19 ABR 2021
18 abril 2021 às 22h15

"Como poderia Pessoa ter escrito textos bastante misóginos se viveu rodeado de mulheres cultas?"

Fernando Pessoa tem inspirado muitos autores e Sara Rodi não escapou à atração. Um retrato sobre o poeta e as mulheres da sua vida, com o foco da influência - ou não - na sua curta vida.

Sara Rodi aceita que em O Quanto Amei - Fernando Pessoa e as mulheres da sua vida, o seu mais recente livro, "salta à vista um olhar e abordagem marcadamente femininos". Tudo começou por estar "curiosa com o lado místico" do poeta e nessa busca ter encontrado uma fotografia em que Pessoa está rodeado de um conjunto de mulheres. Que importância teve cada uma destas mulheres na sua vida e obra, que outras foram também decisivas no seu percurso, foram algumas das perguntas que fez. A resposta está nesta narrativa de 455 páginas e na decisão que tomou: "Não havia muita coisa escrita sobre isso, até porque a maioria destas mulheres foi "invisível". Não tiveram obra que se visse, cargos que as distinguissem - aquilo que, ainda hoje, consideramos como importante, esquecendo como os afetos, o cuidado, os conselhos, o amor, podem também virar o mundo - ou pelo menos o mundo de alguém - do avesso."

Diz que "Fernando Pessoa viveu a vida inteira rodeada de mulheres." Era um "especialista" no relacionamento com o sexo feminino?
Não creio. Diria até o contrário. Consta que se inibia na presença das mulheres, embora fosse sempre um cavalheiro. E um romântico, quando se apaixonava. Mas tinha uma relação muito próxima com as mulheres da família: a mãe, as avós, a tia, as tias-avós, as primas, irmãs, sobrinhas... Fernando viveu, realmente, rodeado de mulheres, e eram todas elas mulheres fortes, cultas, que seguramente o inspiraram, orientaram, cuidaram. Não sei se Fernando Pessoa alguma vez terá refletido sobre a importância de cada uma delas na sua vida, mas no meu romance eu forço-o a essa reflexão através da personagem (fictícia) Alice, a enfermeira que olha por ele nos últimos dias da sua vida.

Se fosse um homem o autor deste livro, o resultado seria diferente?
Não sei se existe propriamente uma linguagem feminina e masculina, isso nem sempre é evidente, mas neste caso acho que salta à vista um olhar e abordagem marcadamente femininos, sim. Em primeiro lugar, porque me interessei pelas mulheres, enchi o livro de mulheres. Em segundo porque, sendo eu também mulher, senti na pele as dores, as lutas, as paixões e inquietações dessas mesmas mulheres. Não sei se um homem sofreria como eu, que sou mãe, as inquietações da mãe de Fernando Pessoa, tentando que o filho fosse feliz; não sei se compreenderia tão bem os conselhos insistentes (tantas vezes também manipuladores) das tias; ou o desânimo de Ofélia, quando sentia Fernando a fugir ao compromisso. Também não sei se algum homem sentiria tão profundamente o esquecimento e desprezo a que foram votadas várias mulheres escritoras daquele tempo, que eu convoquei para este livro. A verdade é que pus nele muito da mulher que sou e a herança que carrego, de tantas mulheres que me antecederam.

Com tanta bibliografia sobre Pessoa, foi grande a dificuldade para encontrar um novo ângulo para o romance?
Não andei propriamente em busca de um ângulo. Sou fascinada pela obra de Fernando Pessoa há muito tempo, mas não me ocorreria escrever um livro sobre ele se esse mesmo ângulo "não me tivesse procurado". Andava na altura curiosa com o lado místico de Fernando Pessoa, depois de me ter cruzado com a famosa carta que ele escreveu à sua tia Anica, contando-lhe as suas experiências mediúnicas. Procurei mais sobre esta tia e deparei-me com uma fotografia em que Fernando Pessoa, ainda jovem, está rodeado de um conjunto de mulheres - a tia Anica, a avó Dionísia e as quatro tias-avós, com quem Fernando Pessoa viveu e conviveu quando veio de Durban para Lisboa

Esta foi a primeira opção para o rumo do livro ou mudou devido à investigação?
O livro teve muitas versões. No centro estiveram sempre as mulheres, isso não mudou, mas no decorrer dos anos fui descobrindo outras mulheres que se foram juntando ao livro: Madge, a paixão inglesa; a fogosa Hanni, amante de Aleister Crowley; as vizinhas Virgínas; e outras que não sei se se cruzaram com Pessoa, mas que eram figuras do seu tempo, como as Madames Blanche, dona de uma famosa casa de prostituição, a vidente Brouillard e Lacombi, que abria as portas da sua casa à mais diversas experiências na área da parapsicologia, Maria Veleda entre outras feministas, Judith Teixeira e várias escritoras... Já tinha mais de quinhentas páginas escritas, sendo que cortei algumas quando me ocorreu a criação da personagem Alice. Não podia ser eu a interpelar Pessoa, precisava de alguém que o fizesse por mim. Esta enfermeira que o acompanhou nos últimos dias de vida, e que não consta que tenha existido, ajudou-me, já na reta final, a dar forma e orgânica a esta história.

A pergunta impossível de fugir: qual a mulher mais importante para o poeta?
Se tivesse de escolher apenas uma, escolheria a mãe. Fernando Pessoa foi o primeiro filho de Maria Madalena, e acompanhou o seu sofrimento quando ela perdeu o marido e depois um filho pequeno; quando ela, por dificuldades financeiras, teve de vender parte da mobília e mudar-se para um apartamento mais modesto; quando ela conheceu João Miguel Rosa e se mudou para África, ponderando se levaria consigo, ou não, o pequeno Fernando... Também sofrendo todas estas perdas e revés, que terão deixado as suas marcas na personalidade de Fernando Pessoa, imagino-o como espetador da mãe, a seguir-lhe todos os movimentos, a tentar compreendê-la e a tentar ser importante para ela. Mesmo quando regressou a Lisboa e a distância se impôs entre eles, imagino-o sempre a questionar-se sobre o que a mãe acharia disto ou daquilo, culpando-se por não ser o filho perfeito, bem-sucedido, com uma profissão estável, casado, que a mãe gostaria que ele fosse ou, pelo menos, que ele achava que a mãe gostaria.

Se tivesse casado com Ofélia, a história de ambos teria sido menos mítica do que aquela em que se tornou ao longo dos tempos?
Acredito que sim. Ofélia seria, como tantas outras mulheres casadas com os amigos de Fernando Pessoa, alguém invisível, cujo nome constaria hoje na Wikipedia por ter casado com quem casou, e ter sido mãe dos seus filhos. É possível também que as cartas trocadas entre eles nunca tivessem sido conhecidas, porque a história deles também não suscitaria a mesma curiosidade ou preservá-la-iam de outra forma. Perguntei muitas vezes, enquanto escrevia, quem teria sido Pessoa se tivesse casado com Ofélia. Se ela tivesse olhado por ele, como tanto queria, deixando-o cumprir a sua obra. A resposta não é simples. Talvez Fernando Pessoa tivesse vivido mais tempo. Talvez tivesse alcançado outra serenidade. Mas teria escrito aquilo que escreveu? Seria hoje aquilo que é? Nunca o saberemos...

Há na vida emocional de Pessoa uma mulher desconhecida?
Madge Anderson foi uma boa surpresa para mim. Quem me falou dela foi o historiador José Barreto, que lhe chamou mesmo "a última paixão de Pessoa" num artigo de 2017. Era uma mulher muito diferente de Ofélia, diria que mais parecida com Pessoa do ponto de vista intelectual, e tudo leva a crer que ele terá equacionado se seria a mulher da sua vida. As famílias de ambos também gostavam deste relacionamento, pois Madge era cunhada de um dos irmãos de Pessoa. Se o poeta não tivesse morrido prematuramente, a história deles pudesse ter outro desenvolvimento.

A visão sobre Pessoa tem vindo a mudar a cada ano. O Quanto Amei vai alterar a perceção sobre ele?
Ainda é cedo para perceber que impacto este livro poderá ter - se é que terá algum. Só posso ainda falar das reações que me têm dado os primeiros leitores, sempre com uma tónica comum: a descoberta de um lado mais humano de Pessoa, que o torna mais próximo e cativante. Este livro não é para quem investiga Pessoa, quando muito poderão achar curiosa a abordagem, mas a verdade é que a maioria dos leitores sabe muito pouco sobre aquele que é um dos expoentes máximos da nossa literatura. Conhecerá aquilo que estudou no ensino secundário e, é provável, que nem guarde boas memórias desse tempo. Se o livro conseguir aproximar os portugueses do poeta, gerando uma maior curiosidade sobre a sua obra, já terá cumprido um bom papel.

Citaçãocitacao"Pessoa viveu num período muito rico da história da mulher em Portugal. Nele surgiram diversas escritoras que procuraram afirmar-se no panorama literário, mas que foram silenciadas."

Até que ponto Pessoa está ainda por descobrir enquanto homem?
Ainda há muito por decifrar da obra de Pessoa, e através da obra relê-se também o homem que ele foi. Acredito que surjam ainda muitas surpresas, em todo o caso haverá sempre margem para a ficção.

Existem diferenças entre os vários heterónimos no que respeita à relação com as mulheres?
Falando de uma forma muito simplista, podemos dizer que Álvaro de Campos, se é certo que escrevia sobre desejo e paixão, não gostava muito de mulheres. Nem de Ofélia, porque valia-se dele sempre que precisava de se "libertar" dela. Para Ricardo Reis, as mulheres eram sobretudo inspiração, musas clássicas com nomes da tradição helenista. Em Alberto Caeiro há muito pouca presença feminina. Se ele amou alguma mulher, como escreveu Álvaro de Campos, "que ela fique anónima, até para Deus!". No entanto, o meu livro não se foca muito nos heterónimos, claro que estão presentes - a sua criação, e a gestão que Pessoa fazia deles, integra a sua história -, mas interessou-me mais o homem Pessoa do que as suas "fugas".

Ao romance são chamadas várias escritoras que, como Pessoa, tinham o seu trabalho silenciado entre os leitores de então. Porque as trouxe à narrativa?
Pessoa viveu num período muito rico da história da mulher em Portugal. Nele surgiram diversas escritoras que procuraram afirmar-se no panorama literário, mas que foram silenciadas, e por razões diferentes do silenciamento a que foi votado e se votou Pessoa. Havia ainda uma desconfiança generalizada em relação ao trabalho intelectual da mulher. Se uma mulher escrevesse sobre a maternidade, o matrimónio ou a caridade, por exemplo, até poderia ser bem acolhida. Mas uma mulher que escrevesse sobre a paixão, o sexo, a liberdade, era facilmente condenada pela opinião pública por imoralidade ou indecência. Veja-se o caso de Judith Teixeira, que decidi convocar para este livro exatamente porque ela foi uma voz silenciada do nosso modernismo. Outras das mulheres escritoras que quis presentes foram também peças fundamentais na luta pelos direitos das mulheres no nosso país. Há ainda muitos nomes por revelar, histórias de mulheres extraordinárias que ninguém conhece. Gostava de escrever sobre este tema no futuro.

Sendo à época tão desconhecido como Florbela Espanca, por exemplo, porque se tornou o poeta tão mais conhecido do que as suas colegas de escrita?
Não diria que Fernando Pessoa fosse assim tão desconhecido. Creio até que, no meio intelectual da altura, era muito respeitado e a comprová-lo temos as cartas que trocava com muitas figuras importantes da nossa cultura, que se interessavam e valorizavam o que escrevia. Pessoa frequentava os cafés de Lisboa, e a verdade é que tinha vários bons amigos, escritores e jornalistas, que foram decisivos para tornar a sua obra conhecida após a sua morte. Falo, por exemplo, de João Gaspar Simões e de Luis de Montalvor, a quem a família veio a confiar o espólio literário guardado na famosa arca do quarto do poeta. Em 1942 começaram a publicar a obra do amigo Pessoa e, em 1950, João Gaspar Simões publicou a primeira biografia que fez dele. A arca continha uma obra tão vasta e tão interessante - mérito de Fernando Pessoa - que a curiosidade foi aumentando. Jorge de Sena, sobrinho-neto da vizinha de Fernando Pessoa, as vizinhas Virgínias, foi um dos que se interessou também pela obra. Escreveu diversos ensaios e, já exilado no Brasil, trabalhou na primeira versão do Livro do Desassossego. Florbela Espanca, assim como outras escritoras do seu tempo, também eram conhecidas ou, pelo menos, "faladas" no meio intelectual. Quando Florbela Espanca morreu chegou a discutir-se a colocação de um busto seu numa praça pública -, mas esse meio era dominado por homens, e persistia uma desconfiança quase sistémica em relação à qualidade literária da mulher. O que não favoreceu, naturalmente, a divulgação da literatura feminina.

O poeta divergia dos outros homens da sua época no entendimento sobre o outro sexo?
Foi um tempo de discussão sobre a mulher e o seu papel na sociedade, e Fernando Pessoa participou naturalmente dessa discussão, lendo diversos autores que se debruçavam sobre essa matéria, e produzindo muitos textos de reflexão - nunca publicados em vida. Perguntei-me muitas vezes como poderia Pessoa ter escrito alguns desses textos, bastante misóginos, quando viveu sempre rodeado de mulheres cultas e inteligentes, sábias de tantas formas. Era algo contraditório, mas que deve ser lido à luz do seu tempo.

É possível, mesmo a um poeta, morrer quase virgem e conhecer "a" mulher?
Se há quem o consiga, é o poeta.

Sara Rodi

Editora Planeta

455 páginas

O racismo a que é impossível fugir num país e que choca o leitor

As várias opiniões impressas no romance do escritor brasileiro Jeferson Tenório exaltam O Avesso da Pele como uma radiografia atual do que é a relação entre pais e filhos, mas principalmente descrevem o ambiente sufocante do racismo que se mantém bem vivo na sociedade brasileira. Não é preciso ir muito longe na leitura para se perceber esses contornos afiados da desigualdade pois logo ao segundo capítulo essa sensação bem real surge e vai acompanhar o leitor até ao fim. Com o desenrolar da narrativa, percebe-se como a corda aperta à volta do corpo e da mente do protagonista Pedro e de como as ligações com o pai clarificam os seus comportamentos após a sua morte. Numa das críticas que acompanham a edição portuguesa, diz-se: "Uma obra necessária, contundente, que nos humaniza ao mesmo tempo que nos tira qualquer inocência diante da máquina racista que não para de destruir vidas das mais diversas formas."

Recheado de "cenas patéticas" que enquadram a herança e a própria vida de Pedro, o romance coloca o leitor perante, não só uma história, situações que estão demasiado enraizadas naquele país e que continuam por erradicar apesar de os tempos já não permitirem uma segregação como a que se lê. Nada que os ecos que vêm do outro lado do Atlântico não fizessem prever, só que não se espera um confronto moral deste alcance quando se pega em O Avesso da Pele.

Contrariamente ao receio de indispor os saloios, o livro traz consigo um glossário que desvenda palavras fundamentais para uma leitura completa, que se desconhecem da língua falada no Brasil.