Pedro Soares. "O PS tem-se deixado capturar pelo PSD"

Dirigente do Bloco de Esquerda, presidente da comissão parlamentar de Ambiente, Pedro Soares tem em mãos os dossiês da habitação e da transferência de competências para as autarquias. Defende que a habitação tem de ser encarada como "um dos pilares do Estado social" e diz que o BE vai exigir mais investimento público nesta área no Orçamento do Estado para o próximo ano. Quanto à descentralização, lamenta o acordo dos socialistas com o PSD, para mais quando se repete em questões como as leis laborais - "o jogo taticista tem sido sempre a desgraça do PS".

O BE tem sido muito crítico do processo de descentralização defendido pelo governo. Porquê?

O Bloco não é crítico relativamente à existência de um processo de descentralização, pelo contrário, sempre o defendeu. Mas o que está a acontecer é um processo de municipalização. Há aqui dois problemas. Em primeiro lugar, a grande maioria dos nossos municípios não tem escala suficiente para exercer um conjunto de competências que o governo - e o PSD - lhes querem atribuir. Cerca de 70% dos nossos municípios têm menos de 30 mil habitantes. São pequenos municípios, com uma escala diminuta, com grandes dificuldades em termos de competências técnicas, de capacidade financeira. Por outro lado, há uma hiperconcentração de poderes nos presidentes de câmara, que atinge aspetos que consideramos essenciais - a autonomia das escolas, do ensino, das próprias políticas de saúde.

Na perspetiva do BE, não há um processo de descentralização?

Não. Há uma alienação de responsabilidades do Estado central para o nível municipal, há aqui um salto, passa diretamente de uma escala central para a local, sem passar por uma escala regional - o que é um problema. O próprio Presidente da República, quando promulgou a legislação, tanto a lei-quadro da descentralização, como as Finanças Locais, suscitou essa questão. O que é que isto vai originar? Que muitos dos municípios vão ter de subcontratar empresas, que vão agregar vários municípios para prestar esses serviços. Na prática o que vai acontecer é um processo de privatização de um conjunto de serviços que neste momento são exercidos ao nível da administração central. E isto preocupa-nos bastante. O Presidente da República levanta uma outra questão, relativamente à capacidade financeira para exercer essas competências, que de facto é um problema que também está colocado. Nós ainda não conhecemos os diplomas setoriais, é preciso ver que meios há para essa descentralização.

Esses diplomas setoriais, ou pelo menos parte deles, serão decretos do governo. O BE admite pedir a apreciação parlamentar desses diplomas?

É evidente que sim, equacionaremos essa possibilidade em função do conteúdo.

Este processo de descentralização foi acordado entre o PS e o PSD. Como é que avalia o acordo entre os dois partidos?

Nós temos, nesta legislatura, um momento político excecional para avançar com um processo de descentralização - que o PSD não quer, e o CDS também não. Lamentamos muito que o PS e o governo tenham optado por fazer este processo em acordo com o PSD, porque era óbvio que nunca iria ser um processo de descentralização, mas de municipalização. Tem sido sempre essa a orientação política do PSD, desde o ex-ministro [Miguel] Relvas. O PS deixou-se capturar por essa orientação com o acordo que fez com o PSD. Tinha todas as condições para levar a cabo um processo que deveria passar pela criação de estruturas regionais com legitimidade democrática própria, que teriam capacidade e legitimidade para levar a cabo esse processo de descentralização.

Além da descentralização, esta "aliança" entre PS e PSD estendeu-se a outras matérias, por exemplo, a legislação laboral. Os partidos de esquerda passaram de parceiros preferenciais a parceiros de ocasião do PS?

A isso tem de ser o PS a responder. O que posso dizer é que, em matérias que são decisivas para uma mudança qualitativa no país, o PS tem-se deixado capturar pelo PSD. Isso é um facto. Tanto a descentralização como a legislação laboral são exemplos claros disso. A esquerda parlamentar tem vindo, desde o início, a insistir na necessidade de alteração das leis laborais. O PS, que numa fase inicial abriu as portas para alterações a esse nível, de repente fechou-as, estabeleceu um acordo com o PSD, e bloqueou alterações que são muito importantes para a sociedade.

A que é que atribui esse posicionamento do PS?

O PS está num dilema. Por um lado, percebe que precisa da esquerda para garantir o governo, para ter uma maioria parlamentar que sustente o governo, por outro lado está a posicionar-se já para as próximas eleições legislativas, em que acha que é ao centro que vai disputar uma eventual maioria absoluta. Este jogo taticista tem sido sempre a desgraça do PS. Querer ter um pé aqui e outro acoli, um pé à esquerda e outro à direita, normalmente o que dá é perder o pé. O PS verá o que vai querer fazer, o próximo Orçamento do Estado vai ser bastante claro relativamente a esta matéria. O BE mantém-se inteiramente disponível para contribuir para que se estabeleçam maiorias no Parlamento no sentido de mudanças significativas na política portuguesa.

Acredita que haverá Orçamento do Estado para o próximo ano?

Porque é que não haveria? Julgo que o governo está a trabalhar nisso, já houve algumas reuniões com os parceiros parlamentares... Vamos ver as propostas concretas do governo, o Bloco também terá as suas. Fazer depender a estabilidade de uma maioria parlamentar da negociação orçamental não me parece que seja um bom caminho. O que nós defendemos é que o debate e a negociação orçamental devem ser muito claros, muito transparentes. É nesse âmbito que faremos o debate, isso não significa falta de estabilidade política, pelo contrário.

O primeiro-ministro é que disse, numa entrevista ao DN, que se não houvesse Orçamento para o próximo ano se demitia...

O primeiro-ministro poderá utilizar as formas que entender para pressionar a maioria parlamentar, compreendemos isso. Mas nesse caso é o primeiro-ministro que cria fatores de instabilidade política, não são os partidos à esquerda.

"Habitação tem de ser um dos pilares do Estado social"

O Bloco já decidiu o que vai fazer, depois do veto do Presidente da República ao diploma sobre o direito de preferência dos inquilinos?

Esta iniciativa do BE visa garantir um direito que, apesar de estar previsto no Código Civil, não está a ser praticado, nomeadamente quando se trata de vendas agrupadas de imóveis. O caso da Fidelidade é um exemplo, mas há outros, em que milhares de pessoas não podem exercer um direito que está previsto na lei, mas que é contornado por existir uma lacuna no Código Civil. A iniciativa do BE previa que houvesse uma passagem obrigatória [de um imóvel integrado num prédio] a propriedade horizontal, antes da venda, de modo a que tudo ficasse claro e os inquilinos pudessem exercer o seu direito de preferência. As propostas de alteração que o PS e o PCP apresentaram não iam bem nesse sentido, consideravam que esse direito poderia ser exercido mesmo não havendo passagem à propriedade horizontal. E foi precisamente nesse ponto que o Presidente da República suscitou dúvidas, que vamos ter de resolver já no início da próxima sessão legislativa. Há milhares de pessoas com este problema e não podemos deixá-las desprotegidas.

Portanto, se o diploma tivesse ido para Belém na versão inicial do BE não teria existido este veto, é isso?

É o que se depreende, de forma direta, da mensagem do senhor Presidente da República, que considera que o diploma tem aspetos positivos, mas suscita estas duas questões: uma relativamente à clareza do valor que é atribuído a cada fração; a outra sobre os direitos do inquilino residencial e do inquilino empresarial. Em relação a este último aspeto... compreendemos. O direito à habitação é um direito protegido constitucionalmente, enquanto o empresarial não o é. Poderá ter de haver aqui alguma graduação.

Graduação quer dizer o quê?

Quem tem esse direito, de forma inequívoca e direta, são os inquilinos residenciais, que têm o direito de preferência para poder manter a habitação. Em relação aos outros, não nos incomoda - pelo contrário - que também o tenham. Mas esta preocupação do Presidente da República merece reflexão.

O veto surpreendeu-o?

Julgo que não teria sido necessário. Foi uma espécie de bomba atómica, que veio, ainda para mais, num momento delicado, porque a Assembleia da República está fechada e não pode responder de imediato ao veto, como certamente o teria feito se estivesse a funcionar. Vamos ficar aqui um tempo grande até que se resolva a questão e, entretanto, os inquilinos continuam desprotegidos. O direito à habitação, que é uma preocupação suscitada também pelo senhor Presidente da República, não está garantido.

Este veto deu tempo a que casos como o da Fidelidade possam avançar?

Obviamente não posso dizer que é intencional, mas objetivamente foi isso que aconteceu. As vendas agrupadas que ainda não estavam concretizadas e que, no caso de não haver veto, iriam ficar abrangidas por esta nova legislação ganharam tempo para concretizar os negócios e procurarem ficar fora da nova legislação.

Em setembro, a Assembleia da República retomará os trabalhos em torno de um pacote de mais de duas dezenas de propostas sobre habitação...

É necessário fazer uma distinção nessas iniciativas. Há um conjunto delas, que na maior parte dos casos vêm do CDS e do PSD, que procuram manter o statu quo, este mercado liberalizado de arrendamento. E outras que vão no sentido de promover alterações, como as do BE, que procuram regular o mercado da habitação. É necessário intervir com a maior rapidez possível. Todos os indicadores que temos tido mostram que se está a criar uma situação especulativa, a chamada bolha imobiliária, que tem que ver com esta liberalização do mercado que vem na sequência da legislação do governo anterior. É evidente que há fatores económicos que levaram a que essa liberalização tivesse este efeito - o aumento do turismo, o alojamento local, a questão dos residentes não habituais, o problema dos vistos gold, a falta de investimento na oferta pública de habitação, que é um problema gravíssimo. Aliás, é o primeiro-ministro que, na Assembleia da República, refere que está criada uma situação de caos social. Agora, há formas diferentes de encarar a questão. O ponto de vista do BE é no sentido de intervir na regulação do mercado, o PS está com muitas dificuldades a esse nível - procura sobretudo influenciar a atitude dos proprietários ao nível da fiscalidade. Neste ponto, parece-nos haver uma ou outra medida interessante, mas no essencial não vão ter um efeito significativo. Por uma razão simples: o mercado está de tal forma "sobreaquecido" que qualquer fundo imobiliário ou proprietário não vai nessa conversa.

O que é que responde a quem defende que um mercado menos livre vai levar a que os proprietários optem cada vez menos pelo arrendamento de longa duração?

O arrendamento produz mais-valias, produz lucros muito significativos, muito acima daquilo que é praticado, por exemplo, em investimentos financeiros. É um mercado que está a ter rendimentos elevados. Agora, ele está sobreaquecido, está com rendimentos especulativos. E isso está a criar uma situação de enorme dificuldade de acesso à habitação, e já não só por parte de setores sociais com maiores dificuldades económicas, mas inclusivamente por setores sociais com rendimentos médios. Hoje é praticamente impossível a uma família com rendimentos médios arrendar uma casa nas maiores cidades do país. E já não falo só em Lisboa e Porto, que é óbvio, se formos para Braga, Coimbra, Setúbal, Amadora, já está a acontecer isso.

O Estado tem de investir em mais habitação pública?

Ao contrário do que acontece na generalidade dos outros países da Europa, Portugal tem apenas 2% de habitação pública no seu parque habitacional, o que quer dizer que o Estado não tem qualquer capacidade de intervenção direta na regulação do mercado. A única forma de o fazer é através do aumento do investimento na oferta pública de habitação, e isso vai demorar algum tempo, como é óbvio. O segundo aspeto em que vai ter de se intervir, e aí com um efeito prático, real e imediato, é através de alterações legislativas, através da regulação do mercado. A questão essencial é que a habitação tem de ser encarada como um dos pilares do Estado social. Como, aliás, aconteceu ao longo das últimas décadas em outros países da União Europeia.

O BE está a negociar com o governo o Orçamento do Estado para o próximo ano. Vai fazer essa exigência?

Claro. O aumento do investimento público na habitação é uma das questões que temos de abordar.

Tem alguma meta definida?

Neste momento não queria colocar metas, nem sequer conhecemos quais são as disponibilidades orçamentais. O que é preciso é que, mais uma vez, as questões da habitação não sejam excluídas das dotações orçamentais, que foi o que aconteceu nos últimos anos, nomeadamente já com este governo.

A habitação tem sido um dos grandes temas na agenda política do Bloco. Esse discurso - e a imagem do partido - ficaram prejudicados pelo caso Robles?

O que prejudica o acesso à habitação é a inexistência de investimento público, a liberalização do mercado na sequência da lei Cristas - isso é que são os grandes constrangimentos. Tudo o resto são questões que se ultrapassam. A crise é de tal forma grande na habitação, as dificuldades no acesso à habitação são de tal forma gritantes, que estou convencido de que as pessoas não vão deixar divergir a sua atenção por um ou por outro caso.

Mas a ação do vereador do BE em Lisboa foi ou não incongruente com o discurso do partido?

A coordenadora do Bloco de Esquerda já se pronunciou sobre essa matéria e não tenho mais nada a acrescentar. Uma atitude de procurar obter mais-valias, de forma especulativa, no mercado da habitação, em Lisboa - ou onde seja - prejudica o acesso à habitação e põe em causa a perspetiva política que o Bloco sempre tem colocado relativamente à necessidade de garantir o direito à habitação.

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