"Amor de mãe" à flor da pele

© Ilustração Vítor Higgs
"Em Nambuangongo tu não viste nada". Um soldado português, como no poema de Manuel Alegre, olha a morte e "fica mudo". No norte de Angola, tão longe de tudo o que conhecera neste mundo, é um dos sobreviventes do seu batalhão mas, em homenagem aos companheiros mortos nessa que foi uma das batalhas mais duras da Guerra Colonial, decide inscrever na pele a dor, o medo, o sentimento de abandono que jamais o deixarão. Tudo o que não conseguiria traduzir por palavras: "Amor de mãe", "Angola" (ou Guiné ou Moçambique) e uma data, ou simplesmente o nome da unidade a que pertencera sobre um dos braços ou mesmo do peito. Marcas tão definitivas como sinais de nascença.
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Estas são as fontes (perecíveis) da guerra: as que morrem com os homens que as transportam mas que são tão eloquentes como os relatos escritos, fotográficos ou filmados. O seu registo transformou João Cabral Pinto, 52 anos, gestor de empresas, num tattoo hunter à maneira de Lars Krutak, autor de obras como Ancient Ink: The Archaeology of Tattooing e diversos programas de televisão sobre o tema. Há aproximadamente um ano publicou, em edição própria, um livro a que deu o título de Guerra na Pele - As Tatuagens da Guerra Colonial, em que reuniu o grosso de um trabalho de investigação de 20 anos. Mas não deu por terminada a tarefa: "À data da publicação do livro tinha fotografado 240 homens, hoje já tenho 300", afirma.
Apaixonou-se pela História de Portugal ainda criança através das coleções filatélicas herdadas do bisavô mas também dos relatos de jornalistas amigos da família como Mário Neves (que testemunhara o terrível cerco de Badajoz na Guerra Civil de Espanha) e o seu filho, Armando. Ele próprio filho de um ex-combatente, João foi levado para o Luso (atual Luena), Angola, muito menino. Embora o seu pai e ele próprio nunca tenham feito tatuagens ("detesto agulhas", brinca), João cedo compreendeu que aquelas inscrições, às vezes apenas simbólicas, nos corpos dos soldados eram bem mais do que um ornamento. E iniciou a "caça", que, como o próprio confessa, acabou "por se transformar numa obsessão".
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As dificuldades foram muitas. Na rua, na praia, em qualquer lugar público, João via uma tatuagem relacionada com a guerra e abordava a pessoa. "Tive as reações mais díspares, desde aqueles que adoravam a ideia e me convidavam para casa deles, para mostrar fotografias e contar histórias, a um ou outro que reagiram de forma muito negativa. Mas também tive situações de pessoas que deixavam fotografar a tatuagem mas nada diziam. Silêncio absoluto."
À medida que a investigação se avolumou, João foi compreendendo vários aspetos interessantes, entre eles a certeza de que as tatuagens "eram uma prática quase exclusiva das baixas patentes, raríssimas entre oficiais, quando muito faziam-nas os oficiais milicianos, não os de carreira". Isto porque, como refere, nas décadas de 1960 e 70, "esta ainda era uma prática muito associada à marginalidade, aos presidiários e a um certo bas fond". À exceção da Marinha, onde este é "um hábito milenar e consentido", as hierarquias do Exército e da Força Aérea consideravam-no "incompatível com a disciplina e o aprumo militar." Mas os ecos dos movimentos hippies e das práticas dos soldados norte-americanos no Vietname chegavam aos aquartelamentos portugueses em África e, no isolamento da noite, à hora em que assaltam medos, dúvidas e saudades, celebravam-se pactos de sangue. Às vezes, apenas com uma agulha de coser desinfetada ao lume e tinta-da-china, o que não raro provocava infeções graves. Outras, com recurso a um profissional que, em muitos casos, até já tinha um catálogo à disposição do cliente.
as tatuagens "eram uma prática quase exclusiva das baixas patentes, raríssimas entre oficiais, quando muito faziam-nas os oficiais milicianos, não os de carreira"
Há alguns anos uma tatuagem alusiva a certo regimento dos Comandos enviado para o Luso no final dos anos 1960 permitiu-lhe compreender que o homem que lhe cortava o cabelo em Lisboa era, afinal, o mesmo que o fizera em Angola quando João era pouco mais do que um bebé. "Ele disse-me que já era barbeiro na tropa e que, para ganhar mais algum dinheiro, cortava também o cabelo à população civil. Cotejei depois estas memórias com o meu pai e concluímos que se tratava da mesma pessoa. Foi emocionante."
Casos como este alimentam o fascínio do investigador, que continua a trabalhar, desejando agora partir para um segundo livro sobre o tema. "Sei que haverá um momento em que terei de parar. Mas continuo a não resistir. Às vezes dou por mim a caminho da Costa da Caparica, onde muitas dessas pessoas andam a passear na praia, para conversar com elas. Tenho milhares de histórias para contar e o tempo para o fazer é precisamente este porque, como sabemos, esta é uma geração que está a partir."
Tão aturado trabalho levou este gestor de empresas a aprofundar estudos sobre o papel histórico da tatuagem, transversal a muitas culturas. Mergulhou nos relatos das missões etnográficas realizadas por João Leite de Vasconcelos, que reproduziu, não em fotografia, mas em ilustração, as tatuagens feitas pelos homens (nunca por mulheres) de aldeias como Baião, mas também nos registos do Instituto de Medicina Legal (onde se preservam alguns fragmentos de tatuagens retiradas de cadáveres) e, mais remotamente, nos escritos dos marinheiros às ordens do capitão Cook que, ao chegarem ao Havai, descobriram um mundo de sofisticadas tatuagens.
Tenho milhares de histórias para contar e o tempo para o fazer é precisamente este porque, como sabemos, esta é uma geração que está a partir."
Bem mais inquietante foi, para João Cabral Pinto, a constatação de que, por ordem do rei D. Manuel I, os escravos capturados pelos portugueses eram tatuados como forma de registo. Nessa mesma costa africana, quase 500 anos antes de os soldados portugueses inscreverem em si mesmos as marcas de uma experiência que, sabiam eles apesar dos "verdes anos", os mudaria para sempre. Definitivas como sinais de nascença.
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