19 JAN 2019
19 janeiro 2019 às 06h23

"Orrrderrr!", começou a campanha europeia

Ferreira Fernandes

Através do YouTube, faz grande sucesso entre nós um florilégio de gritos de John Bercow - vocês sabem, o speaker do Parlamento britânico. O grito dele é só um, em crescendo, "order, orrderr, ORRRDERRR!", e essa palavra quer dizer o que parece. Aquele "ordem!" proclamada pelo presidente da Câmara dos Comuns demonstra a falta de autoridade de toda a gente vulgar que hoje se senta no Parlamento que iniciou a democracia na velha Europa. Ora, se o grito de Bercow diz muito mais do que parece, o nosso interesse por ele, através do YouTube, diz mais de nós do que de Bercow. E, acreditem, tudo isto tem que ver com a nossa vida, até com a vidinha, e com o mundo em que vivemos.

O grito, uma só palavra, dizia várias coisas. Saímos? Ficamos? Alguém que me dê a mão, pliiizzz... No fundo, Bercow dizia sempre o mesmo, um grito desamparado de um perdido parlamentar inglês. Pois apesar disso, nós precisámos do carimbo do YouTube - "atenção, isto é viral!" - para percebermos o drama que passou sob os nossos olhos, em dois dias seguidos de votações narradas em jornais, telejornais e comentadores. Está aí a essência do Brexit, aquilo de que nós não percebemos nada, e os britânicos ainda menos. É que nós, e os britânicos também, só vamos lá empurrados pelo espetáculo. Sem essa ajuda não percebemos o mundo, nem mesmo quando os nossos interesses essenciais estão em jogo.

No domingo passado, o Times de Londres publicou um texto de John Major. Lembro, o Times fez campanha pró-Brexit no referendo de 2016 e Major foi o sucessor de Thatcher, é político conservador, do partido que fez o referendo que levou a toda esta confusão. Escreveu ele, agora: "Estamos nesta triste situação só por causa das lamentáveis promessas feitas pelos políticos pró-Brexit." De facto, Major repetiu o que os dois campeões da saída britânica da UE, Nigel Farage e Boris Johnson, haviam admitido, logo no dia seguinte ao referendo: tinham mentido na campanha.

John Major escreveu: "Pelo menos agora nós estamos em melhor posição para julgar o que deixar a União Europeia pode significar para o Reino Unido." E acrescentou: "Mesmo o governo [de Theresa May] admitiu que - seja qual for a forma do Brexit - cada parte do Reino Unido ficará pior e o nosso país também será mais fraco e menos influente." Pior, mais fraco e menos influente... Escreveu Major, agora, e muitos outros o disseram já em 2016. E decidiu-se isso alegremente, sem um levantamento nacional contra o nacional tiro no pé.

O referendo decidiu-se com as mentiras do pró-Brexit e decidiu-se de forma ligeira por parte de todos - políticos venais, políticos distraídos, eleitores mal informados e povo errado (sim, até há povo maioritariamente errado). Hoje sabe-se que sair da UE não é um convite para tomar chá, tem custos. Um divórcio tem custos, como todos os contratos (a feitura deles e o desfazer) têm. Hoje, já todos sabemos que o Brexit paga-se caro, e o Brexit duro paga-se duramente caro. Acresce - e Major sugere-o quando refere "cada parte do Reino Unido" - que a saída britânica da Europa prejudicará particularmente parte do país (a Irlanda do Norte) na sua fronteira com a Europa (a República da Irlanda). E que o Brexit poderá levar parte do país (a Escócia) a sair do Reino Unido e a tentar regressar à Europa...

O tiro do pé tornou-se um desporto popular e mundializado, e o Brexit é o seu profeta. Mas já que a estupidez se tornou moda, aproveitemos o grito dramático dos outros, "order, orrderr, ORRRDERRR!", para nos sobressaltarmos à nossa medida. Em maio, haverá eleições europeias. Era bom que cada partido e candidato português se referende perante os eleitores. "Sou contra a União Europeia" ou "sou a favor". É um mínimo sabermos quem nos quer pior, mais fracos e menos influentes.