Internacional
19 março 2023 às 00h00

"Nós indianos estamos numa posição única em que podemos falar com todos, seja China, Rússia ou EUA" 

Antiga embaixadora em Lisboa e antiga vice-Conselheira Nacional de Segurança da Índia, Latha Reddy esteve em Portugal para a conferência "Segurança: da Europa ao Indo-Pacífico", organizada pelo Clube de Lisboa, e conversou com o DN sobre as implicações globais da guerra na Ucrânia e sobre a posição do seu país em relação ao choque entre Ocidente e Rússia.

Em Portugal, e no Ocidente em geral, muita gente se questiona por que razão a Índia se tem abstido nas votações na ONU condenatórias da Rússia pela invasão da Ucrânia. É ainda um sentimento de agradecimento à Rússia/URSS pelo apoio tradicional à Índia ou é uma posição também motivadas por interesses atuais?
Acho que é uma mistura. É evidente que temos um relacionamento muito longo e conhecido com a Rússia, mas também acho que há um interesse atual, por exemplo, na importação de petróleo - nem mesmo a Europa conseguiu parar completamente as importações de petróleo russo. Para nós, é vital esse abastecimento e os russos aceitam o pagamento em rupias, algo que é benéfico para a economia indiana. É evidente também que temos um tratado de amizade com a Rússia há muitos anos e temos interesse, claro, na parte do fornecimento de armamento, especialmente porque muitos dos nossos equipamentos de defesa são de fabrico russo. Ou seja, temos de continuar a comprar as peças sobresselentes e tudo mais à Rússia. Mas além desses interesses, e o nosso ministro dos Negócios Estrangeiros disse isso recentemente, achamos que não vale a pena uma solução através de sanções e do uso da força. Precisamos de diplomacia e realmente de uma solução que dê paz que perdure.

A posição da Índia neste momento é de que devia haver negociações diretas entre a Ucrânia e a Rússia?
Exato, mas não só entre a Ucrânia e a Rússia, mas também com outras partes que possam representar diversos interesses, como a NATO, os Estados Unidos. Temos de reconhecer que a Rússia, de certa forma, também foi provocada com o alargamento da NATO. Eles disseram várias vezes que se chegasse à Ucrânia seria um problema, porque é o país mesmo junto da Rússia. E outro ponto é a questão do porto de águas quentes. Há realmente razões estratégicas pelas quais a Rússia não considerou esta expansão da NATO aceitável a partir de um certo ponto. Penso que entendemos esse ponto de vista, também pensamos nisso em termos estratégicos nacionais.

Mas, na sua opinião, qualquer tipo de negociação para uma paz duradoura tem de incluir os Estados Unidos ou o Ocidente?
Sim, desde que também deixem que a Rússia e a Ucrânia negoceiem entre si, sem demasiadas intervenções de outras potências. Como sabe, nos assuntos internacionais, quando as grandes potências se envolvem, por vezes não é fácil de resolver. É preferível deixar os países resolverem os seus problemas, mas claro que percebo que invadir outro país não ajuda propriamente. Mas acho que temos de ver o que está para trás de tudo isto, pois havia uma espécie de acordo de cavalheiros de que a NATO não se expandiria além de um determinado ponto assim que a Alemanha estivesse reunificada, algo que não foi honrado. Parece-me que a questão é que os países exigem democracia e essa democracia deve ser-lhes dada. E a Índia é um país democrático, mas não sentimos que é nosso dever levar a democracia ao resto do mundo.

Não concorda com a ideia de uma coligação de democracias contra os outros, os países autoritários?
Não, não concordo. Acho que todas as formas de governo são válidas e temos de entender que os países têm o direito de escolher os seus próprios modelos de governo. Por exemplo, já todos concordámos em fazer acordos com países que têm ditaduras, é a maneira como a política funciona, acontece várias vezes. Não podemos ditar como os outros países são governados e a política da Índia sempre foi que perante qualquer governo legítimo de um país e temos de o reconhecer até que mude. Acho que temos de aprender a respeitar todos os tipos de governos, não apenas as democracias. Mesmo que concorde pessoalmente com os princípios democráticos de que as pessoas têm o direito de escolher os seus próprios líderes.

A Índia faz parte do QUAD, uma espécie de aliança informal que também engloba os Estados Unidos, o Japão e a Austrália. Na QUAD é possível ver as características de uma aliança de democracias, mas parece-lhe que o principal motivo para a sua criação, e a participação da Índia, é a oposição à ascensão da China ?
Não, não me parece, até porque não nos podemos esquecer de que a Índia participa no acordo de cooperação de Xangai com a China, temos também apoiado o Banco Internacional de Infraestruturas. Nós estamos juntos no RIC Forum - Rússia, Índia e China -, tal como estamos no QUAD e temos uma relação muito saudável com os Estados Unidos. Acho que nós indianos estamos numa posição única em que podemos falar com todas as partes, seja China, Rússia, Europa ou Estados Unidos. Claro que temos os nossos problemas com a China, mas nunca rompemos as relações diplomáticas.

Pensa que é possível um diálogo entre Índia e China, apesar das disputas territoriais nos Himalaias?
Sim, é, tal como no passado já tivemos vários diálogos muito bem-sucedidos. Agora pode ser mais difícil, mas não significa que não possa voltar a acontecer no futuro, por isso, acredito na diplomacia e na paz.

A Índia é uma líder do chamado Sul Global?
Há muito debate sobre o que é o Sul Global, mas é verdade que o Sul Global é agora um grupo de países com vários interesses e com vários níveis de desenvolvimento, e a Índia será provavelmente considerada um país muito avançado no Sul Global. Mas, igualmente, a Índia é ainda um país em desenvolvimento, ainda não tem uma rede de segurança social robusta, ainda temos centenas de milhões de pessoas que vivem na pobreza e é pobreza a sério.

Mas há um aumento da qualidade de vida nos últimos anos, certo?
Sim, há uma classe média crescente, mas acho que a Índia é ainda muito desigual. Há pessoas muito ricas, há pessoas muito pobres, há uma classe média crescente, mas é uma mistura muito grande a nível de desenvolvimento. Não acho possível dizer que não há Sul Global, mas também não me parece possível negar que há diferenças de desenvolvimento entre diferentes países no Sul Global e acho que a Índia gostaria de continuar a ajudar naquilo que já começámos a fazer. Mesmo dentro do Sul Global há países que têm necessidades ainda mais sérias ao nível do desenvolvimento do que nós. Estamos sempre comprometidos com isso, aliás, temos um programa que se chama ITEC, de cooperação técnica e económica, temos outro que se chama Development Partnership Assistance e estamos sempre à procura de novos projetos noutros países que precisem de ajuda.

Este ano, a Índia torna-se oficialmente o país mais populoso do mundo, ultrapassando a China. Isto é apenas simbólico ou há aqui uma grande oportunidade para o país ao ter tantos recursos humanos, mais de 1400 milhões, em grande parte jovens?
Sim, podemos ter uma oportunidade, mas é um grande desafio. Porque a menos que geremos empregos suficientes, a menos que a economia cresça suficientemente, a menos que investamos na educação e no emprego, o dividendo demográfico pode ser facilmente transformado num pesadelo demográfico. Temos um grande número de juventude semi-educada ou não educada de todo, por isso, acho que temos de equilibrar isto, temos de ser mais sustentáveis neste aspeto, para evitar perturbações sociais. Temos de estar bem preparados, temos de investir muito num bom sistema de saúde, em boas escolas públicas e num sistema de segurança social para os mais pobres.

Em termos de política externa, quando o Partido do Congresso, de certa forma socialista, estava no poder, a aliança tradicional com a União Soviética/Rússia fazia certo sentido, mas com o atual governo do BJP é cada vez mais pró-negócio, mais liberal na economia. E igualmente com tantos emigrantes indianos na América a tornarem-se bem-sucedidos, há alguma mudança atualmente no sentido de a Índia estar mais próxima dos Estados Unidos ou estas opções de políticas de negócios estrangeiros são independentes do partido no poder?
Acho que as grandes opções de política externa não dependem do partido que está a governar, mas está certo quando diz que as relações com os Estados Unidos e o Ocidente se tornaram mais fortes ao longo dos últimos anos. Não esquecer que houve uma altura anterior, nos anos 50 e 60, em que houve relações também muito próximas da Índia com os Estados Unidos, mas depois as posições tornaram-se cada vez mais diferentes. A Índia era um país muito pobre, tínhamos imensas necessidades a vários níveis, mas atualmente somos vistos como um mercado muito atrativo, não apenas para bens de consumo, mas também para recrutar pessoas para as áreas de serviços. Na realidade, temos uma grande quantidade de pessoas altamente treinadas nas áreas de medicina, engenharia e outras, e neste momento há uma grande demanda pelas nossas pessoas especializadas um pouco por todo o mundo. Essa é uma grande vantagem que temos agora, mas também, e esse é o paradoxo da Índia, temos o outro lado das desvantagens. Acho que quando dizemos que queremos fazer parte do Sul Global ou ajudar o Sul Global somos sinceros, mas também queremos alianças com as grandes potências e sentarmo-nos na mesa grande e somos igualmente sinceros em relação a isso. Algumas pessoas podem ver isto como uma espécie de estratégia múltipla, mas diria que isto é apenas proteger os nossos interesses nacionais. Porque em diferentes contextos, precisamos de diferentes estratégias.

A Índia é mesmo um país único!
Sim, é muito especial. Quase tudo o que se possa dizer sobre a índia, o oposto também é verdade.

A Índia é uma potência nuclear e há algum receio de que esta crise na Ucrânia possa resultar num conflito global em que se utiliza armamento nuclear. Há consciência desse risco na Índia?
Há sempre preocupações relativamente às armas nucleares, seja entre que países for. Mas penso que ter armas nucleares age como uma espécie de dissuasor, porque toda a gente sabe qual é o preço a pagar pelo país que as use e pelos países à volta. Pessoalmente, penso que funciona das duas formas. Eu própria já trabalhei na Agência Internacional de Energia Atómica e sei que vários países se juntam e falam sobre a energia nuclear e como a gerir através de acordos e acho que é por isto que o multilateralismo é tão importante.

leonidio.ferreira@dn.pt