O Brexit vem mesmo aí. O que é que isso significa para os portugueses?

São cerca de 400 mil os portugueses que vivem no Reino Unido e têm, pelo menos, até ao final de 2020 para pedir o estatuto de residente. Se o acordo de saída for aprovado, como se espera, não há motivo para dramas, afirmam os governantes.

Uma das primeiras reações portuguesas à vitória do conservador Boris Johnson nas eleições britânicas de quinta-feira foi a do primeiro-ministro António Costa que, à saída do primeiro dia de trabalhos do Conselho Europeu, em Bruxelas, já de madrugada, sublinhava que a vitória clara de Johnson irá permitir "assegurar algo que era fundamental: é que, havendo Brexit, que seja um Brexit ordenado, devidamente acordado, e, portanto, que todos os cenários negativos que se tinham perspetivado de um Brexit caótico possam ser evitados". De outra forma, "as consequências, quer para os direitos dos cidadãos,quer para as empresas, seriam extremamente negativas", disse, pelo que a aprovação do acordo de saída "obviamente é uma boa notícia".

Essa é também a convicção do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que considera que este resultado "vai permitir um acordo para uma saída ordenada do nosso aliado de tantos séculos da União Europeia", o que permitirá proteger os interesses dos portugueses residentes no Reino Unido, assim como dos cidadãos britânicos que residem em Portugal, e também as empresas dos dois países e da União Europeia, "para um futuro relacionamento profícuo e no interesse comum".

O ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, não tem dúvidas de que Portugal está pronto para o Brexit no início do próximo ano, mas lembra que haverá um período de transição "em que praticamente tudo estará na mesma" até ao fim de 2020. "Esse período de transição tem a utilidade de dar tempo e espaço para que se negoceie um novo acordo com o Reino Unido", permitindo ainda que os portugueses residentes no Reino Unido, os britânicos residentes em Portugal, as empresas e os operadores turísticos se preparem para o que aí vem.

Em declarações à TSF, Augusto Santos Silva afirmou que a Europa está em condições de apresentar um novo acordo nos primeiros dias de fevereiro. Seguir-se-ão "dez meses intensos de negociação". "Acho que vamos conseguir chegar a um acordo razoável, um acordo de livre comércio, um acordo com alguma linha regulamentar e também um acordo, muitíssimo importante, na área-chave da segurança e da defesa" para que a saída do Reino Unido não signifique abandonar dos compromissos do país na defesa coletiva no Atlântico Norte.

Tudo na mesma até ao final de 2020, pelo menos

Recorde-se que a 17 de outubro as equipas negociadoras da Comissão Europeia e do Reino Unido concluíram um acordo de saída que foi, nesse mesmo dia, endossado pelo Conselho Europeu, mas que nunca chegou a ser apreciado pelo Parlamento britânico, devido a vários entraves colocados pela oposição. Porém, após estas eleições, o Brexit é agora uma decisão "irrefutável e indiscutível", afirmou Johnson no discurso da vitória já na sexta-feira de manhã. E tudo indica que esse acordo, com alguns ajustes, será finalmente aprovado.

O Reino Unido deixará de ser membro da União Europeia no dia do Brexit - o que pode acontecer já a 31 de janeiro - no entanto, os direitos e deveres dos cidadãos portugueses (e dos outros cidadãos europeus) no Reino Unido permanecem os mesmos durante o período de transição. Assim, mesmo na eventualidade de a saída do Reino Unido da União Europeia vir a ocorrer sem acordo (no deal), pelo menos até 31 de dezembro de 2020 não haverá grandes diferenças a assinalar para os cidadãos comuns.

O acordo de saída não só protege todos os cidadãos europeus que estejam a residir legalmente no Reino Unido e os britânicos que residam num país da UE como também os "trabalhadores transfronteiriços". Serão ainda negociadas condições especiais de entrada e permanência para fins como investigação, estudo, estágios e intercâmbio entre jovens.

Para se considerar que "residem legalmente" num país, os cidadãos devem já ter adquirido o direito de residência permanente ou, caso ainda não vivam lá há cinco anos, um título provisório de residência. Embora não esteja atualizada, porque foi elaborada em novembro de 2018, a lista de perguntas e respostas elaborada pela Comissão Europeia pode ser uma ajuda.

O que devem fazer os portugueses que já estão no Reino Unido?

A primeira recomendação a todos os portugueses que residam no Reino Unido é que façam a sua inscrição consular. Também é importante que tenham os seus documentos válidos (cartão de cidadão e passaporte). "Guarde toda a documentação relativa à residência neste país e verifique junto dos serviços da Segurança Social (DWP) e Autoridade Fiscal (HMRC) se os seus dados pessoais se encontram atualizados", aconselham os consulados portugueses em Manchester e em Londres.

O governo português estima que residam no Reino Unido cerca de 400 mil portugueses. Destes, cerca de um terço já terão pedido (e grande parte obtido) o estatuto de residente. Este é obrigatório para depois do Brexit pois garante o acesso ao mercado de trabalho, serviços públicos como educação, saúde e serviços sociais após o fim do direito de livre circulação de pessoas garantido pela UE.

O estatuto de residente permanente (settled status) é atribuído aos que estejam há cinco anos consecutivos a viver no Reino Unido, enquanto os que estão há menos de cinco anos no país terão um título provisório (pre-settled status) até completarem o tempo necessário.

No caso de saída sem acordo do Reino Unido da União Europeia, as candidaturas ao Settlement Scheme podem ser apresentadas até 31 de dezembro de 2020, enquanto no caso de saída com acordo a candidatura pode ser efetuada até 30 de junho de 2021.

"Somos claros: os cidadãos da UE são nossos amigos e vizinhos e queremos que eles fiquem no Reino Unido", afirmou em setembro o secretário de Estado para a Segurança, Brandon Lewis.

Não vale a pena acrescentar dramatismo onde ele não existe. Até 31 de dezembro de 2020 a situação mantém-se.

Em agosto, o secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, José Luís Carneiro, garantiu que os portugueses residentes do Reino Unido "podem estar tranquilos" face ao Brexit. "O Estado português preparou-se para fazer face à contingência resultante da decisão das autoridades e do povo britânico. E há dias foi o próprio primeiro-ministro britânico quem contactou o primeiro-ministro português para lhe transmitir uma mensagem de tranquilidade quanto ao futuro dos portugueses no país", afirmou este responsável.

"Não vale a pena acrescentar dramatismo onde ele não existe [...]. Até 31 de dezembro de 2020 a situação mantém-se", dizia em março o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva. Já em outubro, afirmou na Assembleia da República que "os direitos dos cidadãos portugueses" residentes no Reino Unido "foram garantidos". Além de todos os portugueses que já vivem no Reino Unido há mais de cinco anos - e que, por isso, já têm e vão continuar a ter nacionalidade britânica -, também aqueles que habitam no país há menos tempo usufruirão desse mesmo estatuto uma vez completados os cinco anos. Nestes casos, e "mesmo que haja um Brexit sem acordo", o ministro garantia que todos os cidadãos portugueses "terão os seus direitos regulados pela atual lei europeia" e não pela nova lei migratória a adotar pelo Reino Unido.

Para fazer face a esta situação, e ao abrigo do Plano de Contingência para a saída do Reino Unido da União Europeia - aprovado pelo governo português em janeiro -, os consulados de Londres e Manchester foram reforçados em meios humanos, infraestruturas tecnológicas e meios informáticos, bem como alargados os horários. Foram colocados 12 novos colaboradores: oito em Londres e quatro em Manchester. Além disso, e das várias sessões de esclarecimento que foram organizadas ao longo do ano, desde 1 de abril que funciona a "Linha Brexit" que tem respondido às dúvidas de todos os cidadãos portugueses no país.

Declarações tranquilizadoras de Santos Silva em setembro: "Nós estamos em condições de aqui até ao fim de 2020 poder atender a todos os pedidos de todos os compatriotas relacionados com a sua situação no Reino Unido? Eu respondo 'sim'."

E os britânicos que vivem em Portugal?

Estão registados em Portugal cerca de 23 mil cidadãos britânicos. Na sua página oficial, o governo britânico aconselha os ingleses que residam em Portugal a tomarem algumas medidas:

- Verificar a validade do seu passaporte.

- Se quiserem ficar aqui durante mais de três meses, devem registar-se como residentes. Esse registo deve ser feito na câmara municipal e dar-lhes-á acesso aos serviços de saúde e escolas públicas bem como à Segurança Social. Além de um cartão de identificação, será necessário apresentar um comprovativo de que têm trabalho ou de que têm meios financeiros para assegurar a manutenção da família.

- Após cinco anos de residência, podem pedir um visto de residência permanente no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). Quem já tem este cartão poderá ter de substituí-lo após o Brexit.

- Mesmo que tenham um seguro de saúde, deverão inscrever-se no centro de saúde da sua área de residência e possuir um cartão do Serviço Nacional de Saúde. A assistência é garantida a todos os que estejam registados como residentes no país, mesmo após o Brexit.

- Também deverão substituir a carta de condução britânica por uma carta de condução portuguesa, no Instituto de Mobilidade e Transportes (IMT).

- Se vêm estudar em Portugal deverão, como até agora, pedir o reconhecimento das qualificações obtidas no Reino Unido na Direção-Geral de Educação ou na Direção-Geral do Ensino Superior.

Como viajar de e para o Reino Unido?

Após o Brexit, as regras para entrar e sair do Reino Unido irão manter-se até ao final de 2020. Ou seja, para estadas de curta duração, o cartão de cidadão continuará a ser suficiente.

Depois disso, será necessário ter um passaporte válido mas não será necessário um visto para viagens de curta duração (até 90 dias dentro de um período de seis meses). Esta medida visa facilitar as viagens turísticas e profissionais, de forma a não prejudicar as relações já estabelecidas entre o Reino e os países do espaço Schengen.

Em janeiro, quando foi apresentado o Plano de Contingência, Eduardo Cabrita sublinhou a importância dos turistas britânicos para Portugal. Segundo o ministro, três milhões de britânicos visitam Portugal, dois terços dos quais chegam por via aérea, o que dá 22% dos passageiros dos aeroportos portugueses. "O princípio, com ou sem acordo, é o da isenção de visto para os britânicos que queiram visitar Portugal", assegurou, explicando que, consoante os fluxos, que em Faro chega a representar 90% das chegadas, podem vir a ser estabelecidos "canais adequados que permitam manter plena fluidez entrada de cidadãos britânicos".

Isso mesmo está previsto no plano de contingência: "A passagem do Reino Unido à condição de país terceiro obriga a procedimentos adicionais, designadamente os previstos no Código de Fronteiras Schengen, no controlo de entrada e saída dos cidadãos britânicos do território nacional. Também nesse âmbito, será necessário proceder à adaptação dos locais e capacitação das entidades com responsabilidade no controlo fronteiriço de forma a prover uma resposta adequada ao aumento do número de cidadãos sujeitos a controlo (aeroportos, portos)."

Relações comerciais e empresas

Um ponto importante no acordo de saída negociado em outubro é que prevê que a Irlanda do Norte permaneça no território aduaneiro do Reino Unido, beneficiando da futura política comercial britânica, mas continua a ser um ponto de entrada no mercado único. A ilha irá permanecer alinhada com um conjunto limitado de regras comunitárias (por exemplo, o IVA sobre os bens), o que significa que os bens vão ser verificados à entrada da ilha, mas não irá existir uma fronteira entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda. Haverá uma comissão que decidirá quais os produtos considerados suscetíveis de entrar no mercado comum europeu através da República da Irlanda e que, por isso, deverão pagar uma taxa aduaneira comunitária.

Sobre as relações comerciais entre o Reino Unido e a União Europeia existe a intenção explícita de fazer uma "parceria ambiciosa, ampla, profunda e flexível, através da cooperação comercial e económica com um Acordo de Livre Comércio equilibrado e compreensivo na sua essência". O acordo prevê algumas regras sobre a necessidade de verificações nas fronteiras da origem dos bens mas salvaguarda que "quando as partes considerarem ser de interesse mútuo durante as negociações, o relacionamento futuro pode abranger áreas de cooperação além das descritas nesta declaração política".

"Vamos ter de negociar um acordo de comércio entre o Reino Unido e a UE. Não será algo facilmente atingível em 11 meses. A fase de transição tem tudo para ser prorrogada", alertava o investigador Bernardo Pires de Lima num debate sobre o Brexit em outubro. Há de facto uma declaração de princípios mas muitas situações concretas que têm de ser resolvidas.

Até 31 dezembro de 2020 a situação de empresas e instituições financeiras que tenham sede no Reino Unido mas que operem em Portugal mantém-se inalterada. E vice-versa. O ministro Augusto Santos Silva já afirmou que "do ponto de vista legislativo e regulamentar o trabalho está feito", deixando o apelo às empresas que "têm relações económicas com o Reino Unido para que atempadamente verifiquem se todos os procedimentos, todos os requisitos que devem cumprir estão a ser cumpridos".

Da mesma forma, estão garantidos os direitos dos trabalhadores portugueses que estão no Reino Unido no que importa aos descontos e aos benefícios para a Segurança Social.

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