Política
16 maio 2022 às 22h13

Governo muda lei dos metadados sem mexer na Constituição

Executivo apresenta proposta em junho. António Costa garante que lei inconstitucional não afeta os casos já julgados, mas a interpretação está longe de ser pacífica.

O Governo vai apresentar em junho, na Assembleia da República, uma proposta de lei para ultrapassar o veto constitucional à chamada lei dos metadados, deixando assim pelo caminho a hipótese de uma revisão constitucional. A decisão foi anunciada ontem pelo primeiro-ministro, depois de uma reunião do Conselho Superior de Segurança Interna (CSSI), após a qual António Costa defendeu que a declaração de inconstitucionalidade do Tribunal Constitucional (TC) não terá efeitos nos casos já transitados em julgado.

Em causa está a lei dos metadados, que determina a conservação dos dados de tráfego e localização das comunicações pelo período de um ano, de forma a permitir uma eventual utilização em sede de investigação criminal. A lei tem esbarrado sucessivamente no TC e, num acórdão do mês passado, os juízes do Palácio Ratton concluíram que guardar dados de tráfego e localização de toda a população, de forma generalizada, "restringe de modo desproporcionado os direitos à reserva da intimidade da vida privada e à autodeterminação informativa", pelo que o diploma foi declarado inconstitucional. Na passada semana, a própria Procuradora-Geral da República recorreu da decisão, invocando a nulidade do acórdão do TC sobre os metadados. Mas, na última sexta-feira, os juízes-conselheiros decidiram "não tomar conhecimento do requerimento", argumentando que a PGR não tem legitimidade processual para suscitar a nulidade do acórdão. Ainda assim, o TC fez questão de acrescentar que os argumentos de Lucília Gago são "manifestamente improcedentes".

Depois de ter já admitido uma revisão constitucional cirúrgica para resolver a questão, António Costa defendeu ontem que esta não será a melhor via para solucionar o problema. Pelo caminho, o Presidente da República já tinha avisado que "não há revisões pontuais da Constituição" - uma vez aberto o processo de revisão constitucional, "tudo fica aberto".

Afastado o cenário de revisão constitucional, António Costa anunciou que o Governo vai tentar uma nova versão da lei, procurando um equilíbrio entre os valores constitucionais em equação. "A ministra da Justiça tem um grupo de trabalho que já está a funcionar, de forma a que, desejavelmente em junho, logo que a Assembleia da República se liberte do debate do Orçamento do Estado para 2022, se possa ter um novo quadro legislativo. Respeitando a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia e do Tribunal Constitucional e que não desmunicie o Estado de Direito das ferramentas para combater a criminalidade mais grave", afirmou o primeiro-ministro.
Recusando "especular sobre qual será o intervalo mais razoável" para a conservação dos metadados, António Costa referiu que será necessário encontrar o equilíbrio entre os valores em confronto na "porta mais estreita" deixada pela decisão do TC e utilizando "essa porta na estrita medida do necessário".

Mas António Costa recusa que a declaração de inconstitucionalidade da lei venha a fazer perigar processos judiciais já transitados em julgado. "Chamo a atenção que o artigo 282 número 3 da Constituição da República é muito claro: as declarações de inconstitucionalidade com força obrigatória geral não afetam os casos julgados, a não ser quando o Tribunal Constitucional não ressalva essa consolidação do caso julgado", o que não aconteceu neste caso, defendeu o líder do Executivo. Para António Costa esta declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral não afasta o que o diz a Constituição - "Ou seja, os casos julgados são casos julgados". Afirmando-se consciente de que o Código de Processo Penal prevê revisões extraordinárias quando há declarações com força geral de inconstitucionalidade, o primeiro-ministro reiterou que o "Código de Processo Penal tem de estar submetido à Constituição".

Mas a interpretação de António Costa está longe de ser pacífica. Para o constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia, o primeiro-ministro está "equivocado" - a declaração de inconstitucionalidade poderá ser suscitada sempre que os metadados tenham sido prova essencial, seja em casos ainda em curso ou já transitados em julgado. "Há uma lei que é considerada inválida e há um princípio do direito penal que é o da aplicação da lei mais favorável ao arguido. Se a alei é inconstitucional, aplica-se a que vigorava antes, sendo mais favorável. E qual era? Nenhuma. Portanto, não se aplica nenhuma", refere Bacelar Gouveia. Ou seja, a declaração de inconstitucionalidade tem "eficácia retroativa, na medida em que há um vazio legal" de efeitos retroativos. Ontem, em declarações à Rádio Renascença, Cândida Almeida, antiga diretora do Departamento Central de Investigação e Ação Penal, admitiu que o chumbo da lei dos metadados pode vir a afetar processos como a operação Marquês ou o caso BES .

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