Sociedade
14 agosto 2022 às 22h13

Espite, a aldeia que volta a encher-se de gente (e de vida) em agosto

No concelho de Ourém - um dos mais marcados pela emigração desde sempre -, o comércio organiza-se para que nada falte aos emigrantes. Os cafés alternam os dias de animação, as associações marcam eventos para agosto e assiste-se agora a um fenómeno curioso: depois de os portugueses terem importado a arquitetura francesa, são os franceses que compram casas na aldeia e recuperam a traça original.

Andreia pousa a bandeja de metal sobre a mesa de plástico amarelo, agora recheada de bebidas frescas, como agosto pede: "Vamos lá ver se não me esqueci de nada". A empregada da padaria/pastelaria de Espite desfia um rol de copos de Martini com cerveja, imperiais, sumos de laranja e colas para um comboio de quatro mesas que acabou de se formar. Um clássico na ampla esplanada, que por estes dias não tem mãos a medir. Por agora ainda sobram duas mesas, não tarda nem cadeiras haverá vagas. Por aqui todos combinam jantar no festival das sopas, que o Clube Desportivo volta a organizar este ano, dois anos depois de a pandemia ter interrompido essa e outras festas. Como a maior de todas, denominada de "festa grande", que se realiza de 19 a 22, em honra do Sagrado Coração de Jesus e Nossa Senhora do Rosário, e para a qual já estão os arcos montados, mesmo que ainda falte algum tempo. "Agora temos festas todos os dias", já avisara a presidente da junta, Dulce Mateus, quando o DN lhe anunciou uma visita à aldeia. Estamos numa das freguesias do concelho de Ourém mais marcadas pela emigração, há mais tempo. E por isso o contraste é tão notório. "Se tivéssemos apenas uma pequena parte desta gente, no resto do ano, aqui a morar... éramos uns sortudos", conclui Daniel Graça, 28 anos, um dos residentes - mesmo que o casamento o tenha levado para uma aldeia ao lado, não o afastando contudo da vida do Clube Desportivo de Espite.

Mas voltemos à esplanada da padaria, que hoje cede a noite de música ao vivo ao Café Vieira, e por isso está mais "descansada", se é que assim podemos dizer. Desde que entrou agosto que os dois cafés repartem as noites da semana alternadamente com programas festivos.

Estrategicamente sentado, António Cardoso comenta com dois amigos a azáfama que vai pela Rua da Escola, o movimento de carros, e enfim, tudo à sua volta. "Espite agora é uma ilha francesa. Só se ouve falar francês. Este ano vieram todos". Os seus também, mas rumaram entretanto para outras paragens, como há de contar ao DN o antigo operário especializado da construção civil, orgulhoso de 35 anos de descontos em França, para onde embarcou num comboio em 29 de março de 1961. Quando chegar a outubro completa 83 anos, que são agora feitos de alguma solidão. Ficou viúvo há dois anos. Os dois filhos e netos moram em França, onde nasceram, e onde se fez a vida da família, primeiro em Champigny, depois em Poissy. António é o protótipo do emigrante português que trabalhou de sol a sol. "Comecei por ser pedreiro, acabei como capataz. Fiz de tudo na empresa e fui trabalhar para toda a parte", conta ao DN, enfatizando os tempos na Arábia Saudita e na ilha de Reunião. "Eram tempos duros. Mas aqui era pior, porque ao menos lá havia trabalho e dinheiro para ganhar. Aqui trabalhava para ganhar 10 tostões", recorda.

António Cardoso - que já é filho de um emigrante, o pai emigrou aos 18 anos e foi quem lhe mandou o contrato de trabalho, nesse início da década de 60 - faz parte daquela franja que conseguiu ir para França legalmente, antes dos relatos duros que a ditadura de Salazar imprimiu, com milhares a atravessarem a fronteira "a salto". "Veja bem, o meu pai emigrou antes da guerra de 1914. Isto é uma terra onde toda a gente tinha que emigrar, desde sempre".

Ao lado, a mesa comprida levanta-se, numa logística que demora algum tempo. Entre adultos e crianças perfazem mais de uma dúzia. Alberto de Oliveira paga a despesa. Tem 62 anos, ainda não tinha um ano e meio quando emigrou para França. "O meu pai já lá estava, e então veio buscar-nos, a mim e à minha mãe. Depois nasceram mais três irmãos lá" - em Seine-Saint-Denis. O antigo técnico de máquinas industriais já está reformado, e tem agora todo o tempo para regressar "várias vezes ao ano, passar tempo aqui na terra, que eu adoro, e desfrutar do clima e deste ambiente". A mulher, Joelle, é francesa. Sorri enquanto falamos, de olhar atentos sobre os netos, Ialita e Elliot, este com poucos meses e por isso ao colo da mãe, Aurélie. A matriarca da família é Irene Trindade de Oliveira, agora viúva, que em 1982 regressou a Portugal, com o marido. "Agosto para mim é uma alegria, porque os tenho a todos aqui", confessa ao DN, dando conta dos oito netos e cinco bisnetos, que resultaram desses quatros filhos a quem sempre se dedicou. Em França, nunca trabalhou fora de casa.

À entrada do festival de sopas, que acontece no marchódromo de Espite (a localidade chegou a ser uma referência nas marchas populares da região), que agora volta a ser usado, Daniel Graça distribui pulseiras a quem chega, em troca de 15 euros que dão direito a um kit com uma tigela de barro, colher, copo e senha para a sobremesa. Tem a ajuda de Armando Parreira, 55 anos, o mais dedicado dos lusodescendentes à causa coletiva. Desde que chega à aldeia até ir embora, Armando envolve-se em tudo. "Nós brincamos com ele, porque até parece que tira férias para trabalhar", diz Daniel.

Armando já perdeu os pais, e agora já é avô. Conheceu a mulher em França, numa peregrinação a Lourdes, mas, por ironia, "ela também era de Espite". A irmã, que tal como ele, também nasceu em Ormesson-sur-Marne, acabou por regressar a Portugal definitivamente. "Volto aqui pelo menos três vezes por ano. Tenho a minha irmã, os meus sogros, e tenho esta malta toda do clube. Gosto muito de vir ajudar. Gosto especialmente de vir cá no 1 de novembro". Por causa do Dia de Todos os Santos? - perguntamos. Não. "Fazemos um comboio por todas as adegas... uma espécie de rally tascas. É um grande convívio". Lá, também se dedica ao associativismo, através de uma organização que promove batismos de voo para crianças deficientes, os "Cavaleiros do Céu". E conseguiu passar esse gene solidário aos filhos.

Um dos mais velhos no recinto é Manuel Marques, o "ti Martinho", como lhe chamam vizinhos e amigos. Natural do lugar do Areeiro, apanhou o comboio que o levaria até à região de Champigny- sur- Marne, onde ainda hoje mora. Mas os primórdios fizeram-se de dureza. Vivia numa barraca, no Bidonville, e lá ficou os quatro primeiros anos. Tinha 17 anos quando deixou Espite. Agora que já fez 77, está naquela fase em que passa "metade do tempo lá e outra metade cá". "Sabe uma coisa? Agora venho quando me apetece. Gosto muito disto, mas também gosto muito de França, que para mim foi uma segunda mãe. Deu-me trabalho e deu-me dinheiro".

É esse espírito de gratidão que melhor descreve as gerações mais velhas, aquelas que ainda falam português entre si.

Espite é, por estes dias, uma mistura de culturas particular. Começou por ser visível há anos, na arquitetura das casas que foram sendo construídas, replicando modelos das diferentes regiões francesas. Até que o processo de aculturação se inverteu: há franceses que compararam casas em ruínas e agora as recuperam, com a traça original, devolvendo às aldeias o aspeto antigo. Aconteceu com os cunhados de Sérgio dos Santos, o emigrante radicado em Lille, um dos poucos da sua idade que nasceu em Portugal "na maternidade Bissaya Barreto, em Coimbra", como gosta de frisar. Tinha apenas seis meses quando os pais o levaram para França. Foi lá que conheceu a mulher, Sandra, francesa. Mas os dois filhos, de 21 e 16 anos, dizem-se portugueses. Encontramos a família no café Vieira, quando já passa das 23 horas e o DJ Cazé anima a noite com música dos anos 80. "Os meus cunhados gostaram tanto disto quando cá vieram de férias que, um dia, ao pequeno almoço, nos anunciaram que iam comprar aqui uma casa", conta Sérgio ao DN, os olhos marejados quando fala da terra-natal, de como era ali que gostaria de morar sempre. "Se cá houvesse condições para isso". Quando casou, Sandra não gostava muito da aldeia. Ao princípio nem queria vir de férias. Mas depois foi conhecendo as pessoas, e hoje também ela não passa sem Espite. "São as minhas raízes. Agora já são as nossas", afirma Sérgio, 45 anos, à beira da pista onde os amigos dançam o maior êxito dos austríacos Opus, Life is Life. Chegou há uma semana, depois de uma viagem de 1.900 km percorridos a sonhar com isto: as noites do café Vieira ou da pastelaria, do festival de sopas, do trail, das festas e romarias todas. "Sabe porquê? Porque o melhor que França tem é a estrada para Espite".

Na aldeia, o comércio organiza-se para que agosto seja perfeito para todos. E não é apenas na alternância da animação. Um papel afixado pela gerência do café Vieira - a cargo dos irmãos Paulo, Cristina e Beto, depois de terem convencido a mãe Lurdes a aposentar-se, durante a pandemia - dá conta de que até final do mês "estará aberto todos os dias". O mesmo acontece com a churrasqueira. Quando chegar a setembro, provavelmente esta voltará a funcionar apenas ao fim de semana. Quem está ali todos os dias é Beto, atrás do balcão, o mais novo dos três. Os mais velhos enveredaram por outras áreas, mas agosto chama a família inteira: as filhas de Paulo e Cristina, universitárias, servem cafés, imperiais e caipirinhas às centenas de emigrantes que passam por ali naquela noite. "No mês de agosto tudo funciona, porque há muita gente", conta Paulo, que escolheu morar ali, mas trabalha em Leiria, numa empresa por conta própria. Já Cristina mora em Leiria e trabalha em Ourém.

"O nosso problema aqui é não termos emprego. Foi sempre por isso que as pessoas emigraram", conclui Daniel Graça, o entusiasta presidente da Assembleia Geral do clube. É desenhador-projetista numa empresa da vizinha freguesia da Memória, já no concelho de Leiria. Também ele nasceu em França, de onde voltou ainda criança. Olha entusiasmado para as dezenas de miúdos que enchem o parque infantil, enquanto conversa com o DN. Casou há um ano, e foi morar para a Mata do Fárrio, uma aldeia próxima. "Mas Espite para mim é tudo. Se tivéssemos uma pequena parte desta gente no resto do ano... destes cachopos, tínhamos o futuro garantido. Agosto é uma felicidade por causa disto. Traz-nos um dinamismo impressionante".

Por um mês, uma freguesia que não chega a ter mil habitantes, triplica a população e enche-se de vida em cada rua, em cada canto. Quando chegar setembro, há-de ficar de novo despovoada. Mas até lá, centenas vão entrar todos os dias no café Vieira e na Pastelaria, e talvez reparem na beleza da frase de António Lobo Antunes, desenhada na parede, junto à vitrine do pão: "Percebo bem que os emigrantes só pensem em regressar: há um charme lento neste país que é irresistível".

Ao final da noite a organização vai perceber que ali estiveram quase 500 pessoas, mais de metade dos habitantes de toda a freguesia ao longo do ano. Nas mesas as conversas são como cerejas, mas há 20 sopas diferentes para provar, além de amoras, melão e gelatinas servidas pela secção de Espite dos Bombeiros Voluntários de Ourém. Toda a receita reverte para a coletividade, e os emigrantes sabem disso. Depois, compram cachecóis do clube, pólos e camisolas, numa demonstração de bairrismo impressionante.

O Clube Desportivo de Espite é uma das quatro associações da freguesia. Já se dedicou ao futebol, mas quando deixou de ter gente para isso, acabou com a modalidade. Atualmente, é o trail running que impera, muito à conta dos irmãos Micael e Filipe Costa, presidente e tesoureiro da direção, respetivamente. O segundo, mora na Covilhã.

A infância e juventude de Dulce Mateus foram passadas entre Condeixa e Coimbra, sem contactos diretos com o fenómeno da emigração. Mas o destino reservara-lhe um rapaz de Espite para marido, que nascera em França, como quase todos os da sua geração - e haveria de a levar a morar na aldeia que hoje a trata por presidente: a primeira mulher a liderar os destinos da junta de freguesia, já no segundo mandato. Porém, não foi pela porta grande que a jovem Dulce entrou, há 25 anos. "O mais engraçado é que o meu primeiro emprego aqui na terra foi a varrer ruas e a limpar casas de banho", conta ao DN, ao final da noite em que, também ela, serviu muitas das sopas no festival organizado pelo Clube Desportivo.

Conta a história com orgulho, enquanto faz a retrospetiva da sua inesperada entrada na vida política (foi eleita através de uma coligação PSD/CDS) que nunca lhe passara pela cabeça. Da mesma maneira que nunca imaginou como poderia uma terra transformar-se da noite para o dia com a chegada dos emigrantes.

"Percebi isso logo assim que aqui cheguei. A população triplica, no mínimo. E é uma alegria, para todos nós que aqui estamos no resto do ano, e que assim acabamos por ter um verão diferente. É por isso que eu digo que isto em agosto parece o Algarve. Temos a calmaria o ano inteiro, e depois é isto". Isto é a azáfama ao redor.

Os últimos censos contabilizaram 984 habitantes. "Perdemos população, mas felizmente não tanta como estávamos à espera. Porque nestes últimos tempos, depois de 2020, com a pandemia, houve emigrantes que vieram, até alguns casais novos com filhos, que com a covid regressaram e passaram a trabalhar aqui a partir de casa. Isso para nós é excelente. São pessoas jovens e dinamizam a freguesia. É disso que nós precisamos", afirma Dulce, certa de que "ao longo do ano calha sempre aos mesmos fazer tudo". Refere-se às quatro associações da freguesia, "muito proativas, mas onde trabalham sempre os mesmos".

"O que nos preocupa, mais do que haver pouca população, é a maioria ser envelhecida", admite a presidente da junta, que mantém com os fregueses uma relação de grande proximidade. "Além de uma população idosa, temos gente muito isolada. Muitos eram emigrantes, regressaram, não têm cá os filhos, nem os netos, e daí a junta também ter um papel muito importante junto deles. Vamos lá a casa, ajudamos nas tarefas que nem era suposto... mas é esse o nosso grande desafio".

Foi a pensar nesses que Dulce e a equipa criaram "A Carrinha que Junta", um projeto da autarquia que duas vezes por semana vai buscar os idosos a casa e os leva a fazer atividades no centro da freguesia. "Além de fazerem ginástica, num programa que se chama "freguesia ativa", as pessoas aproveitam esse dia para irem ao supermercado, para pagarem as contas, para tratarem das suas coisas. E as pessoas que já não podem sair de casa fazemos nós por elas. Por exemplo, nos dois anos em que era tudo por mail, as receitas, as consultas, éramos nós na junta que tratávamos disso tudo".

"Para mim, isso é que é o verdadeiro serviço público, que me faz sentir útil", afirma Dulce Mateus. "Há pessoas que valorizam muito obras, eu valorizo muito este trabalho", sublinha, mesmo sabendo "que as obras fazem falta", sendo que a autarquia "tem muitos projetos em andamento".

Quando o anterior executivo a abordou para se candidatar ao cargo, "a minha primeira reação foi rir-me. Eu nunca me imaginei na política", admite Dulce ao DN. Ainda por cima pesava a sua condição feminina, num meio rural, envelhecido, e ela conhecia bem o terreno que pisava. O facto é que acabou por vencer as eleições com maioria absoluta. E hoje sente o respeito por parte da população. Nunca mais se ouviu ninguém duvidar das suas capacidades: "então mas é ela que vai limpar os aquedutos?". Porque se ela não for, mandará alguém.

No que toca à comunidade emigrante, Dulce faz um esforço na hora de os reconhecer. "Muitos só conheço os avós ou os pais". E na aldeia, sabe que não há casa que não seja tocada pela diáspora". Naquele dia, olhando à volta, não teve dúvidas: "se pensar, não sei se está aqui mais alguém que não seja emigrante ou que não tenha sido, à exceção de mim".

dnot@dn.pt