Política
16 agosto 2022 às 22h12

Sandra Pereira: "O fim da regra da unanimidade vai ser altamente prejudicial para Portugal"

Tem 45 anos e nasceu em Alvoco da Serra. A linguista eleita em 2019, nas listas da CDU para o Parlamento Europeu, ficou surpreendida com a burocracia e lamenta os "constrangimentos" que limitam a sua intervenção. Sandra Pereira deixa um aviso: Portugal não pode continuar a ser bom aluno de Bruxelas.

Faltam instrumentos ao Parlamento Europeu para que seja mais efetivo na vida dos Europeus?

Aquilo que nós sentimos é que muitas vezes a própria intervenção que temos vai sendo limitada. Vou dar-lhe alguns exemplos: as perguntas que nós podemos colocar à Comissão - podemos pôr 20 perguntas de três em três meses. Mas há situações em que precisamos de colocar perguntas para além das 20, mas não se pode. Esse limite é um constrangimento. Outro caso é o tempo de palavra em plenário que é distribuído pelos grupos, mas nós, que fazemos parte do grupo mais pequeno, somos sempre o que tem menos tempo de palavra. Até mesmo o procedimento que existe para compensar as pessoas que não têm tempo de palavra segue a mesma lógica do tamanho dos grupos. Ou seja, temos sempre mais limitações à nossa participação.

A ausência de um poder legislativo efetivo deixa os eurodeputados manietados?

Nós temos em Portugal um Parlamento que já tem esse poder. Se o Parlamento Europeu (PE) também tivesse esse poder, de certa maneira estaria a retirar competências àquilo que é o nosso Parlamento Nacional e nós, com isso, não concordamos. Agora, que muitas vezes nós fazemos recomendações, muitas delas objeções, que são aprovadas pelo PE e que a Comissão não as tem em conta, isso acontece. A Comissão Europeia dá a volta para fazer o que quer, a Comissão tem muito mais poder sem ter sido eleita pelos cidadãos.

Isso traduz-se num desequilíbrio entre os eleitos e os nomeados?

Repare, a presidente que está lá, está com o acordo das grandes famílias políticas europeias. E portanto, mesmo com uma eleição, depressa chegariam a um consenso para terem lá uma pessoa que representasse não só estes grupos políticos, como também os poderes económicos que eles próprios representam. Este sistema, as instituições europeias, é um projeto que tem o objetivo de servir as grandes potências europeias e os seus interesses económicos. Portugal nunca estará dentro destas grandes potências e, portanto, os seus interesses tentamos nós defendê-los.

O que tem defendido para Portugal que tenha efeito prático na vida dos portugueses?

Somos dois em 705, convém ter presente qual é o poder que cada um de nós tem. Mas diria que tentamos sempre que Portugal não seja prejudicado. E podia depois dar-lhe várias exemplos: na questão do salário mínimo, temo-nos batido imenso. É o PCP, a delegação portuguesa que intervém diretamente neste pacote, porque apresentámos emendas à proposta desde logo na Comissão do Emprego e temos sempre pressionado para que esta diretiva não se feche da forma como se está a fechar, porque sabemos que aquilo que vai trazer para o país é a contenção dos salários. Esta é uma questão, mas podia dar-lhe outras. Mas esta vai ter diretamente influência naquilo que é o salário mínimo em Portugal.

Medidas concretas?

É difícil pensar em medidas concretas. É o meu primeiro mandato e eu fiquei surpreendida quando, de repente, estávamos a discutir os pneus de tratores [risos]... como é que estamos aqui a discutir isto? As verdadeiras decisões para o país deviam ser tomadas pelo governo português e pelo Parlamento Nacional. E que muitas vezes o governo não seguisse aquela que é a cartilha da União Europeia, que constrange bastante o desenvolvimento do país e as condições de vida dos trabalhadores. Basta pensar que há dois ou três meses a Comissão Europeia fez alertas porque se tinha aumentado em 0,9% os salários dos funcionários públicos e se tinha dado um aumento extraordinário aos pensionistas. Quer dizer... são aumentos miseráveis para aquilo que está a ser o aumento do custo de vida, mas mesmo assim lá vem um raspanete das instituições europeias. E nós não podemos concordar com isso de maneira nenhuma.

A ideia de que os eurodeputados ficam reduzidos ao papel das perguntas e relatórios e que pouco passará disso corresponde, de facto, à realidade?

Corresponde um bocadinho, sim. A própria forma como o projeto europeu está desenhado favorece isso. É óbvio que a Comissão manda e depois o Conselho pode ou não seguir aquilo que a Comissão diz. Até já se fala em retirar a unanimidade onde ela ainda é necessária e eu julgo que isso também vai prejudicar gravemente Portugal. A regra da unanimidade é o que põe todos os países por igual. Se essa regra deixar de existir, significa que cinco ou seis ou países, sozinhos conseguem ter a tal maioria para tomar decisões. E Portugal, como país pequeno, vai ficar sujeito a receber orientações desses países. Esses países vão impor decisões a Portugal com as quais Portugal poderia ou não discordar. Esta questão está em cima da mesa e nós temos alertado bastante, porque o fim da regra da unanimidade vai ser altamente prejudicial para Portugal.

O que é que a surpreendeu nestes anos de eurodeputada?

Surpreendeu-me a burocracia, a forma como andamos todos ali enredados em volta de um relatório, das emendas. Uma parte positiva é a experiência que tenho tido em Portugal. Tenho andado pelo país todo, o PCP tem sempre esta ligação muito forte com a realidade e essa tem sido a grande experiência deste mandato: a forma como tenho conhecido bem o país, os problemas das pessoas. Muitas vezes as pessoas apresentam os seus problemas, mas também nos falam de como esse problema poderia ser resolvido. Essa tem sido a riqueza deste mandato.

E consegue explicar o que faz?

É difícil [risos], mas eu também sou linguista de profissão e também já ninguém percebia bem o que é que eu fazia. Acho que as pessoas pensam que nós temos mais poder do que na realidade temos.

Como se estivessem na Assembleia da República?

Sim, sim, fazem essa ligação. Eu própria como conhecia bem o Parlamento português tinha essa imagem do Parlamento Europeu, mas é completamente diferente. Eu vou muito a escolas e parece-me que se fala muito das instituições europeias, mas eu gostava que nas escolas também se falasse das Assembleias de Freguesia, porque as pessoas podem até saber como é que funciona o Parlamento Europeu, mas não sabem como funciona uma Assembleia de Freguesia, como é que funciona uma Assembleia Municipal. Isso também é muito importante. Em vez de estarmos sempre a fazer esta propaganda às instituições europeias, se calhar devíamos começar por aquilo que é o poder político local e sua importância na vida das pessoas.

Porque se dizem os portugueses tão europeístas, basta olhar os inquéritos do Eurobarómetro, mas na altura do voto isso não se reflete?

Houve uma melhoria das condições de vida nos anos 80 e as pessoas podem associar isso à entrada na então CEE, mas essa melhoria é reflexo do 25 de Abril e de todas as funções sociais do Estado que começaram a ser exercidas. Tudo isto melhorou a vida das pessoas, desde a escola pública, ao Serviço Nacional de Saúde. Essa foi a grande transformação. Com a CEE vieram muitos subsídios, mas isso não se reflete na melhoria de vida das pessoas. Tivemos mais estradas, é verdade, mas também perdemos comboios. Isto é mesmo a minha opinião pessoal. Por outro lado, também me parece que as pessoas votam mais nas eleições que estão mais perto, porque se calhar é mais fácil reclamar com as autarquias, fazer propostas nas autarquias. O Parlamento Europeu está lá muito mais longe.

Não sente, às vezes, uma angústia, que tudo demora demasiado tempo, que a sua ação acaba por ser pouco efetiva?

Isso é pau de dois bicos [risos] porque, de facto, se a coisa é boa essa angústia sente-se: foi aprovado aquilo, vai ter reflexo na vida das pessoas, que seja aplicado o mais rapidamente possível. Mas se a coisa é má, por exemplo a diretiva dos salários, quanto mais tempo demorar a aplicar melhor. Nesse entretanto, a ver se conseguimos contrariar até que ela seja aplicada ou alterá-la no sentido de a melhorar para que, quando for aplicada, tenha outros impactos na vida das pessoas.

É verdadeira a imagem de que quando as coisas correm bem é trabalho do governo, mas que quando correm mal a culpa é de Bruxelas?

[Risos]... eu não diria isso até porque os governos estão muito coordenados com Bruxelas. Sobretudo os governos portugueses, que têm sido sempre muito "bons alunos". Quem nos dera a nós que os sucessivos governos em Portugal não fossem o melhor aluno de Bruxelas e tivessem olhado, de facto, para aquilo que são as condições de vida do país, aquilo que são as opções de desenvolvimento, em vez de estarmos sujeitos àquilo que é a dívida e o défice e a todos os constrangimentos que Bruxelas nos impõe.

O que espera ter conseguido quando chegar a 2024?

Estou a cumprir o mandato para o qual fui eleita, concordei com o programa da CDU e estou a tentar cumpri-lo. A minha satisfação é esta ligação ao país. Quando nós falamos dos problemas dos portugueses, dos trabalhadores, dos pensionistas, dos jovens, não foi porque lemos num jornal. Foi porque estivemos reunidos com as associações, fomos às portas das fábricas, estivemos falar com os jovens: somos um eco daquilo que são os problemas deles, somos a voz deles nas instituições europeias. E isso já vale a pena. Só por isso já valeu a pena ter sido eleita, ser essa voz, que os portugueses se sintam representados.

Isso é suficiente, ser eco dos protestos e das queixas?

Não é suficiente, mas a nossa forma forma de intervir está limitada porque somos só dois. Mas não deixamos de fazer o nosso trabalho, não só dar voz, mas também fazer propostas que melhorem as condições de vida dos portugueses. Repare neste exemplo: a questão dos fundos que vêm das emissões de carbono para distribuir pelos países, sobretudo pelos países da coesão. A fórmula que está no Fundo Social Climático prejudica gravemente um único país e é Portugal. E nós sistematicamente temos dito que esta metodologia não serve, com perguntas à Comissão, com alterações ao texto em comissão e em plenário, mas até os eurodeputados portugueses, à exceção do PS que se absteve, votaram contra.

Como é a relação entre os 21 eurodeputados portugueses? Há consensos que ultrapassem os partidos?

Devia-se defender os interesses de Portugal, mas nem sempre isso acontece.