Política
16 junho 2021 às 22h05

Heroísmo de Aristides não foi caso único e há outros portugueses no Yad Vashem

Projeto Nunca Esquecer, lançado pelo governo e relacionado com a memória do Holocausto, promove hoje a publicação de três livros de bolso sobre os acontecimentos de há 80 anos. Falam de heróis e também de vítimas.

Uma comunidade precisa de referências morais. Todos os portugueses que salvaram vidas do Holocausto devem ser considerados como exemplos de dignidade e valentia", sublinha o ministro dos Negócios Estrangeiros ao DN. Augusto Santos Silva preside nesta quinta-feira, no Palácio das Necessidades, em Lisboa, à cerimónia de lançamento de três livros dedicados à temática do Holocausto, dois deles sobre heróis - a biografia de Aristides de Sousa Mendes e um livro sobre os salvadores portugueses em geral - e outro sobre as vítimas portuguesas do sistema concentracionário nazi.

Trata-se de edições de bolso, da Imprensa Nacional Casa da Moeda, através da coleção "O Essencial sobre", porque o objetivo é chegar ao maior número de pessoas, dando-lhes a conhecer o que se passou há 80 anos na Europa durante a Segunda Guerra Mundial, nomeadamente o terror de Adolf Hitler contra os judeus, mas não só. Até portugueses sem qualquer ligação ao judaísmo acabaram por morrer por culpa dos nazis.

"Biografar Aristides de Sousa Mendes, como qualquer um dos "salvadores", é sempre uma tarefa difícil, apesar de existirem já diversos trabalhos de investigação. Todos nós nos perguntamos o que terá levado Aristides, naquele mês de junho de 1940, a desobedecer uma vez mais às diretivas recebidas de Lisboa. Aliás, a questão coloca-se não só à atuação do antigo cônsul de Portugal em Bordéus, mas à de todos os homens e mulheres que colocaram as suas carreiras e muitas vezes as suas vidas em perigo para ajudar pessoas que nem sequer conheciam. Na defesa que Aristides apresentou aquando do seu processo disciplinar, ele explica que o fez por "razões de humanidade que não distinguem raças nem nacionalidades", diz ao DN Cláudia Ninhos, autora de Aristides de Sousa Mendes.

Acrescenta a investigadora do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa (IHC-Nova) que a história de Aristides "ficou esquecida durante décadas e tem sido alvo de negacionismo e distorção. Para além das críticas à sua ação (recordo nomeadamente a última polémica em que um dirigente do CDS se referiu a ele como "agiota de judeus"), o processo de reconhecimento e reabilitação foi lento e cheio de obstáculos. O estado de degradação a que chegou a Casa do Passal, que quase ruiu, reflete bem a escassa importância e o fraco reconhecimento a que foi votado. Espero que esta biografia seja mais um dos vários contributos que ajudem a compreender este acontecimento, através do cruzamento e do confronto de fontes e da análise do difícil contexto histórico daquele que foi o mais difícil momento da neutralidade portuguesa".

Entrevistei um dia Salvador Reis Garrido sobre o seu avô, Carlos Sampaio Garrido, embaixador em Budapeste entre 1939 e 1944 e que se tornou, em 2010, o segundo português a ser reconhecido pelo Yad Vashem, em Israel, depois de Aristides de Sousa Mendes. Na época, o descendente desse "justo" português declarou admirar muito a coragem de Aristides, o famoso cônsul de Bordéus, que terá salvado 30 mil vidas, de judeus e outros perseguidos pelo nazismo, mas pediu também atenção para outros heróis da época e, de certa forma, um outro dos livros da coleção "O Essencial sobre", intitulado Os Salvadores Portugueses, corresponde a esse desafio. "O Yad Vashem distinguiu, até hoje, quatro portugueses pelo papel que desempenharam na proteção a judeus perseguidos pelo nazismo: o cônsul Aristides de Sousa Mendes, o embaixador Carlos Sampaio Garrido, o padre Joaquim Carreira e o emigrante em França José Brito Mendes", nota Margarida de Magalhães Ramalho, também investigadora do IHC-Nova, que salienta achar a lista curta.

Para a autora de Os Salvadores Portugueses, "falta ainda reconhecer o importante trabalho desenvolvido, em Budapeste pelo encarregado de Negócios Carlos Teixeira Branquinho. Apesar das pressões do governo húngaro pró-nazi e dos obstáculos que teve de superar, Branquinho conseguiu levar a bom porto o trabalho de proteção aos judeus daquele país iniciado pelo seu antecessor, o embaixador Sampaio Garrido. Mas estes diplomatas portugueses não foram os únicos a fazer a diferença. Sabe-se que muitos outros tentaram ajudar. Emitindo vistos pontuais que não podiam, contornando regras, não pedindo dinheiro por trabalharem fora de horas ou mesmo, como foi o caso de Manuel Homem de Mello, partilhando senhas de racionamento com uma família judia amiga que se encontrava escondida tendo ainda entregue parte das suas poupanças a um elemento da Gestapo para tentar salvar da morte uma jovem dessa família". Conclui Margarida de Magalhães Ramalho que "nem sempre temos a capacidade ou a coragem de fazer tudo o que é necessário. Mas, se fizermos alguma coisa, já não é mau".

O terceiro livro a ser hoje apresentado resulta do trabalho de uma equipa liderada pelo historiador Fernando Rosas e tem como título Os Portugueses no Sistema Concentracionário do III Reich. Centrando-se na já numerosa comunidade portuguesa que vivia em França no início da Segunda Guerra Mundial, o livro revela que pelo menos 381 portugueses estiveram presos pelos alemães, 14 deles em campos prisionais, destinados a delitos comuns, 67 em campos de concentração, para onde ia quem se tinha alistado na resistência ou tinha atividades políticas como o sindicalismo, e 300 como prisioneiros de guerra nos Stalag, neste caso portugueses integrados de há muito em França e que serviam nas forças militares francesas, como, por exemplo, a Legião Estrangeira.

Em conversa com o DN, Fernando Rosas sublinha que "nos campos de concentração e nos campos prisionais havia trabalho escravo, trabalho até à exaustão total, até morrer. Identificámos 30 portugueses que morreram. Há mais dez mortos sobre os quais existem dúvidas se são portugueses". O trabalho de investigação desenvolvido por uma equipa onde se incluem também Ansgar Schaefer, António Carvalho, Cláudia Ninhos e Cristina Clímaco, inclui ainda os portugueses obrigados a trabalhar na Alemanha nazi.

"Falta agora estudar o que se passou na Bélgica, outro país europeu ocupado onde existia uma presença significativa de portugueses, para se ter uma ideia mais completa do número total de vítimas portuguesas do sistema concentracionário nazi", acrescenta o historiador.

Este lançamento dos três livros insere-se no projeto governamental Nunca Esquecer - Programa Nacional em torno da Memória do Holocausto, comissariado por Marta Santos Pais, e destinado a assinalar ao longo de 2020 e 2021, por ocasião dos 80 anos da ação de Aristides (17 de junho de 1940), uma temática da história do século XX que afetou toda a Europa e Portugal não foi exceção, apesar de ser um país neutral.

Também os CTT se associam hoje a esta celebração do heroísmo de alguns portugueses, no caso dos diplomatas desobedecendo às diretivas de Lisboa. "Vamos pôr em circulação mais cinco selos homenageando as grandes figuras da nossa história que são Aristides de Sousa Mendes, Alberto Teixeira Branquinho, Carlos Sampaio Garrido, José Brito Mendes e o padre Joaquim Carreira", diz Raul Moreira, diretor de Filatelia dos CTT, acrescentando que a empresa cumpre assim "a nossa obrigação de dar a conhecer através dos nossos selos de correio aquilo que de mais importante se fez em Portugal e no mundo e as individualidades que mais contribuíram para honrar o país e os valores supremos da humanidade".

leonídio.ferreira@dn.pt