Uganda. A cidade de Jinja (com elas)

Mala de viagem (186). Um retrato muito pessoal do Uganda

Escreve-se Jinja, e não Ginja como o fruto, mas o fruto desta história tem a ver com "elas". No périplo até ao lago Vitória, fui de avião desde Cartum, no Sudão, a Entebe, no Uganda, via Nairóbi, no Quénia. Não foi fácil a logística, mas o que me animava mesmo era chegar à suposta nascente do Nilo, em Jinja, junto do lago Victoria. Esta é considerada a primeira nascente do rio, embora haja cientistas a considerar outras duas relacionadas com afluentes a montante do lago. A nascente em Jinja está junto desta cidade ugandesa, passando pelos lagos Kyoga e Alberto. O ramo entre estes dois lagos é conhecido como "Nilo Vitória". Seguimos de autocarro por estradas difíceis e por entre o verde e o ocre férrico, onde já perto da cidade se encontram filas de gente, crianças e mães, carregando produtos. Caminham descalços com dificuldade, mas fazem-nos a escolta imprevista. Chegados a Jinja, fomos conduzidos ao mercado, pleno de artesanato e de produtos frescos. Na cidade, por todo o lado se viam edifícios coloniais, dada a importância de Jinja na história colonial britânica do Uganda. Connosco seguia Mukisa, o nosso guia, com um nome distinto, porque significa: "Boa sorte". Essa sorte foi a que tivemos com a emoção de ver nascer o Nilo a partir das águas do lago rumo a mais de uma dezena de países e, também, observarmos um ritual de batismo. Jinja é comummente lembrada como "capital da aventura da África do Leste", devido às muitas atividades turísticas na cidade, entre elas "rafting" e "bungee jumping". A refeição foi surpreendente, numa mesa com europeus e autóctones. O prato foi de peixe, bem perto que estávamos do local da sua pesca. Naquele repasto de gente intercontinental, havia sorrisos sagrados de alma e a água era sobrenatural. Na minha frente ficaram duas guias de turismo. Uma delas é ugandesa e negra, a outra é arquiteta e alemã, mas esta com uma opção de vida durante cinco anos em que faz de guia enquanto investiga para o seu doutoramento na Alemanha acerca "da intervenção transformadora de meados do século XX por parte do arquiteto e urbanista alemão Ernst May", referiu-me. Isso levou-me a descobrir o percurso de May, que aplicou ao plano as chamadas "unidades de bairro" corbusianas (Le Corbusier). Foram arrasados alguns bairros clandestinos e paupérrimos. May era um reputado arquiteto e urbanista. Antes de trabalhar para o Uganda, revolucionou o desenho de Frankfurt am Main durante o período da República de Weimar (1926-1930) e, neste último ano, seguiu com a sua equipa para o "paraíso socialista" estalinista, porém, ele foi apelidado de capitalista e ocidental indesejado, pelo que o Governo soviético adotou a política de não convidar mais nenhum arquiteto estrangeiro a partir dessa experiência. Quando os nazis tomaram o poder na Alemanha, ele emigrou para a África Oriental Britânica e passou a trabalhar no Quénia e no Uganda. Projetou edifícios comerciais, hotéis e escolas. No Uganda, ele projetou alguns dos edifícios mais marcantes, como o Museu do Uganda, o British and American Tobacco ou a Câmara Municipal de Kampala. Isso foi resultado de um convite pelas autoridades do protetorado britânico que, em 1945, o contrataram para idealizar planos para Kampala, Wandegeya e Jinja. Estes trabalhos articularam-se com as realidades políticas do domínio colonial tardio e com as dificuldades já sentidas pelos países colonizadores, na época. Porém, eles tornaram-se nos primeiros planos a incluir bairros sociais na África Oriental, com base na visão da "cidade-jardim", o que se afigura do maior interesse para a história do planeamento urbano em África. À despedida daquele almoço, tomei o gosto de um licor saboroso em "taça de prata" - com elas!

Jorge Mangorrinha, professor universitário e pós-doutorado em turismo, faz um ensaio de memória através de fragmentos de viagem realizadas por ar, mar e terra e por olhares, leituras e conversas, entre o sonho que se fez realidade e a realidade que se fez sonho. Viagens fascinantes que são descritas pelo único português que até à data colocou em palavras imaginativas o que sente por todos os países do mundo. Uma série para ler aqui, na edição digital do DN.

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