Nepal. "25 de abril, nunca mais!"

Mala de viagem (126). Um retrato muito pessoal do Nepal.

O voo partiu de Paro para Katmandu. Foi na capital nepalesa que me retive, apesar de ali se encontrar parte da cadeia montanhosa dos Himalaias, bem como o ponto mais alto do mundo, o famoso Evereste, atrativos maiores deste país. Se a curiosidade pelo Nepal for tão grande como saber porque é que a bandeira nacional é a única do mundo que não tem uma forma quadrilátera, então espera-nos um país fascinante. Porém, o facto que acaba por ser mais relevante nesta história é resultante de uma visita a Katmandu realizada poucos anos depois do sismo de 25 de abril de 2015, com 7,8 graus de magnitude na escala de Richter, devido ao qual milhares de pessoas viram os esforços de uma vida serem destruídos, centenas morreram e grande parte das infraestruturas do país ficou destruída. Alguns residentes da capital com quem falei evocaram o tormento desse dia: "25 de abril, nunca mais!" Nesse mesmo ano, após o sismo, entrou em vigor uma nova Constituição, que estabeleceu a República Federal e dividiu o país em 7 províncias. Um comerciante do centro da cidade disse-me: "Foi um ano de mudança, e até se pensou anular esse dia do calendário anual". Eu fiquei cismando que isso seria uma bizarrice, mas compreendia, naquele momento, o trauma que ficou nos sobreviventes. Afinal, o 25 de abril já dera a liberdade em Itália (1945) e em Portugal (1974), mas ali foi uma difícil viragem no quotidiano dos nepalenses. Os maiores danos foram registados em Katmandu, onde o terramoto desencadeou o pânico entre a população, que saiu às ruas apavorada e arruinou muitos edifícios, tal como a histórica torre Dharahara, uma das maiores atrações turísticas da cidade, que desabou. Este sismo teve a particularidade de se registar muito próximo da superfície terrestre. A placa tectónica que desliza na zona sul do Tibete encontra-se quase em contacto com a zona habitacional, representando um perigo adicional devido a uma menor dispersão das ondas sísmicas. Este caso serve para refletirmos sobre a realidade que nem sempre nos lembramos poder existir sob os nossos pés. Como um "puzzle" gigantesco, as placas tectónicas dividem a superfície do Planeta em peças maiores e mais pequenas, que estão em constante movimento devido à parte fluida do manto da Terra, sobre a qual navegam lentamente. Muito se estuda sobre este fenómeno, para se avaliar o risco de futuros terramotos em termos de probabilidade, agora que se sabe que os movimentos das placas não permanecem constantes, o que complexifica o problema da avaliação prévia aos eventos. E, depois destes, há que reconstruir. Era o que estava a ser feito no Nepal, cuja bandeira tem a forma geométrica de dois triângulos. Aparentemente, estes dois triângulos representam tanto as montanhas dos Himalaias como as duas religiões predominantes do país, o budismo e o hinduísmo, mas também porque, na generalidade das culturas e das civilizações, a apreensão e a compreensão do ser humano sobre o mundo, sobre o real e o espiritual, sempre repousaram num sistema triádico. Em termos das cores, o vermelho representa a vitória na guerra e a coragem, sendo também a cor da flor do rododendro, a flor nacional do Nepal. A cor azul da borda significa paz. A Lua curvada é um símbolo da natureza pacífica e calma do Nepal, enquanto o Sol representa a agressividade dos nepaleses guerreiros. Com este simbolismo, os nepalenses creem estar preparados para todo o infortúnio e para ganharem coragem na reconstrução do seu mundo. Sabemos como um terramoto confunde a nossa confiança no próprio solo que estamos a pisar, mas quando perguntei a um jovem o que sentira logo após o abalo, ele disse-me que desejou voltar para o recreio da escola e cheirar o perfume das flores que, tal como a esperança, não morrem no Nepal.

Jorge Mangorrinha, professor universitário e pós-doutorado em turismo, faz um ensaio de memória através de fragmentos de viagem realizadas por ar, mar e terra e por olhares, leituras e conversas, entre o sonho que se fez realidade e a realidade que se fez sonho. Viagens fascinantes que são descritas pelo único português que até à data colocou em palavras imaginativas o que sente por todos os países do mundo. Uma série para ler aqui, na edição digital do DN.

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