmo, a mais perigosa que existe", disse Menescal a Marc Fischer.

Nem isso demoveu o alemão da sua busca. Às tantas, andou no encalço do mestre Parahamsa Yogananda ou, melhor, da Self-Realization Fellowship, que aquele fundara nos Estados Unidos. Yogananda escreveu em 1946 um bestseller, Autobiografia de um iogue, livro que João Gilberto considerava o melhor do mundo. Pelo menos, assim o referiu um dia a Nelson Motta, seu amigo de sempre. Em Noites Tropicais Motta não conta o episódio, mas fala de algo muito importante para compreender João Gilberto e a sua música. Algo estranho, inesperado. João só podia cantar assim, naquele seu timbre baixinho e envolvente, graças a uma coisa simples: o microfone. Pode parecer bizarro, mas faz sentido. João sempre desdenhou os que cantavam alto, fazendo do potencial vocal o seu trunfo. Eram exibicionistas, dizia, e arte não é exibicionismo. Por isso, cantava em voz contida. Para conseguir aquele jeito manso, só dele, treinou horas e horas no quarto de banho da casa da irmã, em Diamantina, onde se refugiou uma temporada larga de oito meses. João era capaz de estar dez horas seguidas a tocar a mesma nota: o eco dos azulejos vidrados das paredes da casa de banho devolvia, na acústica perfeita, os acordes repetidos à exaustão. Escusado será dizer que a vizinha do andar de cima acabou doida. Acontece a muitos que são afectados pelo "joãogilbertianismo radical", expressão que Caetano Veloso, também ele viciado em João ("meu mestre supremo", "redentor da língua portuguesa"), usa várias vezes na sua autobiografia, Verdade Tropical. João cantava baixinho, para não acordar a sobrinha, filha da irmã Dadainha, e, sobretudo, para não abafar o som do violão. Nas gravações nos shows ao vivo, só o microfone garantia a transmissão daquele tímido ciciar, que nos finais de 1950 alguns tiveram por desafinado e, pasme-se, efeminado.

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João fugiu entre os dedos do alemão, como o amor quebrado que levara Marc Fischer em busca do músico excêntrico. Marc dava tudo no mundo - até a vida! - para ouvir João cantar só para si Ho-ba-la-lá. Já no final da extenuante jornada, pronto a embarcar para a Alemanha, tocou o telefone na casa do alemão. Altas horas, madrugada entrada. Do outro lado da linha:

Dip, n"diu
Bop n"bo
Diu, n"diu
Nbop n"bo
É amor o ho-ba-la-lá
Ho-ba-la-lá uma canção
Quem ouvir o ho-ba-la-lá
erá feliz o coração
O amor encontrará
Ouvindo esta canção
Alguém compreenderá
Seu coração
Vem ouvir o ho-ba-la-lá
Ho-ba-la-lá
Esta canção

A ligação desligou no ponto e o alemão, estremunhado de sono, nunca soube se era mesmo João ou a sua assombração. Sem saber se tinha ouvido João, ou não, Marc Fischer regressou à Alemanha. Suicidou-se em Berlim, aos 41 anos. Uma semana antes da publicação do seu livro.

Ho-ba-la-lá. Em memória de João Gilberto (1931-2019)

Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia

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