15 SET 2019
15 setembro 2019 às 01h05

Obviamente, inspirou-se. A campanha americana de Delgado

Depois de viver cinco anos na América, Humberto Delgado é convidado pela oposição a Salazar a candidatar-se a Belém. E o general vai beber na experiência americana da campanha de Eisenhower para desenhar a sua.

Miguel Marujo

As duas campanhas presidenciais do general Eisenhower que Humberto Delgado acompanhou nos cinco anos em que viveu nos Estados Unidos foram uma inspiração para o general português, quando este aceitou o desafio da oposição à ditadura de Salazar para concorrer às eleições presidenciais em 1958.

A inspiração traduziu-se numa profissionalização inédita de uma campanha eleitoral no país, aponta a jornalista Joana Reis, no seu livro agora publicado Uma Campanha Americana - Humberto Delgado e as Presidenciais de 1958 (ed. Tinta-da-China).

A "americanização" da campanha que Delgado e a oposição vão montar traduz-se em detalhes que hoje são práticas banais, como os slogans, os contactos de rua ou aquilo que seria hoje o trabalho de uma assessoria de imprensa e de agência de comunicação e a contratação de um fotógrafo profissional.

Num país fechado como era o Portugal amordaçado de 1958, com censura e sem pluralidade, e em que a televisão só existe para o candidato do regime, com um "discurso assumidamente protocolar e oficioso", a candidatura de Delgado é uma lufada de ar fresco num país com cheiro a mofo, onde as eleições eram um "simulacro". "Há uma consciencialização do que se quer comunicar, uma profissionalização da campanha", regista ao DN Joana Reis.

Este lado americano da campanha "começa por ser uma suspeita", confirma a jornalista - que apresenta aqui uma adaptação da sua tese de doutoramento. Afinal, Humberto Delgado vai viver em 1952 para Washington, onde será adido militar e chefe da missão da NATO, e assiste às duas campanhas para a presidência dos EUA, em 1952 e 56.

Na primeira, em 4 de novembro de 1952, Dwight "Ike" Eisenhower, herói da Segunda Guerra Mundial, é eleito com uma "vitória esmagadora", sendo reeleito quatro anos depois, em 6 de novembro de 1956. "Iva Delgado fala como o pai ficou impressionado com as campanhas de Eisenhower", recorda Joana Reis.

É este ambiente que leva este homem do regime, o mais jovem general português, fundador da TAP e negociador da Base das Lajes, a caminhar para os valores da democracia. O general inaugura "um novo estilo de aproximação às pessoas e de afronta ao regime, que se revelou um sucesso em termos de adesão popular", como escreve Joana Reis. E esta afronta passa pelo compromisso de "melhorar as condições de vida no país" e pela promessa de liberdade e de acabar com o medo.

Na sua investigação, a jornalista começou logo a encontrar autocolantes da campanha em que se ensaiava um mimetismo muito próximo da do militar americano. Ambos generais, Delgado é fotografado em pose, fardado (como Ike), remetendo para o "imaginário do herói militar", e é como o americano um outsider da política, "não pertencendo a qualquer dos grupos organizados da oposição ao regime nem ao quadro de dirigentes da União Nacional", apesar de todo o seu percurso profissional ser feito "dentro do regime".

O clique para Joana Reis sobre a profissionalização da campanha dá-se quando se apercebe de que "é contratado um fotógrafo profissional", António Velhote, "para fazer a cobertura" das ações de Delgado. A intenção é poder registar a campanha e fazer chegar a jornais estrangeiros imagens que escapem à censura do Estado Novo.

"António Velhote entregava estes trabalhos da campanha no escritório de Santos Silva, escondia sempre os negativos das fotografias, que revelava e imprimia, de forma a fazê-las circular de mão em mão, para que o maior número de pessoas pudesse ter acesso", conta Joana Reis. É Velhote que se empoleira numa varanda para fotografar Delgado e a imensa mole humana que o saúda na Praça Carlos Alberto, no Porto.

As marcas "americanas" da campanha de Delgado passam também pelo uso de slogans, como o "general sem medo", epíteto que se cola ao militar entre os populares, ou mesmo o uso da trindade de ideias da Revolução Francesa: "Liberdade, igualdade, fraternidade" (mostrado numa faixa utilizada que é "decalcado graficamente de um cartaz que Eisenhower usou na sua campanha, em que se lia "Paz, prosperidade, progresso"").

A sua propaganda vai assentar em imagens que se colam aos símbolos do país, como no autocolante copiado de Eisenhower, fazendo-se transportar num carro descapotável, como o americano, subindo a lugares mais altos para se fazer ver, abrindo os braços, parando à passagem da comitiva, depondo flores em monumentos nacionais, estratificando a sua propaganda consoante o público (professores, funcionários públicos, mulheres, jovens, católicos...).

"É quase a campanha porta-a-porta americana", constata Joana Reis, com a escolha criteriosa de quem fala nos comícios, assumidos como "espetáculos políticos". No livro, a autora nota que "nem tudo é profissional na campanha", mas "muitas das suas componentes são já profissionalizadas".

Um último exemplo: na véspera da conferência de imprensa que lança a candidatura, no Chave de Ouro, no Porto, Delgado antecipa com a sua entourage questões de jornalistas e prepara respostas. Sobre Salazar seria algo como: "Ao ser eleito, como confiadamente o espero, tenho a convicção de que o senhor presidente do Conselho, por motivos que são óbvios, será o primeiro cidadão a compreender que se restabeleceram as normalidades constitucionais, que não há mais lugar para o exercício do poder pessoal." Saiu-lhe o visceral "obviamente, demito-o".

O livro: Uma Campanha Americana - Humberto Delgado e as Presidenciais de 1958, Tinta-da-China, 18,90€

A autora: Joana Reis é jornalista de política da TVI e apresenta na TVI24 o programa Ephemera, com Pacheco Pereira.