Desporto
23 junho 2021 às 07h23

Deschamps vs. Santos. O superteimoso contra o teimoso moderado

Um é campeão do mundo (França), o outro campeão da Europa (Portugal). O francês tem um passado grandioso como jogador em contraste com a carreira modesta do engenheiro. Hoje encontram-se mais uma vez no Campeonato da Europa.

Fernando Santos e Didier Deschamps. Um é campeão da Europa (Portugal 2016), o outro é do campeão do Mundo (França, 2018). Esta quarta-feira encontram-se pela sexta vez, num Portugal-França do Euro2020 (20.00, RTP1). Um jogo entre dois treinadores que parecem gémeos separados por 14 anos. Em comum a teimosia que os fez serem questionados antes de serem honorificados e muito mais...

Apesar de Fernando Santos ser mais velho, mais alto e espadaúdo, a postura, o porte, a elegância e o cabelo grisalho não diferem muito da imagem física de Didier Deschamps. E o que dizer do feitio e da cara fechada? Ambos de signo balança (nasceram em outubro) são avessos a redes sociais e homens de família à antiga. O português é casado com Guilhermina há 40 anos e tem dois filhos, enquanto o francês casou com Claude há 35 e tem um filho.

Santos é mais ativo em causas sociais, Deschamps mais interventivo em questões políticas e reivindicações sociais. Um dos passatempos preferido do gaulês é discutir política com Le Graët (presidente da Federação Francesa de Futebol e político do partido socialista) e o seu melhor amigo Nagui (apresentador de rádio e TV). O português vive em Cascais, é um homem de fé e vai à missa, enquanto o francês vive na fronteira com o Mónaco e passa os tempos livres no ginásio a fazer musculação.

São os dois selecionadores nacionais com mais tempo, depois de Joaquim Low que já lidera a Alemanha há 15 anos. Deschamps é selecionador há 11 e Fernando Santos há sete. Em comum o facto de ambos gostarem do jogo tático e eficiente. O jogo bonito não os move, interessa-lhes é vencer. Ambos ganharam os grupos que lideram com estratégias mentais idênticas, embora diferentes. Fernando Santos usou a capa de filósofo positivista para convencer os jogadores que podiam ser campeões da Europa, enquanto Deschamps foi mais racional e cientifico. O gaulês é um devorador de livros gestão, desenvolvimento pessoal e poder da mente e foi assim que conseguiu que os atletas acreditassem que podiam ser campeões do mundo, mesmo depois de perder a final do Europeu com Portugal.

Ambos tiveram problemas com o 4x2x3x1 e ambos têm à disposição uma geração de jogadores do melhor que Portugal e França já tiveram. No confronto direto, "DD" ganha ao engenheiro. O francês ganhou três jogos, dois particulares e um oficial, mas empatou um e perdeu outro (o tal de 2016 que valeu o título a Portugal).

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Ambos foram jogadores, mas aí o francês leva a melhor. O engenheiro não chegou sequer a um grande ou à seleção, enquanto Didier brilhou ao mais alto nível no Marselha, na Juventus e na seleção francesa. "DD"", assim lhe chama a França, é um dos gigantes do futebol francês. Foi ele, o capitão, que levantou o troféu do Mundial 1998. Não há honra maior no futebol mundial, que essa. Nascido em Bayonne (15 de outubro de 1968), na parte basca francesa, chegou a praticar râguebi, mas fixou-se na bola redonda na escolinha do Aviron Bayonnais. Aos 15 anos foi descoberto por um olheiro do Nantes, onde se tornou profissional e foi chamado à seleção por Michel Platini.

Médio organizado, aguerrido, incansável, lutador e ambicioso mandava no meio campo e ganhou a alcunha de "pequeno general". Mudou-se depois para o Marselha, onde foi campeão ao lado de Papin e Tigana e ganhou uma inimizade para a vida: Cantona (lutam em tribunal por um diz que disse ocorrido em 1996). Depois recusou jogar no PSG e liderou o Marselha ao título europeu em 1993. Um escândalo com a gestão de Bernard Tapie mandou o clube para a segunda divisão e ele acabou na Juventus. Foi em Turim que brilhou mais sob a batuta de Lippi. Ao lado de Paulo Sousa conquistou mais uma Champions. "Nunca fui um jogador talentoso como Zidane ou Del Piero. Então compensava essa falha trabalhando duro e ajudando a equipa", confessou Didier.

O percurso do Fernando Santos jogador foi bem mais modesto. Nascido em Lisboa (10 de outubro de 1954) começou a jogar no Operário e passou para o Graça até ir a uma captação ao Benfica. Tinha 17 anos e passou no teste, mas o pai exigiu-lhe aproveitamento escolar para o deixar representar os encarnados. Antes de completar 23 anos já o promissor defesa central estava licenciado em Engenharia Eletrónica e Telecomunicações. O canudo valeu-lhe a alcunha de engenheiro.

Saiu da Luz sem vestir a camisola principal do Benfica e mudou-se para o Estoril com Jimmy Hagan. Essa seria uma decisão muito importante para o futuro como técnico. Convidado para ser treinador, Fernando disse que não, mas aceitou ser adjunto de António Fidalgo que seis meses depois foi para o Salgueiros e o promoveu. Passados seis anos e meio foi despedido. Ficou magoado e triste. Quando chegou a casa tinha lá uns amigos, que lhe propuseram ir a um retiro do movimento dos Cursilhos de Cristandade. Quando voltou aceitou treinar o Estrela da Amadora "para tirar as teimas sobre se tinha ou não competência para ser treinador". Na Reboleira deu nas vistas e chegou ao FC Porto, onde conquistou o famoso pentacampeonato dos dragões. Treinou ainda o Sporting e o Benfica.

Assim como o português também o francês valoriza a palavra e a frontalidade. Apesar de uma carreira recheada de objetivos cumpridos, "DD" não tem boa Imprensa (ao contrário de Santos) e foi muitas vezes contestado ou aplaudido com desconfiança. Deschamps estreou-se no Monaco mal tinha pendurado as chuteiras, com 32 anos, lutando pelo título francês até à última e chegando à final da Liga dos Campeões ... que perdeu para o FC Porto de José Mourinho.

Um percurso que lhe deu acesso à elite. Não havia como recusar o banco da sua vecchia signora, mesmo que isso significasse treinar na Série B, após o Calciocaos levar a Juventus a uma descida de divisão na secretaria. Uma semana depois de garantir a subida de divisão pediu a demissão. Precisava serenidade e estabilidade, mas o clube não lhe garantiu o lugar. Ficou dois anos parados até assumir o Marselha e ser campeão francês com o Marselha, agora como treinador, quebrando um jejum de 18 anos.

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Como prémio pelo título francês, "DD" recebeu um convite para treinar o Liverpool, mas seguiu o coração e escolheu a seleção francesa. Chegou ao cargo em julho de 2012 após a má campanha de Laurent Blanc no europeu. Herdou uma seleção ferida no orgulho e esfrangalhada na honra depois do Mundial 2010 (um jogador agrediu o selecionador e os jogadores fizeram greve). Teve ainda de lidar com o escândalo sexual, que envolveu Valbuena e Benzema, com jogador do Real a acusá-lo de racismo por o excluir até hoje.

Teve o pior começo dos últimos 50 anos no banco da seleção francesa, com cinco derrotas e quatro empates nos primeiros 13 jogos. Teve de jogar um play-off com a Ucrânia para se apurar para o seu primeiro mundial (2014). Perdeu com a Ucrânia (2-0) e sentiu o mundo desabar por insistir no esquema frágil (4-2-3-1), com Samir Nasri em vez de Valbuena. Na segunda mão alterou para o um 4-3-3, venceu, por 3-0, e apurou-se para o Mundial 2014... onde esteve o "grego" Fernando Santos.

Depois do sucesso em clubes gregos, o português foi anunciado como selecionador da Grécia, com a difícil missão de fazer esquecer Otto Rehhagel, que em 2004 conquistou o europeu em Lisboa e deixou Portugal anestesiado até 2016. No Brasil conseguiu o melhor desempenho de sempre da Grécia em mundiais ao passar a fase de grupos. No jogo com a Costa Rica disse adeus ao mundial com uma expulsão. O castigo aplicado pela FIFA quase inviabilizava o sonho de treinar Portugal e fazer história no futebol português.

A federação tentava encontrar um substituto para Paulo Bento após a desastrosa participação no Mundial 2014 e desviou o engenheiro da reforma num belo monte no Alentejo. Conseguiu reduzir o castigo de oito para dois jogos com base na carreira limpa e respeitosa do mister e assim, em outubro de 2014, o engenheiro pode estrear-se ... frente à França de Deschamps (derrota, por 2-1) no Stade de France, onde dois anos mais tarde conquistou o Euro 2016. E foi exatamente seis anos depois da estreia e contra o mesmo adversário e no mesmo estádio, que Santos passou a ser o treinador com mais jogos na seleção (faz hoje o jogo 77).

Tal como o "superteimoso" Didier, também o teimoso moderado, como se chama a si próprio Fernando Santos, não teve tarefa fácil ao início, mas optou por uma espécie de revolução silenciosa, que passou em grande parte pela recuperação de jogadores vetados, como Quaresma. Uma estratégia que o ajudou a ganhar o grupo e juntar a Liga das Nações ao currículo dois anos mais tarde. O mundo ficou depois à espera de mais Portugal no Mundial 2018, que acabou por ser ganho pela França (bateu a Croácia na final, por 4-2).

Didier tornou-se assim no terceiro campeão do mundo como jogador e treinador, depois de Zagallo (Brasil) e Beckenbauer (Alemanha). No final foi cumprimentar os derrotados um a um. Afinal, também ele sabia o que custava perder uma final...

Trabalho inicialmente publicado a 14 de novembro de 2020 e agora atualizado.