11 JUN 2022
10 junho 2022 às 22h08

A via cazaque

Leonídio Paulo Ferreira

Usada para descrever populações eslavas nómadas que serviam os czares, mas faziam questão de impor limites ao poder destes sobre o povo, a palavra russa cossaco não por acaso deriva da própria palavra cazaque, que descreve a etnia maioritária no segundo maior país surgido da ex-União Soviética, também o nono maior do mundo, cerca de 30 vezes o tamanho de Portugal. Ora, cazaque quer dizer, na língua túrquica homónima, "homem livre", uma referência ao antigo estilo de vida nómada que prevalecia na estepe até pelo menos às primeiras décadas do século XX, quando a presença imperial russa, velha de dois séculos, se transformou em governação soviética e a sedentarização foi imposta pela força, tal como a coletivizacão. Morreram milhões de cazaques, de fome e frio, porque os animais que lhes foram retirados eram sinónimo tanto de alimento como de roupa.

Quando se desagregou a União Soviética, em 1991, surgiu um Cazaquistão independente, de certa forma herdeiro do canato que até ao século XIX foi aliado dos russos para depois ser incluído por estes no império. Liderado por Nursultan Nazarbayev, que chegou a ser pensado para vice-presidente de Mikhail Gorbachev, último líder soviético, o novo Cazaquistão negociou fronteiras, assegurou à numerosa minoria eslava todos os direitos, estabeleceu uma política de abertura ao mundo sem hostilizar Moscovo, mas ao mesmo tempo criando pontes com Pequim, Washington e Bruxelas. Num notável esforço de aceitação pela comunidade internacional, o Cazaquistão desistiu mesmo do arsenal nuclear, apesar de Semipalatinsk, no nordeste do país, ter sido onde Estaline e sucessores testaram meio milhar de bombas soviéticas.

Em janeiro de 2022, semanas depois da celebração dos 30 anos da independência, um protesto contra o aumento do preço dos combustíveis num país com abundante petróleo e gás natural transformou-se em vaga de violência que, explicável por causas diversas, acabou por expor as fragilidades do modelo de homem forte, o de Nazarbayev, pois, mesmo retirado desde 2019, o antigo presidente influenciava muito ainda e, sobretudo, havia um círculo de próximos que abusava da riqueza nacional. Foi o momento para o presidente Kassym-Jomart Tokayev, até então visto como um líder de transição, mostrar que além de um diplomata de excelência (foi embaixador e alto responsável da ONU) também era capaz de enfrentar uma crise e transformá-la numa oportunidade para a mudança que uma clara maioria dos 19 milhões de cidadãos cazaques ambicionava.

Perante a violência de janeiro, que causou mais de 200 mortos (incluindo agentes das forças de segurança), vieram a pedido tropas da aliança regional liderada pela Rússia proteger instalações vitais, mas, ao contrário de certas previsões, os soldados russos depressa se foram embora. Hoje pode pensar-se que Vladimir Putin estava então já com a atenção centrada na Ucrânia, que as tropas russas invadiram a 24 de fevereiro, mas a verdade é que Moscovo sempre teve cuidado em não dar razões de queixa aos setores mais nacionalistas cazaques, por exemplo não dando eco a vozes que, no próprio Parlamento russo, chegaram a defender a anexação de regiões do vizinho. Manter boas relações com as autoridades de Nur Sultan, apostando nas vantagens de ter no Cazaquistão túrquico e de islão sunita moderado um estabilizador da Ásia Central, parece continuar a ser a estratégia russa, mesmo com o atual choque com o Ocidente ou, de certa forma, mais ainda por causa disso.

Tokayev, que organizou e venceu um referendo no domingo passado que limita os poderes presidenciais e visa responder às exigências de mais transparência na governação e de mais democracia, ambiciona encabeçar uma segunda era de desenvolvimento do Cazaquistão, sem renegar os êxitos do antecessor, mas indo além do pai fundador na construção de uma sociedade moderna. Fazê-lo seria sempre um desafio, com a atual situação geopolítica tornou-se um enorme desafio. Mas o seu passado de diplomata dá-lhe uma experiência de equilibrismo que permite, embora com riscos de desagradar a uns e outros, não reconhecer a anexação da Crimeia pela Rússia em 2014, nem as independências recém-proclamadas no Donbass, mas também abster-se nas votações na ONU a condenar a invasão da Ucrânia.

O objetivo de Nur Sultan a médio-prazo será, além da reforma política interna (destinada a atenuar tensões de ordem classista, regional e étnica), também evitar que a relação com a Rússia tenha de ser definida em termos de ou a lealdade canina da Bielorrússia ou o conflito aberto, como no caso agora da Ucrânia. Há uma terceira via e o Cazaquistão, que não se importava de moderar eventuais negociações entre Moscovo e Kiev, quer que essa seja a sua. Vai depender em boa parte dos próprios cazaques serem livres, mas não só deles.

Diretor adjunto do Diário de Notícias